OPINIÃO
Livres e iguais
Criar a igualdade à força só com enorme prejuízo da
liberdade. O combate contra o racismo, nas suas modalidades radicais, degenera
rapidamente em racismo.
António Barreto
26 de Junho de
2021, 0:10
https://www.publico.pt/2021/06/26/opiniao/opiniao/livres-iguais-1968022
A mais temível
ameaça actual contra a liberdade e a democracia é a desigualdade. Seja esta
social, racial, cultural, política ou económica. A desigualdade crescente
envenena de tal modo as relações sociais que a liberdade e a democracia se
encontram sob ameaça. No passado, a pobreza estava escondida e a desigualdade
disfarçada. Hoje, uma e outra são universalmente visíveis. Associada a outros
factores de carácter político e cultural, a desigualdade é fonte de conflitos
que põem em causa a solidez das instituições. Por isso, é o mais premente.
Esperava-se que a
democracia poderia liquidar as desigualdades. Há décadas que essa luta
prossegue, com notáveis vitórias da democracia. Na política, na escola, na
economia, na saúde, no trabalho e na cultura, as vitórias da democracia são
inegáveis. A criação de sistemas de saúde e a promoção da escola para todos
deram um enorme contributo para a democracia. A solidez dos Estados de
protecção social é talvez o mais seguro alicerce da democracia contemporânea.
Ainda há número
excessivo de casos de pouca ou nenhuma liberdade e de demasiada desigualdade.
Nas fábricas da China e da Índia, nos bairros urbanos de África e nos campos de
refugiados do Próximo Oriente, não faltam sociedades sem liberdade, sem
democracia e com enorme desigualdade. E mesmo em democracias não é raro
encontrar fenómenos de grande desigualdade e fragilidade social. Mas é
consolador verificar que, no mundo, justiça e igualdade têm uma correlação
forte com democracia e liberdade.
Mas a
desigualdade ameaça também a liberdade de modos imprevistos, os de certos tipos
de luta contra a desigualdade. Como se viu em tantas experiências ditas
comunistas, da União Soviética à China, da Albânia ao Camboja. Criar a
igualdade à força só com enorme prejuízo da liberdade. O combate contra o
racismo, nas suas modalidades radicais, degenera rapidamente em racismo. A luta
contra a autoridade provoca frequentemente o nascimento de poderes
autoritários. Sem mérito, a luta pela igualdade educativa pode provocar
empobrecimento do conhecimento.
Ora, as políticas
de promoção da igualdade, indispensáveis para consolidar a democracia e criar justiça
social, devem ser aceites pela maioria dos contribuintes e dos eleitores. Caso
contrário, estão condenadas. A política de combate à desigualdade não deve ser
de tal modo concebida que se transforma ela própria em fonte de desigualdade e
de injustiça. Com o objectivo de promover a igualdade, não se devem criar
situações em que as minorias, os grupos vulneráveis, os segmentos mais fracos
da população e os grupos mais frágeis acabem por se encontrar em situação
privilegiada relativamente aos que não foram beneficiados por intervenções
oficiais, mas que vivem do seu trabalho, dos seus rendimentos e dos seus
esforços.
São nefastas as
leis e as políticas destinadas a promover direitos de grupos especiais, a
conceder privilégios que causem nova injustiça. Os direitos gerais devem ser
promovidos de modo igual para todos. Os direitos são dos cidadãos, dos seres
humanos, não de minorias ou de grupos, de velhos, de mulheres, de crianças, de
doentes, de LGBTQ, de imigrantes, de negros, de ciganos, de transmontanos ou de
ilhéus.
A promoção do
imigrante, da mulher, do negro, do judeu, do trabalhador, do desempregado, do
analfabeto, do recluso e do doente não deve fomentar a criação de novos grupos,
mas sim aquilo a que se chama actualmente a inclusão. A inclusão deve aumentar
a integração e não a construção de sociedades fragmentadas, em tabuleiros de
xadrez ou em guetos.
A propensão demagógica para criar direitos e favorecer
grupos tem levado a criar um Estado repleto de novos confrontos. Não se passa
um dia sem que surjam novos direitos para novos beneficiários, aumentando ou
insistindo na separação, em vez de integração
É racista a lei
que crie sistemas e dispositivos especiais para certos grupos com
características ditas raciais particulares. É racista a política que crie e
defenda privilégios, garantias e direitos especiais para qualquer grupo
nacional. São sectárias e desiguais as leis e as políticas destinados a
proteger direitos gerais a grupos especiais.
A última fantasia
da União Europeia é a da aprovação de uma moção de apoio às pessoas ditas
LGBTIQ+ e de condenação da legislação repressiva húngara. Muitos países
assinaram. Portugal não assinou, mas disse que estava de acordo. Parece Bill
Clinton, que fumou mas não engoliu. A verdade é que este texto, carregado de
boas intenções, é mais um passo no mau caminho: o que gradualmente constrói uma
nova ortodoxia, um mundo feito de fragmentos, de federações e de comunidades
rivais.
Propinas especiais para negros? Para ciganos? Para
asiáticos? Nem pensar. Será racismo, desigualdade e discriminação. E é provável
que a maioria da população e dos contribuintes não esteja de acordo
A propensão
demagógica para criar direitos e favorecer grupos tem levado a criar um Estado
repleto de novos confrontos. Não se passa um dia sem que surjam novos direitos
para novos beneficiários, aumentando ou insistindo na separação, em vez de
integração. Direitos dos trabalhadores, das crianças, dos velhos, dos
imigrantes, dos negros, dos ciganos, dos rurais, dos urbanos, dos residentes no
interior, dos analfabetos, dos LGBTIQ, dos desempregados, dos estudantes e dos
doentes são direitos sectários, desiguais, racistas e discriminatórios. Todos
esses direitos e garantias podem simplesmente ser os direitos de todos, dos
residentes, dos cidadãos ou simplesmente dos humanos. Caso contrário,
transformam-se em privilégios. Que aliás são, entre nós, favorecidos pela
Constituição, que consagra mais direitos parcelares e de grupos especiais do
que se pode imaginar.
O importante é a
desigualdade e a pobreza. Seja esta moral, educativa ou económica. Saúde?
Educação? Alojamento? Alimentos? Rendimento? Não faltam preocupações para um
governo. Mas não deveria ser especialmente para ciganos ou negros. Nem para
gente do interior ou dos subúrbios. Se for, é racismo, privilégio ou
desigualdade. Se for para todos, é mais fácil que a população aceite e o
contribuinte pague. É mais fácil que as populações aceitem politicamente pois
não são forçadas a ajudar grupos especiais.
Propinas
especiais para negros? Para ciganos? Para asiáticos? Nem pensar. Será racismo,
desigualdade e discriminação. E é provável que a maioria da população e dos
contribuintes não esteja de acordo. Bolsas e subsídios, incluindo custos de
propinas, para todos os que não têm? Todos os que precisam? Sim e é mesmo
possível que grande número dos beneficiários venham a ser negros, ciganos e
imigrantes. Mas não é por isso, por serem negros, ciganos e imigrantes que são
apoiados, mas simplesmente porque são pobres, porque não têm recursos e porque
merecem.
Sociólogo
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