Como nasceu o caso Berardo?
Tudo começou em 2006, 2007, quando o empresário pediu
dinheiro à CGD. Ao longo de anos, Berardo acumulou dívidas e montou expedientes
para evitar pagar aos bancos. Deixou um buraco de mil milhões. Nesta
terça-feira foi detido por suspeita de vários crimes.
Marta Moitinho
Oliveira
29 de Junho de
2021, 15:02
https://www.publico.pt/2021/06/29/economia/noticia/nasceu-caso-berardo-1968397
Dia 29 de Junho
de 2021 — um comunicado da Polícia Judiciária (PJ) revela que Joe Berardo foi
detido nesta terça-feira por suspeita da prática de crimes de administração
danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Mas a
história do empresário que deixou um prejuízo de quase mil milhões de euros na
Caixa Geral de Depósitos (CGD), no Novo Banco e no BCP começou muito antes e
está recheada de esquemas e expedientes para adiar o pagamento das dívidas aos
bancos ao mesmo tempo que exibe no Centro Cultural de Belém (CCB) a colecção de
arte que tinha dado como garantia pelo dinheiro que pediu aos bancos.
Em 2006, José
Manuel Rodrigues Berardo (conhecido por Joe Berardo) pediu um empréstimo à CGD,
através da Metalgest, a que se juntou outro em 2007, através da Fundação
Berardo. Com este financiamento, mas também do BCP, o empresário comprou
essencialmente acções do próprio banco, que vivia uma guerra interna pelo poder
de topo.
O empréstimo
total de quase 350 milhões de euros era coberto por garantias avaliadas entre
316 e 400 milhões de euros em obras de arte. E também por acções do próprio
BCP. Ou seja, o activo comprado tinha como colateral ele próprio.
Dois anos depois,
as dificuldades para saldar as dívidas à CGD, mas também a outros bancos, já
eram do conhecimento do sector financeiro, mas Berardo pediu para não pagar
capital nem juros durante um tempo. As acções do BCP perdiam em bolsa,
encolhendo o valor da garantia, e uma auditoria feita anos mais tarde à CGD pela
EY não encontrou prova da existência do aval pessoal entregue pelo empresário
para alegadamente reforçar a rede de protecção do banco público.
No final de 2008,
a exposição de Berardo à banca (CGD, BCP e BES) já chegava a mil milhões de
euros, sem que em troca os bancos tivessem conseguido renegociações ou avançado
para execuções que lhes permitissem ficar com as garantias. Nessa altura, a
banca negociou um penhor sobre os títulos da Associação Colecção Berardo (ACB),
que era a verdadeira dona da colecção de arte exposta no CCB. O objectivo da
banca era garantir que as obras de arte serviriam para pagar as dívidas.
Anos mais tarde,
Berardo tentou recuperar as obras de arte e minar os avanços dos bancos na
Associação. Em 2016, o Tribunal da Comarca de Lisboa declara nulos os direitos
dos credores negociados em 2008, e Berardo lidera uma assembleia geral da ACB
que modifica os estatutos, com perda de direitos das três instituições
financeiras, e recupera o poder sobre o que fazer à colecção de arte. É no
Verão desse ano que os bancos percebem que já não têm palavra a dizer sobre o
destino da colecção de arte dada em garantia.
Cerca de dez anos
depois do pedido de empréstimo, a CGD, o BCP e o Novo Banco abriram um processo
para que a penhora sobre 75% da colecção de arte fosse executada. Em 2017, os
números conhecidos indicavam que Berardo tinha ido buscar à CGD 400 milhões de
euros, ao BCP 400 milhões, e ao BES um montante que rondava os 200 milhões.
Não existe nota
de que as dívidas tenham sido pagas. Existe antes registo dos expedientes
usados anos a fio pelo empresário e que impediram os bancos de receberem
pagamento através das garantias. Um deles foi revelado pelo próprio Berardo em
2019, na comissão parlamentar de inquérito à recapitalização da Caixa Geral de
Depósitos, que recebeu 3,9 mil milhões de euros do Estado em 2017, quando
confirmou que a associação dona das obras de arte tinha aumentado o capital
para diluir a posição de credores da CGD, do BCP e do Novo Banco. Perante os
deputados, declarou ainda: “Claro que não tenho dívidas”.
Um cliente à
margem das regras
Além disso, a
história de Berardo conta também a história de algumas relações entre bancos e
devedores. Ou pelo menos da relação de Berardo com o banco público. Na comissão
de inquérito, Eduardo Paz Ferreira, antigo presidente do Conselho Fiscal e da
Comissão de Auditoria da Caixa contou que Berardo era um cliente “especial à
margem das regras da CGD”. A singularidade de Berardo e de outros devedores
ficou evidente na auditoria à Caixa, que revelou que a gestão do banco público
deu aval a operações de crédito de grandes devedores que tinham tido parecer
desfavorável da direcção de risco.
A
responsabilização da gestão do banco foi aliás mencionada tanto na auditoria da
EY como nas conclusões a que chegou a comissão de inquérito, que apontaram um
alvo concreto. “A maioria das perdas teve origem nos anos do mandato da
administração liderada por Santos Ferreira”, dizia o relatório da CPI citado na
altura, que identificava outros membros da gestão - como Armando Vara - como
tendo tido “intervenção directa nos créditos problemáticos”.
Além das
operações de crédito aprovadas com parecer desfavorável de risco, um quarto das
operações de crédito foi aprovado sem qualquer suporte técnico, o que sugere
que alguns dos créditos de grandes devedores podem ter sido validados por
critérios subjectivos, com fracas ligações à qualidade das condições oferecidas
como garantia ou ao plano de negócios que poderia justificar o
financiamento.
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