Quem aparenta não
ter cura nem emenda é José Manuel Fernandes
Com uma retórica de
8 ou 80, José Manuel Fernandes ilustra uma total incapacidade de
compreender um problema com o qual todas as cidades se confrontam e
debatem, e entretanto, reconhecido por todos os respectivos Autarcas.
Enquanto José
Manuel Fernandes opta por enterrar a cabeça na areia, grave para um
ex Director do Público , Fernando Medina , esse, opta pela cegueira assumida .
OVOODOCORVO
REABILITAÇÃO
URBANA
Não
temos cura nem emenda
José Manuel
Fernandes
14/12/2016, 20:59
Décadas a fio os
centros urbanos morreram lentamente. Agora que o turismo os
ressuscitou e o investimento privado os reabilita, os Velhos do
Restelo já se queixam. É a triste sina da nossa mesquinhez.
Há coisas a que
nunca me habituarei, e uma delas é esta coisa bem portuguesa de
desconfiar de tudo o que tem sucesso, de estar sempre com nostalgia
de um tempo que nunca existiu e, no fim do dia, de acabar por
preferir ser “pobrete mas alegrete”, uma característica que
muitos atribuíam à doutrina de Salazar mas que, para meu grande
desgosto, está bem entranhada na nossa cultura secular.
Devo dizer que o
mais recente exemplo dessa nociva forma de ser é a obsessão que vai
por aí por, de repente, haver demasiados turistas no centro de
cidades como o Porto ou Lisboa. De haver muitos investidores a
recuperarem edifícios onde depois funcionam pequenos hotéis, ou
hostels, ou onde surgem pequenos apartamentos vocacionados para o
alojamento local. De os grandes paquetes que passam no Tejo taparem a
vista a alguns restaurantes da esquerda chique. De as ruas estarem
cheias e haver filas para entrar em museus e monumentos. De, crime
dos crimes, alguns desses monumentos estarem a ser bem geridos e a
darem lucro (lucro, imagine-se!, onde é que isso se viu).
Há activistas que
fazem documentários, movimentos para salvar lojas “históricas”
e académicos que se debruçam sobre o momentoso problema da
“gentrificação” (um preconceito como este, para ser levado a
sério e ganhar pergaminhos, tinha de vir associado a uma palavra
cara, que lhe desse alforria intelectual).
Entendamo-nos. Os
centros históricos de Lisboa e do Porto estiveram décadas ao
abandono e a degradar-se. Os prédios caiam aos bocados, fosse no
portuense bairro da Sé ou na lisboeta Mouraria. Houve mesmo um
momento – Agosto de 1988 – em que grande parte do centro de
Lisboa ia ardendo. Criaram-se comissões sem fim para debater a
reabilitação urbana, gabinetes que empregaram centenas de pessoas e
dos quais pouco ou nada resultou, programas públicos que subsidiavam
generosamente quem fizesse obras de recuperação que nunca
arrancavam e por aí adiante. Muita conversa quando pouco ou nada
mudava. Porventura até piorava: não só a degradação continuava a
corroer o tecido urbano, como este se ia desertificando.
Tenho desses tempos
uma memória vivida – de cidadão e de jornalista que inúmeras
vezes escreveu sobre como salvar da ruína o centro das cidades. E
por isso sei bem que a desertificação de que agora se fala é coisa
bem antiga. Basta notar, por exemplo, que a extinta freguesia de São
Nicolau, na Baixa lisboeta, tinha 3.961 habitantes em 1960 e apenas
1.175 em 2001, menos do que os 1.231 de 2011, altura em que,
supostamente, a “gentrificação” já se iniciara; já no Porto,
entre 1981 e 2011, as antigas freguesias de Miragaia, Santo
Ildefonso, São Nicolau, Sé e Vitória perderam mais de metade dos
seus habitantes.
Assim estávamos, em
cuidados paliativos e cansados de promessas, programas, comissões e
fundos especiais, quando de repente tudo mudou.
Primeiro, mudou o
transporte aéreo. Os mesmos aviões que nos levam, por preços
módicos, até aos destinos de férias que apreciamos, trazem aqueles
que noutras alturas nem sonhariam em fazer uma curta escapada de
fim-de-semana até este canto da Europa. Na década de 1980, há 30
anos, ir a Londres custava, em dinheiro desses dias, uns 80 contos
(se incluísse uma noite de fim-de-semana). Ou seja, 400 euros que,
depois da correcção monetária, corresponderiam a uns 1.300 ou
1.400 euros de hoje. Ora hoje, com esse dinheiro, quase daríamos a
volta ao mundo. Mais: o transporte aéreo mudou porque nessa década
de 1980 dois diabos neoliberais, Ronald Reagan e Margaret Thatcher,
desregularam o transporte aéreo e permitiram um ambiente competitivo
que não só fez nascer as low cost, como obrigou as companhias
estabelecidas a baixarem os seus preços.
Cá dentro,
entretanto, mudou a “lei das rendas”. Durante mais de um século
– sim, o congelamento das rendas em Lisboa e Porto começou na I
República – o centro das duas principais cidades portuguesas
sofreu as consequências de um regime que tornava impossível aos
proprietários garantirem a manutenção mínima dos seus imóveis. A
essas leis, e às mais que tímidas reformas que pouco ou nada
liberalizavam, devemos o facto de os mais novos terem sido expulsos
para as periferias e o país inteiro ter-se tornado numa nação de
proprietários, o que tem consequências económicas e sociais
pesadas pela forma como condicionou e condiciona a vida das famílias
portuguesas. Com a mais recente lei das rendas – uma das poucas
reformas estruturais dignas desse nome dos anos da troika – esse
garrote foi, finalmente, solto. E isso começou logo a notar-se no
mercado do arrendamento, quer para habitação, quer comercial.
Se acrescentarmos
mais uma mão cheia de medidas políticas – como a descomplicação
e liberalização da actividade turística promovida por Adolfo
Mesquita Nunes, as campanhas mais inteligentes de promoção de
Portugal no exterior e a renovação das infraestruturas urbanas
promovida pelas autarquias – percebemos como Lisboa e Porto podem
hoje estar a beneficiar não só de uma procura turística
internacional reorientada pelas diferentes crises no Médio Oriente e
Norte de África, como de os investidores estarem a aproveitar um
período de taxas de juro especialmente baixas.
Há meia dúzia de
anos, quando voltei a frequentar com regularidade o centro de Lisboa,
comecei a aperceber-me de um novo dinamismo que, felizmente, só se
tem confirmado e aprofundado. Agora, ao trabalhar no velho Bairro
Alto, vejo como todos os dias há mais prédios a ser recuperados e
novos negócios a aparecerem esquina sim, esquina sim.
Mais: não são
poucos os que, por estes bairros, recuperaram espaços que agora
alugam com o apoio de plataformas como a AirBnB, encontrando novas
formas de rendimento em tempos que continuam a não ser fáceis para
muitas famílias.
Esta é toda uma
nova vida que só pode ser bem-vinda, mesmo que de repente as casas
nos bairrros históricos tenham ficado mais caras e menos acessíveis,
o que é verdade. Acontece porém que, antes, ou não havia casas
para alugar, ou muitas nem sequer tinham condições de
habitabilidade. Nesse antes, como viver no centro da cidade não
estava na moda, ninguém falava de “gentrificação”; agora que
estes bairros voltam a ser apetecíveis, ei-los que choram por não
se terem lembrado mais cedo de para ali se mudarem.
Mais: há muito
barulho à noite? Sim, há, pelo menos em algumas ruas. Mas se
olharmos mais de perto verificaremos que esse barulho tem mais
depressa origem em noctívagos lusitanos do que em turistas de
passagem. Deixem lá a “gentrificação” em paz, que as suas
costas largas não dão para tudo.
Acabe-se pois com as
hipocrisias. Primeiro, o passado era muito pior do que o presente.
Depois, as novas formas de economia associadas às pequenas empresas
turísticas ou ao alojamento local são caminhos com futuro, até
porque permitem que sejam muitos os que beneficiam de forma
descentralizada, isto é, que o dinheiro não fique apenas para os
grandes operadores ou para as cadeias de hotéis. Por fim não
esqueçamos o emprego que toda esta actividade gera – recuperar um
velho imóvel histórico exige uma intensidade de mão-de-obra muito
superior à de construir uma auto-estrada –, não desvalorizemos
todo o dinheiro que dissimina pelos interstícios do tecido social.
Tal como os ludistas
no início do século XIX tentaram parar a revolução industrial com
medo do que esta traria, os nossos modernos ludistas gostariam de
congelar a cidade no ponto que estivesse mais a sei jeito, ou fosse
mais das suas conveniências. E o pior é que não falta quem lhes dê
ouvidos, quem queira voltar a mudar, para pior, a lei das rendas,
quem gostasse de perseguir plataformas como a AirBnB (mesmo os
académicos de falinhas mansas podem ter uma alma de taxistas
anti-UBER), quem até já tenha, por via do Orçamento do Estado,
penalizado fiscalmente o investimento imobiliário e o aluguer de
casas a turistas. Se prosseguirem poder estrangular uma das poucas
áreas onde há dinamismo económico e se criam muitos empregos.
Para quê? Talvez
para ficarem tranquilos na sua-cidade-sua, que em breve estaria de
novo desbotada ou mesmo esboroada, mas que seria sua-sua até se
cansarem de novo dela e dos seus velhos bairros. E, claro, tudo isto
levando a mesma mediana e pretensiosa existência, aquela que só se
incomoda quando alguma coisa parece funcionar, quando os outros tomam
uma iniciativa que escapa à asa tutelar do Estado, quando dezenas e
dezenas, cada um por sim, se atrevem a ressuscitar, sem o seu
“planeamento” e supervisão, centros urbanos que estavam meio
mortos.
Mas é esta a nossa
triste sina, aquela que nos faz estar sempre a recordar que a última
palavra de “Os Lusíadas” é “inveja”. Pois é.
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