A
caminho de uma nova Guerra Fria entre os EUA e a China?
A
estratégia de Trump pode desencadear uma nova Guerra-Fria. Não será
uma repetição do passado mas um novo tipo susceptível de danificar
seriamente a economia mundial.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES
13 de Dezembro de
2016, 20:34
1. Uma das
consequências mais inesperadas da vitória de Donald Trump pode ser
o desencadear de uma nova Guerra Fria. Quando o mundo esperava a
vitória de Hillary Clinton nas eleições norte-americanas — e uma
atitude mais assertiva face à Rússia e à sua intervenção na
guerra da Síria e ingerência no Leste da Ucrânia —, a
surpreendente vitória de Trump alterou esse cenário. A
possibilidade que está a emergir de uma nova Guerra Fria não
envolve a Rússia, mas a China, e será de um novo tipo. A
confrontação que decorreu entre 1946-1947 e 1989-1991 tinha como
actores político-militares os EUA e a antiga União Soviética.
Ambos tinham numerosos aliados a alimentavam guerras por procuração
em vários pontos do mundo. Mas essa foi a Guerra Fria do passado. O
novo conflito tem agora como actores os EUA (a superpotência que
venceu a Guerra-Fria do século XX) e a China (a superpotência
emergente que ameaça a primazia global dos EUA). As declarações de
Trump fortemente críticas da China durante a campanha eleitoral —
sobretudo em questões comerciais e cambiais —, foram reiteradas
nesta fase de transição para as funções presidenciais, que
assumirá em inícios de 2017. A isto acresceu uma polémica sobre um
assunto extremamente sensível para a República Popular da China: a
questão de Taiwan (Formosa no nome tradicional em português).
2. O comportamento
de Trump em matéria de política internacional é bastante errático
e desfasado das abordagens mais usuais da diplomacia norte-americana.
Entre outras consequências, isso torna-o particularmente
imprevisível. Muito provavelmente vai ser assim ao longo do seu
mandato, ou pelo menos, durante os primeiros tempos. Apesar de tudo,
parece existir uma estratégia face às duas grandes potências
rivais: Rússia e China. Fundamentalmente parece assentar numa
cooperação pragmática com a Rússia, reconhecendo-lhe, explícita
ou implicitamente, esferas de influência como na Síria ou na
Ucrânia. A recente indigitação de Rex Tillerson para Secretário
de Estado — um milionário ligado à indústria de petróleo
(ExxonMobil) e com boas relações com a Rússia (em 2013 foi
condecorado por Vladimir Putin com a medalha de Ordem da Amizade) —,
reforça a ideia de existir essa estratégia. Quanto à China, Trump
parece querer confrontá-la naquilo que põe em causa o interesse
nacional norte-americano, especialmente em questões comerciais e
cambiais. Voluntária ou involuntariamente essa estratégia, bem mais
assertiva e conflitual do que a de Barack Obama e John Kerry, pode
desencadear uma nova Guerra-Fria. Não será uma repetição do
passado mas um novo tipo susceptível de danificar seriamente a
economia mundial. A China, ao contrário da União Soviética, é uma
grande potência capitalista autoritária, com presença económica
global e interligada à economia norte-americana.
3. A cooperação
pragmática com a Rússia e a confrontação
económico-comercial-política com a China, são peças de uma
relação triangular que parece estar a ser configurada para os
próximos tempos. Se isto ocorrer mesmo assim, poderá ser uma
variante da estratégia de Nixon-Kissinger no início dos anos 1970,
a qual também surpreendeu o mundo. Até essa altura, os EUA e a
generalidade dos seus aliados não reconheciam a República Popular
da China — e o governo comunista de Pequim —, como legítimos
representantes de uma única China. A situação perdurava desde
1949, com a chegada ao poder de Mao Tsé-Tung (ou Mao Zedong na
transliteração em língua inglesa), e a fuga de Chiang Kai-shek e
dos seus partidários para Taiwan (Formosa). Nesse período, o
governo de Taipé era considerado o verdadeiro representante legal da
China (República da China), incluindo no Conselho de Segurança da
Nações Unidas. A inversão estratégico-diplomática
norte-americana levou ao reconhecimento da República Popular da
China e do governo de Pequim em detrimento de Taiwan. Só pode ser
entendida no contexto da Guerra-Fria. O objectivo era dividir o campo
comunista e afastar, ainda mais, a China da esfera da União
Soviética. A guerra do Vietname e a procura de uma saída política
para esta entrou igualmente nesse cálculo. Com a China a competir
com os EUA pela supremacia global, Trump parece querer usar similar
estratégia, agora favorecendo a aproximação à Rússia contra a
China.
4. Caso se confirme
esta alteração da política externa norte-americana as
consequências serão enormes e também difíceis de antecipar em
toda a sua amplitude. Pela positiva, a aproximação entre os EUA e a
Rússia poderá facilitar uma solução negociada para a guerra da
Síria. Mas o conflito é complexo e há múltiplos actores com
interesses dificilmente conciliáveis. Um exemplo: Trump parece
querer pôr em causa o acordo nuclear feito com o Irão por Obama e
Kerry. Mas o Irão é outro actor fundamental no conflito da Síria e
aliado de Bashar al-Assad e da Rússia no mesmo. Como se podem
conciliar estas duas linhas em rota de colisão é uma questão em
aberto. Há ainda o caso de dois aliados tradicionais dos EUA com
interesse directo no conflito — Turquia e Arábia Saudita —, nada
interessados em que a Síria fique na esfera de influência da Rússia
e do Irão. Mas, conforme já referido, o cenário mais complexo
joga-se na relação entre os EUA e a China. A estratégia de Trump
parece ser ameaçar com a questão de Taiwan e a política de uma
única China, para obter concessões ao interesse nacional dos EUA,
especialmente em matéria comercial e cambial. Todavia, para o
governo de Pequim, isso toca também no seu interesse nacional
fundamental e na sua soberania. Não é negociável. Vai o conflito
escalar para uma nova Guerra Fria? Se esse cenário ocorrer os
efeitos geopolíticos também se farão sentir, por exemplo, e de uma
maneira bastante óbvia, na Coreia e no Japão. Basta lembrar que a
China é uma peça incontornável na pressão política internacional
sobre a Coreia do Norte e nas sanções económicas contra o seu
programa nuclear.
5. Por último, uma
nota sobre o novo Secretário-Geral das Nações Unidas, António
Guterres, que vai entrar em funções num ambiente internacional
particularmente complexo e tenso. As expectativas quanto àquilo que
poderá fazer estão demasiado elevadas. Impõe-se baixá-las. Apesar
dos seus méritos — e são muitos para este exigentíssimo cargo
internacional —, o facto de não ter sido a primeira escolha de
nenhuma das grandes potências facilitou-lhe a vida, até agora.
Permitiu, por exemplo, que o seu perfil — muito ligado a questões
humanitárias e dos direitos humanos —, mais facilmente pudesse ser
aceite pela Rússia e pela China. Mas muitos dos elogios à sua
escolha são presentes envenenados. Resolver o conflito da Síria,
encontrar soluções para crise dos refugiados, actuar na protecção
dos direitos humanos, implementar os acordos ambientais à escala
mundial, etc. Tudo isto se espera de Guterres. Tudo isto tem uma
forte dimensão política que o ultrapassa. Actuações ambiciosas e
uma liderança forte, colidem, inevitavelmente, com o interesse de
alguma(s) das grandes potências, membros do Conselho de Segurança e
com poder de veto. Parafraseando o antigo Secretário-Geral, Boutros
Boutros-Ghali, que exerceu o cargo nos anos 1990, as grandes
potências não querem um general (só de vez em quando), mas um
secretário — na altura referia-se aos EUA, que se opuseram à sua
reeleição. Mas pode acontecer ainda pior do que isso: a paralisação
da ONU por uma Guerra Fria entre os EUA e China.
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