OPINIÃO
Assistimos
em Lisboa a uma desapiedada destruição do património
Uma
outra e maior ambição ou interesse face à extraordinária
identidade da cidade deveria ser a missão urgente de quem governa e
também de cidadãos mais atentos, única forma de resgatar a cidade
da indiferença e da indiferenciação em que se vai perdendo.
MIGUEL DE SEPÚLVEDA
VELLOSO
“A defesa do
património urbanístico e arquitectónico e uma orientação
estruturante da revisão do PDM transversal a toda a normativa
urbanística proposta”; “A demolição de edifícios fica
restringida a situações excepcionais caracterizadas de forma
objectiva e sujeitas a controlo técnico ou a uma justificação que
demonstre que a reabilitação é inviável”
Estas duas frases
não são obra de uma mente retrógrada ou de uma diatribe veemente
de um actual Velho do Restelo. Foram retiradas do preâmbulo do plano
director municipal. Afirma-se no papel o que a prática tantas vezes
desmente. Assistimos, actualmente, em Lisboa a uma desapiedada
destruição do património, enroupada em argumentos que tentam
vender gato por lebre, tentando fazer passar a ideia de uma vaga de
reabilitações sem precedente. O que acontece, na verdade, é
construção nova, numa estafada e repetida imagem de fachadismo.
A lista é
interminável, não sendo este o espaço oportuno para a fazer
exaustiva. De qualquer forma, não será de mais afirmar que no
Bairro Barata Salgueiro já nada resta dos incontáveis prédios de
aparato característicos da Lisboa “entre séculos”, designação
que abrange os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas
do século XX. Por todo o lado nesse malogrado plano se passa à
demolição integral de interiores, ao aumento de cérceas, à
trivialização do que foi pensado para ser um bairro de excepção.
O mesmo é válido para todo o eixo das Avenidas Novas. Raros são os
exemplos de verdadeira reabilitação em que, ao necessário novo uso
do preexistente, se associe a preocupação pela salvaguarda do maior
número possível de características singulares que fazem dos
imóveis desse período testemunhas importantes da evolução da
cidade, da sociedade, de diferentes soluções e sensibilidades
artísticas.
Tem-se optado pela
descaracterização constante desse património, não se propondo a
preservação de nenhum pormenor de época, à excepção de fachadas
e de alguns azulejos que as cubram. O resultado está à vista e é
de lamentar. Prédios de arquitectos de reconhecido mérito — Adães
Bermudes, Ventura Terra, Norte Júnior, alguns prémios Valmor —
são hoje a sombra de si mesmos. Quarteirões inteiros banalizados
num rolo compressor de licenças dadas a eito, projectos muitas vezes
de qualidade sofrível e um facilitismo que condenou a cidade, nessas
zonas, a um vasto espaço de indigência patrimonial que assombra
pela espantosa semelhança com os idos anos 60 e 70 do século
passado, período em que a especulação e os ganhos imobiliários
foram triste moeda corrente.
Mas não se julgue
que é só o património edificado Arte Nova e Art-Déco que está na
mira de promotores e que é vítima da eterna apatia com que as
coisas do património são vistas em Lisboa. Prédios pombalinos e
palácios históricos, conventos devolutos e antigas instalações
industriais, importantes marcos da arquitectura do ferro, têm vindo
a ser radical e tragicamente transformados. Para que não subsistam
dúvidas, basta ir à Rua das Portas de Santo Antão ver o que sobra
do antigo Palácio da Anunciada: destruiu-se o jardim, rapararam-se
as mansardas pombalinas, todas as dependências foram demolidas,
restando apenas o átrio, a escadaria e os salões nobres. Exemplos
destes não faltam numa cidade que se quer, e bem, património
mundial.
Há, contudo, dois
casos que não podem deixar de mobilizar a opinião pública, pela
sua dimensão simbólica, pelo que têm de insólito num país de
leis e de regras para todos os gostos, pela desfaçatez com que se
prolonga o injustificável e se autoriza o que em tempos não fora
visto com bons olhos.
O primeiro, a
demolição integral da moradia pombalina da Rua da Lapa, exemplar
único na capital, excelente fecho da Rua de São João da Mata. A
DGPC (Direcção-Geral do Património Cultural, DGPC) em 2012 já se
tinha pronunciado a favor da manutenção dessa notável casa.
Sublinhe-se que a moradia está numa área de confluência de várias
zonas de protecção — Museu de Arte Antiga, Chafariz da Esperança,
Convento das Trinas do Mocambo, Basílica da Estrela. Era parte
integrante e emblemática do Bairro da Lapa. Este, caso avance a
candidatura de Lisboa a património mundial, será considerado
zona-tampão de um outro bairro integrante do bem a classificar, o
Bairro da Madragoa.
A própria Lapa é
definida pela CML como sendo um bairro de traçado histórico, ou
seja, não são só as ruas que o desenham, mas também o edificado
que nelas existe que lhe confere essa qualidade de lugar ímpar, com
uma invulgar concentração de património, palácios, recolhimentos,
conventos, casas populares, dando a este bairro uma marca
inconfundível no conjunto dos bairros de Lisboa. Outra leitura
tiveram os serviços que, fazendo tábua rasa das boas práticas em
matéria de salvaguarda e valorização patrimonial por si próprios
defendidas, optaram por dar o dito por não dito e, aquilo que há
uns anos era só para ser alterado, passou a ser agora campo de
demolição onde nascerá um projecto de autor em tudo alheio à
tipologia e enquadramento existentes.
Às perguntas mais
do que justificadas, a DGPC reage com respostas de amanuense
encartado. À sugestão de um mapeamento patrimonial exaustivo dos
bairros da Lapa e Estrela que pudesse servir de recomendação à
acção da CML, a DGPC responde com artimanhas do código de direito
administrativo para dizer que não é da sua área de competências,
ficando o povo sem saber o que a augusta entidade pretende dizer. É
do conhecimento geral que a DGPC voluntariamente levanta processos de
classificação de imóveis, que estabelece protocolos de colaboração
com várias entidades e diferentes jurisdições, criando e
mobilizando, dessa forma, vontades e decisões. Por que motivo não
acha conveniente fazê-lo nesta área da cidade, é matéria de
difícil compreensão. Razão têm os moradores da Lapa por temerem
que seja este o princípio da irreversível descaracterização de um
dos bairros mais carismáticos de Lisboa.
O segundo caso,
paradigmático do torpor em que se arrastam as chefias da DGCP e CML,
é o do Palácio Almada-Carvalhais, dos antigos provedores da Casa da
Índia. É esta uma notável residência aristocrática lisboeta,
anterior ao terramoto de 1755, com torre senhorial de cantaria,
galeria abobadada e azulejada e um magnífico pátio renascentista,
único em Lisboa. Pelo seu carácter excepcional foi declarado
Monumento Nacional em 1919 e nunca, nas várias revisões da lista de
bens classificados, foi destronado. Estando abrangido pelo mais
elevado nível de classificação, poderíamos partir do razoável
princípio de que estaria a salvo da ruína. Nada mais longe da
verdade.
Há décadas que a
especulação imobiliária se abateu sobre esta casa nobre da Rua da
Boavista, encostada a Santos. A sua posse tem passado de fundo
imobiliário para fundo imobiliário, detidos, na totalidade ou em
parte, por grandes instituições bancárias que, ávidas do seu
retorno, não se sentem obrigadas a cumprir as disposições mais
elementares da Lei de Bases do Património, a qual, entre outros
pormenores descartáveis, estipula que ao detentor do bem cabe a
manutenção dos valores que levaram à sua classificação. Como se
sabe e vê, o estado deste Monumento Nacional é de pré-ruína
absoluta, as janelas estão escancaradas, partidas, portas
arrombadas, o pátio vandalizado, infiltrações por todo o lado,
tectos apodrecidos. Basta um temporal mais forte, um começo de
incêndio e, do palácio que resistiu ao terramoto de 1755, nada
restará.
Perde-se a conta de
toda a correspondência trocada com CML e DGPC sobre a urgente acção
para salvar in extremis este marco de Lisboa, para que a tutela
obrigue o detentor do bem a agir, para que os fundos que o
comercializam não se sintam acima da lei. Quer do lado dos paços do
concelho, quer da Ajuda, nada se move, para além da redacção de
uns lembretes, tratando com punhos de renda o que deveria ser
desmascarado sem cerimónias.
Estes dois exemplos
são a tradução na prática da miopia cultural que percorre os
corredores do poder, mais inclinados em retirar dividendos de acções
de curto prazo em detrimento de medidas de ordenamento que valorizem
a cidade e não a desfigurem irreparavelmente. Vive-se em Lisboa, em
grande medida, não a sacralização do património, como foi dito
por ocasião dos 20 anos do Porto — Património da Humanidade, mas
antes a sacralização do vale-tudo.
Uma outra e maior
ambição ou interesse face à extraordinária identidade de uma
cidade como Lisboa deveria ser a missão urgente de quem governa e
também de cidadãos mais atentos, única forma de resgatar a cidade
da indiferença e da indiferenciação em que se vai perdendo. Na
proporção do ganho que constitui para alguns, esse, sim, crescente,
pressionante e rápido.
Sem comentários:
Enviar um comentário