A
“geringonça 2.0” não vem aí
Provada
a sua capacidade de sobrevivência política num quadro completamente
novo, a verdade é que o Governo não sabe bem o que fazer.
MANUEL CARVALHO
28 de Dezembro de
2016, 1:45
Virar os olhos aos
problemas, varrer o lixo para debaixo do tapete, tergiversar ou adiar
foram práticas do final do mandato de Pedro Passos Coelho que
arrasaram a sua imagem de determinação e o seu tantas vezes
proclamado compromisso com a verdade. António Costa não precisou de
tanto tempo para seguir esse caminho. Como para ele (e bem) um
político que quer que “se lixem as eleições” há-de ser talvez
hipócrita, começa a habituar-se a torcer a verdade com
transparência e frontalidade. Ora veja-se o que aconteceu com o
episódio dos lesados do BES: na última quinta-feira, António Costa
declarou aos deputados que a probabilidade de os contribuintes terem
de pagar a conta era “diminuta”. Não foi preciso esperar mais do
que um dia para que ficássemos a saber que essa declaração foi um
monumento à propaganda. Na sexta-feira, Ricardo Ferreira Reis,
coordenador do trabalho da Universidade Católica que enquadrou a
solução, dizia ao PÚBLICO que “a impressão que o estudo deixa é
que vai ser difícil esta solução escapar totalmente ao défice e
mais vale que o valor seja logo assumido, transparente, prudente e
respeitando a convenção da substância sobre a forma”.
Nós já
suspeitávamos que a conta nos seria apresentada — por mau hábito
ou por tradição. Já sabíamos também que António Costa é um
mestre em embrulhar más notícias ou más decisões em discursos que
parecem poemas de amor. Mas, desta vez, vale a pena pegar neste
episódio, relacioná-lo com outros das últimas semanas e começar a
suspeitar que a gestão corrente e a criatividade das mensagens do
Governo vieram para ficar. Os que viram na impaciência e irritação
do PCP e do Bloco de Esquerda em relação às negociações do
salário mínimo um prenúncio de tensão neste Governo paz e amor,
desenganem-se. A patranha dos lesados do BES ou o inenarrável
discurso de Natal do primeiro-ministro (um monumento à banalidade)
prenunciam que no horizonte não há vislumbre de qualquer espécie
de “geringonça 2.0”. O surpreendente sucesso do “perdão
fiscal” vai permitir um suplemento de ar fresco no momento em que
se souber que o défice público deste ano vai ficar aí por volta
dos 2,2 ou 2,3%, iniciativas como a da descentralização ou a
repetição da ancestral lengalenga da educação vão levar boa
parte do país a supor que, depois de virar a página à austeridade
e de devolver rendimentos aos portugueses, o Governo está de facto a
governar.
A verdade, porém, é
que provada a sua capacidade de sobrevivência política num quadro
completamente novo, o Governo não sabe bem o que fazer. Limita-se a
viver de rendimentos. Que não são poucos. António Costa tem o
extraordinário mérito de ter aberto um novo capítulo na vida
política nacional. Aconteça o que acontecer a seguir, a experiência
colectiva que vivemos dinamitou muitas das certezas que tínhamos
sobre o sistema partidário, abriu um novo leque de oportunidades
para o funcionamento do regime e deixou sob suspeita verdades que a
dureza dos anos da troika davam como absolutas na área da economia.
Entre todas as reacções na Europa aos efeitos da crise e da terapia
que se lhe seguiu, Portugal deu a resposta mais original e
seguramente a mais sensata. Não tivemos populismos como o do Podemos
ou o de Beppe Grillo, não se vislumbram sinais da extrema-direita, o
nacionalismo é culto exclusivo de meia dúzia de arruaceiros e não
tivemos hiatos na governação de meses como em Espanha.
Para aqui chegar,
foi preciso reler as possibilidades do sistema político e
partidário, fazer tábua rasa do passado, enterrar estigmas e
desconfianças, identificar um inimigo externo para reunir o povo da
esquerda (a direita da dupla Passos/Portas), construir pontes e abrir
uma nova alternativa política. Não foi coisa pouca. Foi, pelo
contrário, uma revolução. Que, como seria de esperar, deu uma
enorme força ao Governo e aos partidos que o apoiam e acabou por
mudar tudo ou quase tudo na política. Depois de 40 anos em lados
opostos da barricada, o PS e o PCP conseguiram em 2016 descongelar a
história e encontrar pontos de contacto; a liberdade que o Bloco e o
PCP têm para deixar passar algumas medidas da governação, ao mesmo
tempo que se podem dar ao luxo de chumbar outras, reforçou o
parlamentarismo. E essa é uma boa notícia. O simples facto de, na
actual sessão legislativa, ter havido incerteza quando ao sentido de
voto das bancadas, negociação e procura de consensos é um bálsamo
para o Parlamento. Aconteça o que acontecer, quebrou-se um ciclo, os
deputados (até os do PS) experimentaram pelo menos a ideia de que
não estão condenados a ser câmaras de eco de São Bento e só isso
é muito bom.
O problema é que o
encontro de uma solução gerou nos seus promotores um tal ataque de
auto-estima que se esqueceram de que há um país em crise a precisar
de respostas. Resistir e sobreviver em equilíbrio precário
tornou-se o princípio de todas as coisas. A complacência, a tese de
que devolver rendimentos ou “virar a página à austeridade” é
um fim em si mesmo seja qual for a realidade, ou a recusa em aceitar
um sentido de urgência na definição de políticas para o futuro,
criaram um modelo de governação que se sustenta na inércia, em
medidas anódinas ou no branqueamento da responsabilidade política.
Para governar ao centro em questões sensíveis como a política de
salários e rendimentos, António Costa tem de entrar num território
hostil ao Bloco e ao PCP. Para cumprir promessas como a dos lesados
do BES, tem de ter de enfrentar críticas e descontentamento dos
contribuintes. O Governo, limitado no Parlamento e seduzido pelo
maravilhoso mecanismo que o sustenta, não faz uma coisa, nem outra.
Dedica-se a dizer lugares comuns sobre a educação.
As sondagens dizem
que em 2016 houve no ar o perfume da distensão e que o PS é quem
mais ganha com isso. A euforia do consumo, a sensação de que o país
regressou à normalidade, o delírio de promessas que forçam mais
aumentos salariais, mais férias e mais direitos são a prova de que
os portugueses gostam mesmo de acreditar no Pai Natal. António Costa
não os defraudará. Pelo menos para já. Mal passe o espírito da
quadra, ver-se-á se ele e os seus pares vão sobreviver na “feira
de gado” e, perante um orçamento tão ou mais difícil do que o de
2016 e num mundo cada vez mais enlouquecido, como irão ser capazes
de nos dizer que ou o país recupera um pouco da tensão e energia
dos anos recentes, ou estará condenado a ouvir discursos como o da
noite de Natal enquanto se dedica a surfar na maionese. Não é por
nada, mas tanto amor e carinho, dissimulação e cócegas no umbigo
começam a fazer uma narrativa um tudo ou nada aborrecida.
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