Pós-verdade
na política e na guerra
A
era da pós-verdade tem uma longa história, não começou em 2106.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES
19 de Dezembro de
2016, 12:53
1. Estamos a viver
uma era de pós-verdade. Esta é a impressão que sobressai do muito
do que foi escrito, e dito, nos últimos meses na imprensa.
Pós-verdade é o termo do ano 2016 para os dicionários Oxford. O
termo "pós" pretende significar mais do que algo
cronologicamente posterior. Pretende mostrar a irrelevância do
conceito ao qual foi associado — neste caso, do conceito de verdade
entendido como a conformidade com os factos. A escolha foi
determinada pela ascensão do populismo, explicada como só possível
pela irrupção da “pós-verdade” na política. O Brexit e a
eleição de Donald Trump nos EUA são os seus maiores exemplos. A
era de pós-verdade só foi tornada possível pela Internet e redes
sociais. Funcionam como fonte de “informação” alternativa
distorcendo a realidade e desinformando os cidadãos eleitores.
Alimenta-se da desconfiança relativamente ao poder estabelecido, a
qual cria receptividade às falsas notícias. Na era da pós-verdade,
o respeito pelos factos tornou-se descartável. A emoção supera
agora a razão. A tradição filosófica e política ocidental de
racionalidade e de verdade, como conformidade, com os factos, foi
afastada. O problema desta narrativa é ser, ela própria,
pós-verdadeira. Não passa de uma catarse do establishment provocada
pelos traumas das “impossíveis” vitórias do Brexit e de Donald
Trump.
2. O que se chama
hoje pós-verdade não capta fundamentalmente nada de novo — a
novidade é mesmo o termo que tem um glamour pós-moderno e sugere
algo inexistente até agora. Uma análise mais atenta mostra como, na
essência, estamos perante o mesmo fenómeno social e político que
se chamava tradicionalmente rumor ou boato, antes da actual sociedade
em rede. Por outras palavras, estamos perante algo que circula na
esfera pública com aparência de verdade, ou, pelo menos, de
plausibilidade. O rumor / boato constitui um relato ou explicação
de acontecimentos de interesse público que se propaga oralmente. Não
é clara a sua origem, nem está confirmado por fontes identificadas
e credíveis. Na actual sociedade em rede, o equivalente é a difusão
de um texto, imagem ou notícia nas diversas redes socais —
Facebook, Twitter, etc. — em similares circunstâncias de
descontextualização, não conformidade e/ou dificuldade de
confrontação com os factos. Trata-se de uma forma, deliberada ou
inconsciente, de distorção da realidade. Poderá ser algo
totalmente falso, ou, mais subtilmente, uma distorção parcial — a
chamada meia-verdade. Com ou sem sociedade em rede, o rumor / boato
político sempre teve um potencial manipulador. Pode levar a
alterações importantes da opinião pública com consequências
políticas de maior ou menor dimensão. O seu uso como arma política
é uma constante ao longo da história humana.
3. Para além do
rumor / boato, o problema da “pós-verdade”, nas suas diferentes
facetas, é algo intemporal na política. O Príncipe de Maquiavel —
o governante do Renascimento —, já vivia numa era de pós-verdade.
No capítulo XVIII do livro, “De que modo os príncipes devem
cumprir a sua palavra”, há uma frase que capta de forma
particularmente cínica a essência da questão: “quem engana
achará sempre quem se deixe enganar.” Como Maquiavel faz notar,
aquele que aspira ao poder, ou à sua conservação, deverá ser um
“grande simulador e dissimulador.” O essencial é que a acção
política seja percebida pelo vulgo, ou seja pela população em
geral, como um sucesso. Se for assim, os meios empregues serão
sempre justificados: “o vulgo deixa-se sempre levar pela aparência
e o sucesso das coisas; e no mundo não há senão vulgo e os poucos
só têm lugar quando os muitos não têm em que apoiar-se.” Hoje,
a sociedade em rede mimetiza o que há de melhor — e de pior — no
ser humano. Trouxe novos meios para lógicas humanas e políticas
antigas: a arte de simular e dissimular com objectivos políticos,
que pode ser apoiada na propagação de rumores / boatos. Para os que
idealizam a Internet e a sociedade em rede foi um choque de
realidade: uma nova era de transparência na política, um espaço de
liberdade e de causas com elevado valor moral, estava a emergir.
Afinal, o que surgiu foi uma era de pós-verdade.
4. Tal como na
política, também na guerra não há qualquer novidade substancial
em matéria de “pós-verdade”. É tão antiga como a actividade
bélica entre seres humanos. O episódio mitológico do cavalo de
Tróia na Antiguidade — a mentira usada na guerra pelos gregos, que
se tornou decisiva para a conquista da cidade de Tróia —, impregna
a cultura europeia e ocidental. No mundo hoje, a ocultação da
verdade durante guerra, ou para justificar a sua necessidade,
continua a ser usual como no passado. A invasão do Iraque, em 2003,
foi apresentada como necessária e legítima por George W. Bush
devido à ameaça de armas de destruição maciça no Iraque, as
quais estariam na posse dos exércitos de Saddam Hussein. Nem tais
armas, nem quaisquer provas credíveis da sua existência foram
alguma vez encontradas. Mais recentemente, na guerra da Síria e na
terrível batalha de Alepo, a pós-verdade é o normal da
(des)informação. O jornal Le Monde (ver "Fausses images et
propagande de la bataille d’Alep", 15/12/2016) mostra como
ambos os lados — governo de Assad e grupos rebeldes — manipulam a
opinião pública internacional. Um dos casos apresentados é a falsa
imagem, posta a circular nas redes sociais, para gerar emoção, de
uma órfã a fugir numa cidade em destroços. O problema é que foi
retirada de um vídeo da cantora libanesa, Hiba Tawaji, de 2014.
Outro caso é a recente defesa, feita pelo diplomata que representa a
Síria no Conselho de Segurança da ONU, contra as acusações de
atrocidades cometidas contra a população civil pelas forças
militares governamentais, usando uma foto tirada no Iraque.
5. Há uma “boa”
e uma “má” pós-verdade? Assim parece, pois, a pós-verdade, já
foi vista como progressista. Nietzsche, o filósofo contra-Iluminista
do século XIX, afastou a possibilidade de uma verdade objectiva e
universalista. O seu pensamento pode ser traduzido pela máxima “não
há factos, apenas interpretações”. Abriu caminho ao chamado
“perspectivismo”: não há uma realidade objectiva, apenas
interpretações subjectivas do mundo. Até um passado recente, era a
esquerda radical pós-moderna — que se via como alternativa —, a
deliciar-se com o seu pensamento. Usava-o a seu bel-prazer, como
dizia Foucault nos anos 1970. Nietzsche era muito útil para atacar o
poder, as instituições e os valores estabelecidos na época —
desconstruir era o moto. Libertar-se do positivismo e do teste dos
factos um imperativo. Perspectivismo rimava com progressismo.
Abria-se uma nova era de transformação social. Pouco importava que
realizações como os direitos humanos universais e a democracia
liberal fossem destruídas pelo caminho. Hoje estamos a ver os
resultados na sua plenitude. Trump e Farage provavelmente nunca leram
Nietzsche. Mas a sua atitude mimetiza a esquerda pós-moderna nas
causas “fracturantes”. Agora é a bem menos sofisticada, mas mais
perigosa politicamente, direita populista — no extremo a alt-right
ou direita alternativa —, a usar o desprezo pelos factos para
atacar o poder, as instituições e os valores estabelecidos. A era
da pós-verdade tem uma longa história, não começou em 2106.
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