Lisboa,
a Veneza do Atlântico?
Paulo
Trigo Pereira
OBSERVADOR
– 13/12/2016, 0:15
O
futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da visão que
tivermos para elas, dos princípios que defendermos e da eficácia e
coordenação das políticas públicas que adoptarmos para os
alcançar
1. A cidade
histórica de Veneza tinha cerca de 200.000 habitantes em 1980 e
apenas menos de 55.000 em 2016. Lisboa em 1981 tinha 801 mil
residentes, e em 2015 estima-se que sejam perto de 500 mil. Lisboa
está mais bonita (melhor ficará quando as obras acabarem) e mais
vibrante. Mas queremos o centro histórico e as zonas mais nobres de
Lisboa como um museu parcialmente deserto de residentes (nacionais ou
internacionais) e em grande parte habitado e frequentado apenas por
turistas e visitantes ocasionais? Depois de um profundo processo de
suburbanização endógeno das últimas décadas, assistimos agora a
dois outros fenómenos simultâneos: o da gentrificação e do
parcial despovoamento de residentes de certos bairros da cidade
(Bairro Alto, Castelo, Alfama, etc.) e da sua substituição quer por
crescente oferta turística de diferente tipo (hotéis, hostels,
alojamento local), quer por propriedades adquiridas por residentes
não habituais de classes altas. As mudanças recentes, desencadeadas
a um ritmo vertiginoso, são um resultado de processos económicos e
tecnológicos que têm a ver com o funcionamento dos mercados globais
(voos low cost, plataformas de aluguer tipo AirBnB, etc.), mas são
também o resultado de um variado conjunto de políticas públicas
nacionais (lei das rendas, licenciamento de atividades económicas,
regime de reabilitação integral, benefícios fiscais para não
residentes ou residentes não habituais, tributação de património,
das rendas, das receitas de alojamento local, etc.). Estas são
decisões políticas que devem assentar numa clarificação dos
objetivos das políticas públicas a médio e longo prazo. Era
importante aproveitar a pré-campanha eleitoral das autárquicas de
2017, em que já estamos, para clarificar estratégias para as
grandes cidades, que enquadrem as medidas de política aos níveis
macro, meso e micro, para que estas não sejam ad hoc e sectoriais,
como de momento são, e com efeitos contraditórios nos nossos
tecidos urbanos.
2. Aquilo que se
está a passar em Lisboa e no Porto tem na sua base razões
económicas, mas também culturais. A procura, quer de habitação
(compra ou arrendamento) quer de dormidas curtas tem aumentado
significativamente. A oferta de habitações só pode aumentar pela
diminuição de casas desocupadas, a construção de novas
habitações, a requalificação de antigas, ou a colocação de mais
casas no mercado de arrendamento. Como a oferta pouco sobe, os preços
dos imóveis aumentam e acabam sendo comprados por residentes e não
residentes estrangeiros (um em cada seis imóveis em 2016) com maior
poder de compra. No que toca ao mercado de dormidas, tem aumentado
muito significativamente a oferta do alojamento local e em parte
também de hotéis para responder a uma procura sempre em crescendo.
Com as baixas taxas de juro que se têm vindo a verificar em Portugal
e na Europa, o investimento em ativos imóveis tornou-se de novo
bastante atrativo. Obviamente, há consequências positivas deste
processo. Reabilitação urbana mais acelerada, entrada de capitais
no país, aumento das exportações (pelo turismo) e uma
revitalização e diversificação da oferta de serviços e de outros
bens como os culturais. Há, porém, aspetos negativos. O
despovoamento de certos bairros, com o consequente fecho de
atividades económicas ligadas à vida quotidiana (a pequena
mercearia, a drogaria, a loja de bairro); a dificuldade de famílias
de classe média, e dos jovens, já para não falar de famílias de
menores rendimentos, habitarem partes significativas da cidade. O
aumento muito elevado dos preços no imobiliário, pelo
sobreaquecimento do mercado. E ainda outros problemas como as
condições de habitabilidade em bairros mais turísticos (ruído) ou
em prédios com AirBnb (incómodo com turistas).
3. Dirão os mais
liberais que isto são os mercados a funcionar livremente e que as
mudanças a que assistimos são inevitáveis e as suas consequências
também. Há, algumas mudanças nos mercados incontornáveis. Por
exemplo, a economia digital e o aumento dos serviços online são
inevitáveis, já mudam os nossos comportamentos e ainda mais mudarão
no futuro. Mas os mercados da habitação e do alojamento não são
nem podem ser “mercados livres”. Todos os mercados são
construídos por instituições e estes em particular são
segmentados, conforme a idade do imóvel e o tipo de proprietário,
são regulados e existem incentivos públicos para quem neles opera.
O funcionamento dos mercados é, assim, afectado por decisões
políticas, não neutras, da esfera do legislativo e dos executivos
(da república, e do município) e por decisões judiciais. Ainda
neste Orçamento de Estado 2017 o legislativo aprovou várias
medidas. O aumento da tributação do alojamento local fez, e bem,
uma diminuição do diferencial em relação à tributação das
rendas, reduzindo a distorção, que ainda é relativamente favorável
ao mercado de alojamento local. O adicional ao IMI fez, e mal, uma
alteração ad hoc e pouco fundamentada à tributação do
património, introduzindo uma modesta, inovadora e de dúbia eficácia
financeira, progressividade na tributação do capital. Continua
ainda em vigor uma discriminação fiscal claramente positiva dos não
residentes (ou dos residentes não habituais de certas profissões)
em sede de IRS relativamente aos residentes nacionais. Para além do
legislativo, o executivo municipal também pode e promove políticas
para minorar os problemas identificados, por exemplo através da
implementação de programas para requalificação ou construção de
fogos para jovens de rendimentos não muito elevados. Finalmente, o
sistema judicial está a ser chamado para deliberar sobre a
possibilidade de assembleias de condóminos decidirem sobre a prática
de alojamento local numa das suas frações. O Tribunal da Relação
de Lisboa considerou recentemente que têm essa prerrogativa, já a
Relação do Porto, noutro caso, considerou que não. O assunto será
eventualmente dirimido pelo Supremo.
4. O debate sobre a
gentrificação, a “turistificação” e o despovoamento parcial
de bairros das nossas grandes cidades já começou há uns tempos.
Concordo com Helena Roseta que defende que a política fiscal não
deve ser objeto de experimentação e deve ter presente a política
de habitação. E com João Seixas quando diz que “o que está em
jogo é o vislumbre do que será a cidade – e não só o seu centro
histórico – no futuro próximo. E de como se poderá e saberá
gerir esse futuro.” Aprofundar este debate exige uma clarificação
estratégica de quais os objetivos a atingir e de como certos
objetivos são parcialmente conflituantes. Exige um bom diagnóstico
da situação atual distinguindo quer as grandes tendências dos
mercados quer os efeitos (individuais e agregados) das políticas
públicas (fiscalidade e regulação). A minha hipótese de trabalho,
sujeita a refutação, é que o efeito agregado das atuais políticas
públicas é o de aceleração, e não de atenuação, das tendências
de mercado. Os incentivos económicos públicos justificam-se apenas
até ao ponto em que as externalidades positivas são superiores às
negativas. Já chegámos a esse ponto? E ainda se justificam quando
estão em questão direitos fundamentais, como o direito à
habitação, e mesmo o direito à cidade? Estudos, reflexões e
debates precisam-se, para fundamentar a decisão política. Uma coisa
é certa. Numa economia social de mercado — uma economia mista em
que participam agentes privados, públicos e do “terceiro setor”
— o futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da visão
que tivermos para elas, dos princípios que defendermos, e da
eficácia e coordenação das políticas públicas que adoptarmos
para os alcançar.
Professor
universitário e deputado eleito como independente nas listas do PS
de Setúbal e membro do grupo parlamentar. As opiniões expressas
apenas vinculam o autor.
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