Nas
mãos da Alemanha e de Angela Merkel
Ao
atacar em Berlim, os estrategos do Daesh visam enfraquecer Merkel e
fazer saltar a Europa.
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
23 de Dezembro de
2016, 22:02
Que há de novo a
dizer do atentado de Berlim que não tenha já sido dito neste
próprio ano de 2016? O terrorismo é muito velho. Ao longo do século
XX, muitos países habituaram-se a coabitar com o terror até o
vencer. Depois da Al-Qaeda, o Daesh (ou Estado Islâmico) inaugurou
um tipo de “terrorismo global” que se manifesta em todas as
geografias. O seu êxito depende de quem o sofre e também dos tempos
e lugares em que é praticado. Aqui reside a razão de analisar o
ataque de Berlim: perceber que não é só a Alemanha que está em
jogo, mas toda a Europa.
Devemos repetir o
que já muitas vezes se disse. A resposta policial, sobretudo a
preventiva, é essencial, mas o mais importante joga-se no plano dos
sentimentos — na resposta ao medo. O medo visa provocar reacções
de histeria e desproporcionadas que rompam os laços com as
comunidade muçulmanas dos países europeus. Calcula o Daesh: entre
as liberdades e a segurança, os cidadãos optarão por esta, logo
pela dureza.
Há diferenças
entre os países. A França tem a maior comunidade árabe da Europa,
cinco milhões de pessoas. Este é um dos cavalos-de-batalha da
Frente Nacional de Marine Le Pen. As redes terroristas, e em
particular o Daesh, recrutam entre os jovens radicalizados da segunda
geração, já nascidos ou educados na França. Não são “lobos
solitários”. São dirigidos a partir de Raqqa, na Síria. Segundo
Gilles Kepel, especialista em jihadismo, a estratégia do Daesh visa
“desencadear uma guerra civil em França”.
Na Alemanha, a maior
comunidade muçulmana não é árabe, mas turca e pouco propensa ao
jihadismo. A partir de 2015, com a tragédia síria, Berlim abriu as
portas a 890 mil refugiados. Tornou-se então o epicentro da questão
migratória na Europa. A extrema-direita, em particular a xenófoba
Alternativa para a Alemanha (AfD), lançou uma ofensiva contra Angela
Merkel. A maioria dos alemães tem tido um comportamento cordial
perante os refugiados. Mas também medo. Uma sondagem de Agosto
indicava que 71% dos inquiridos temiam que entre os refugiados
viajassem terroristas. Tinham razão, e a polícia falhou. Noutra
sondagem, 40% pediam o encerramento das fronteiras alemãs aos
refugiados.
Voltando ao medo. A
primeira observação a fazer é o facto de os atentados jihadistas
dos últimos anos coincidirem com uma vaga populista, com uma grande
componente xenófoba, que estimula o medo e dele se alimenta
politicamente.
Merkel
e Hollande
Na França, François
Hollande declarou o país em “guerra” e instituiu medidas
extremas nas ruas e nos lugares públicos, limitando as liberdades
individuais. Mais do que prevenir efectivamente o terrorismo,
trata-se de uma medida largamente política, visando tirar argumentos
à oposição e, sobretudo, a Marine Le Pen. Na Alemanha, dizem os
analistas, limitar as liberdades em nome da segurança é impossível
“por razões históricas”. Note-se que, ao contrário da maioria
da Europa, as redes sociais mostraram uma grande moderação nas
reacções ao atentado. Apenas os dirigentes da AfD ultrapassaram a
linha da obscenidade, com frases como “São os mortos de Merkel”.
No entanto, poucos
dias passaram. A chanceler tomará mais algumas medidas restritivas,
tentando manter o essencial da sua política. Mas, a dez meses das
eleições gerais, a sua posição foi enfraquecida, O país está
polarizado, o que augura o crescimento eleitoral da AfD e leva
sectores da CDU, o partido da chanceler, tal como os seus sócios da
CSU, da Baviera, a pressioná-la a ir mais longe, a fim de cortar o
espaço à direita. Até Setembro, a AfD vai radicalizar mais o país
e colocar o islão e a imigração no centro da campanha.
O desfecho deste
debate é importante. “Para a República Federal, trata-se de uma
cesura importante, que poderia transformar profundamente a sua
abordagem em matéria de política de refugiados, de asilo e de
imigração”, observa o analista alemão Hans Stark.
Outra analista
alemã, Daniela Schwarzer, sublinha que tudo se vai jogar na
capacidade de Merkel conseguir mobilizar a sociedade civil em torno
da sua política. Frisa também a necessidade de uma forte resposta
ao terrorismo baseada na cooperação europeia, até agora mais
formal do que real. “Mas o maior desafio é o doméstico. Em tempos
em que o medo cresce, Merkel tem de exercer uma forte liderança. Se
ela o não fizer, outros ganharão terreno — propagando uma
Alemanha menos liberal, mais xenófoba e mais fechada.”
A
Alemanha e a Europa
“Os próximos dias
e semanas serão de grande importância”, escreve o Corriere della
Sera. “Para a Alemanha e mais ainda para a União Europeia, que
seria infinitamente mais débil com uma Merkel diminuída ou
impotente. A senhora é ainda forte, mas não é garantido. No
entanto, resta indispensável para a Europa.”
Há cadeias fatais.
O atentado de Berlim — e sobretudo se outros se seguirem — poderá
marcar um ponto de viragem. Uma Alemanha vacilante abalará uma
Europa que atravessa uma era de “crises, choques e terror”. O
populismo corrói as instituições e não é um fenómeno
passageiro. Os analistas prevêem mais atentados, espectaculares e
letais. A eleição de Donald Trump abriu uma longa fase de
insegurança política e estratégica na Europa e tenderá a
estimular os fenómenos que rotulamos de populismo.
É interessante a
percepção americana de Angela Merkel. O historiador Harold James,
da Universidade de Princeton, faz uma curiosa análise dos actuais
modelos de liderança. “Putin e Merkel representam dois pontos de
referência e não só na Europa”, mas também nos Estados Unidos,
onde “Trump definiu Hillary Clinton como a ‘Merkel americana’.
(...) Merkel e Putin emergiram como ícones políticos no próprio
momento em que a globalização se encontra numa encruzilhada. De um
lado, Donald Trump, que, inspirando-se em Putin, invoca uma
alternativa à globalização. Do outro, Angela Merkel, que quer
salvar a globalização através de uma liderança forte e empenhada
nos valores universais e direitos humanos.” Não é seguro que
James tenha razão. Mas que vemos ao olhar a cena política
continental?
O historiador
britânico Timothy Garton Ash vai até mais longe: “À medida que
subiam as águas do populismo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos,
e na Holanda e na França, a Alemanha converteu-se cada vez mais no
centro estável da Europa, e até do Ocidente. A Alemanha é o centro
geográfico, económico, político e até social, e o centro desse
centro é Angela Merkel.”
Em suma, o atentado
de Berlim leva a fazer uma pergunta: terão os estrategos do Daesh a
mesma percepção, fazendo do enfraquecimento de Merkel e da Alemanha
um alvo prioritário para tentar “incendiar” toda a Europa?
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