TERRAMOTOURISM:
Lisboa abalada por um “sismo turístico”
Colectivo
Left Hand Rotation passou quatro anos a ver Lisboa transformar-se à
medida que o turismo crescia. Documentário TERRAMOTOURISM quer
abalar a capital. É urgente mudar de estratégia, dizem os
activistas espanhóis numa entrevista ao P3
Texto de Mariana
Correia Pinto • 12/12/2016 – 18:25
Vêem-se aviões e
mais aviões, navios gigantes a cruzar o Tejo, autocarros turísticos,
eléctricos, tuk-tuks, segways e outros semelhantes. Estamos em
Lisboa, uma “cidade embrulhada para presente” oferecido aos
turistas. Estamos em TERRAMOTOURISM, documentário do colectivo
espanhol Left Hand Rotation, que há quatro anos começou a perceber
(e acompanhar) a mudança da capital portuguesa. A comparação que
serviu de mote ao filme é impactante — e o objectivo é esse
mesmo: mostrar as semelhanças entre as ruínas do terramoto de 1755
e as actuais, produzidas à conta de um boom turístico em Lisboa.
Quando o colectivo
começou a frequentar a Mouraria e a introduzir palavras como
“gentrificação” e “turistificação”, deparou-se com
habitantes em negação. A cidade, diziam-lhes, não corria o perigo
de sofrer um abalo a esse nível. O documentário do grupo anónimo
de activistas não é um manifesto anti-turismo, sublinharam numa
conversa por email com o P3. É uma tentativa de fazer contraditório
face a um discurso que faz do turismo a solução para todos os
problemas. Um lembrete em relação ao direito à cidade, à falta de
distribuição da riqueza, à precariedade no sector turístico.
Em 2017, o Left Hand
Rotation vai levar um workshop sobre gentrificação a várias
cidades de Espanha e da América Latina. O documentário —
disponível na totalidade online — vai também percorrer várias
cidades portuguesas e espanholas. Para pôr o tema na agenda.
Esta junção de
terramoto e turismo, na origem da ideia do documentário agora
lançado, começou em 2012. Nessa altura, este tema não era assim
tão premente em Portugal. Porque decidiram agarrar esta ideia?
Já andávamos há
algum tempo a trabalhar à volta do impacto da gentrificação e do
urbanismo neoliberal na cidade, com um projecto chamado
“Gentrificação: colonização urbana e instrumentalização da
cultura” (em países de língua espanhola chama-se “Gentrificação
não é nome de senhora”), um workshop que passou já por 14
cidades de nove países. Em 2012, estávamos a fazê-lo na Mouraria,
analisando o projecto Ai Mouraria (“A Mouraria vai mudar para
melhor”). Não estávamos a trabalhar na ideia do TERRAMOTOURISM,
mas começamos a ter um olhar crítico sobre o que estava a acontecer
ali e percebemos que o programa Ai Mouraria dava muita importância à
“atração de turistas e visitantes” e aos “percursos culturais
e turísticos” no bairro. Nos meses seguintes surgiu a ideia do
TERRAMOTOURISM, como resposta à solução que se estava a desenhar
para a revitalização do centro histórico de Lisboa, uma zona com
muitos prédios abandonados (actualmente são quase quatro mil em
toda a cidade). Era difícil não fazer uma comparação entre as
ruínas do terramoto de 1755 e as actuais. Mas sobretudo era
interessante pensar na posterior reconstrução da cidade, nas
mudanças dos paradigmas social, cultural, urbanístico e político
que o terramoto trouxe e que têm uma réplica na actualidade em
forma de políticas de urbanismo neoliberal e processos de
turistificação e gentrificação no centro de Lisboa.
Entretanto passaram
quatro anos... Que evolução notaram neste período?
Como todos sabemos,
a baixa lisboeta foi um lugar desertificado e abandonado nos anos 80,
em parte pelo congelamento das rendas durante o salazarismo. Os
proprietários não tinham dinheiro para reabilitar os edifícios.
Dizia-se que ninguém queria viver na baixa. Nos processos de
gentrificação há uma fase imprescindível que é precisamente o
abandono de uma zona até à sua degradação. Assim, o preço do
metro quadrado baixa tanto que se torna rentável para os privados
investir nessa zona. Isto transforma o abandono numa grande
oportunidade para o lucro, muito cobiçado pelas empresas
imobiliárias e pelas entidades financeiras. Produz-se a
revalorização de um bairro e, de seguida, muitos vizinhos são
despejados porque, com a subida das rendas, não podem continuar a
pagar o seu “direito à cidade”. Nos últimos anos conhecemos
duas coisas que são chaves para entender o que se está a passar. O
boom turístico (seguramente provocado pela promoção de Lisboa como
uma marca no estrangeiro, uma tentativa de limpar a imagem de um país
em crise económica, embora saibamos que Lisboa sempre foi muito
visitada) e a chamada “nova lei do arrendamento”, que pretende
actualizar as rendas e os preços das casas no mercado e tem
provocado inúmeros desalojamentos de famílias. A solução para a
desertificação e abandono da baixa não passa por convertê-la num
contentor de lazer e consumo, que mais se assemelha a um parque
temático do que a um bairro habitado. Hoje privatiza-se o património
municipal e reabilitam-se edifícios para construir hotéis e
apartamentos de luxo. Por que não se reservam esses espaços para
habitação social em áreas centrais? Para lá do Bairro Alto, área
que sofreu os efeitos da gentrificação há décadas, podemos falar
nos últimos anos da Mouraria. E também de Alfama, que começa a ter
números preocupantes: 56% da habitação social foi convertida em
apartamentos para turistas. Além disso, assistimos em toda a cidade
a uma subida de 30% do valor das rendas nos últimos três anos, algo
insustentável para os habitantes. Lisboa sofreu nos últimos anos
uma série de transformações que noutras capitais europeias
demoraram décadas a acontecer. Esta velocidade está a provocar um
enorme desequilíbrio e a favorecer um urbanismo selvagem.
O documentário é
crítico desta realidade, desde o título até ao último minuto.
Qual a vossa posição sobre aquilo que está a acontecer em Lisboa
neste momento?
É importante
sublinhar que isto não é uma documentário contra o turismo. Todos,
em algum momento das nossas vidas, somos turistas. Nós próprios o
fomos em Lisboa há alguns anos. A nossa primeira visita aconteceu em
1980. O problema é a gestão que se está a fazer da cidade,
pensando exclusivamente no visitante, ou seja, a turistificação de
Lisboa. Tende-se a exaltar o turismo como motor económico, mas raras
vezes se fala dos custos sociais de implementar uma economia virada
em massa para o sector turístico, do impacto que este tem sobre o
mercado de habitação, da falta de distribuição da riqueza gerada,
que tende a acumular-se nas mãos dos grandes investidores, do
trabalho sazonal e precário neste sector. No fundo, dos riscos de
construir uma cidade à volta de uma indústria cujos ciclos de vida
variam muito.
Qual o vosso
objectivo com este filme?
O documentário faz
um paralelismo entre o terramoto de 1755 e o actual panorama de
aumento de despejos impulsionados pelo crescimento do turismo. O
terramoto destruiu grande parte de Lisboa, o turismo está a destruir
o direito à cidade. Em 1755 originou-se uma mudança dos paradigmas
cultural, político, social e urbanístico que deu origem ao
iluminismo mas também ao despotismo iluminado, legitimando um novo
modelo de cidade híper regulada, cujo legado é uma zona
praticamente desabitada e em vias de se transformar num não-lugar
permanente. A turistificação está a produzir algo parecido — e é
isso que contamos no documentário, numa perspectiva subjectiva, com
diversos materiais: registo documental, intervenções no espaço
público, imagens de cinema ou outros materiais de arquivo.
Insistimos: o documentário não é, de forma alguma, um manifesto
contra o turismo, nem defende uma ideia romântica de uma
autenticidade perdida de Lisboa. Procura alertar para a perda do
direito à cidade. Conhecemos bem as vantagens que o turismo pode
trazer, mas é preciso, face ao positivismo exagerado que domina
alguma opinião pública, fazer um manifesto dos aspectos negativos
que surgem quando a cidade começa a ser gerida em função do
turismo.
Sentiram nos
cidadãos a energia e vontade de mudar ou, pelo contrário,
cruzaram-se com pessoas adormecidas e resignadas?
Os processos de
gentrificação impulsionados pelo turismo são rápidos, e têm uma
etapa inicial em que parecem positivos. São identificados como uma
certa ideia de progresso, porque projectam uma imagem de melhorias na
cidade: mais limpeza e segurança nas ruas, reabilitação do
património arquitectónico, etc. Há muitas pessoas que ainda não
vêem o que está a acontecer, sobretudo quando falamos da baixa
pombalina. Para essas pessoas, o TERRAMOTOURISM talvez faça mais
sentido daqui a uns três anos. Lembro-me que fizemos várias
entrevistas na Mouraria em 2012 e quando falávamos de gentrificação
muitas pessoas diziam-nos que isso não podia acontecer em Lisboa.
Agora, com o boom turístico e a chegada em massa de capital privado,
quase todas as semanas há debates e encontros que relacionam o
turismo com a gentrificação ou plataformas de protecção do
direito à cidade. Felizmente as pessoas estão a começar a
mobilizar-se.
Como se consegue um
ponto de equilíbrio: conseguir uma cidade dinâmica sem a
descaracterizar e prejudicar os cidadãos?
A resposta deve ser
articulada com a comunidade.Não nos consideramos especialistas nem
opinion makers e acreditamos que cada cidade deve encontrar as suas
próprias respostas, não apenas “importar” as soluções que
outras cidades estão a aplicar face à turistificação, ainda que
seja interessante saber o que se está a fazer noutros lugares do
mundo.
Esta realidade
também existe em Espanha. Quem está a responder melhor a este
problema?
Todas as cidades são
diferentes e nem sempre é bom ter como referência o que acontece
noutras capitais. Barcelona está sempre no centro das atenções, ao
ponto de existir a expressão “Modelo Barcelona”. Por um lado o
urbanismo neoliberal vê a cidade como exemplo de renovação e
revitalização através do turismo, mas por outro a massificação
dos últimos anos (30 milhões de turistas em 2015) fez com que
muitos cidadãos não queiram mais turistas. Há manifestações
contra os apartamentos Airbnb, contra os próprios turistas, e isso
já levou a situações que roçam a xenofobia. A nova presidente da
câmara provém de movimentos sociais e tomou algumas boas decisões,
como multar os bancos que têm casas vazias e fazem especulação.
Quanto às medidas que se estão a tomar em relação ao Airbnb em
Barcelona temos mais dúvidas porque, como em Lisboa, o arrendamento
de apartamentos é muitas vezes uma ajuda económica imprescindível
para algumas famílias.
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