OPINIÃO
A profundidade histórica do atraso português
Na sequência do texto de Fernando Rosas no P2 sobre a
polémica que envolveu a intervenção de Nuno Palma na convenção do Movimento
Europa e Liberdade, o professor de Economia na Universidade de Manchester
responde aos argumentos do historiador.
Nuno Palma
27 de Junho de
2021, 7:32
https://www.publico.pt/2021/06/27/economia/opiniao/profundidade-historica-atraso-portugues-1967798
Fernando Rosas
merece os parabéns por elevar o debate sobre as causas do atraso português
acima do nível infantil em que vários políticos o têm tentado colocar. Rosas
reconhece que “no pós-guerra (…) a economia regista um crescimento sem
precedentes. Será, na história recente do país (…) o período em que se
verificou uma aproximação real em relação às outras economias do Ocidente
europeu”. Quanto eu disse isto no MEL, fui acusado de estar a defender “as
virtudes do regime fascista em Portugal” (eurodeputado Pedro Marques), de ser
“simpatizante da ditadura” (deputado e secretário-geral da Juventude
Socialista) e de estar a “branquear o Estado Novo” (líder parlamentar do PS).
Será que Fernando Rosas também virá a ser alvo das mesmas acusações? O texto de
Rosas, ao afastar-se deste tenebroso obscurantismo anticientífico, é
suficientemente rico para merecer uma resposta, ainda que não tenha conseguido
deixar de lado lamentáveis insinuações e julgamentos de intenção.
O erro
fundamental de Rosas e outros da sua escola, condicionados como estão pelos
seus estereótipos ideológicos, é desconhecerem a profundidade histórica do
atraso português. O essencial é isto: as raízes do atraso de Portugal são muito
anteriores ao Estado Novo, tanto a nível económico como político ou
institucional.
Em termos
económicos, o declínio de Portugal começa décadas antes das guerras
napoleónicas (gráfico abaixo). Quando chegamos a meados do século XIX, Portugal
já era o país mais pobre da Europa Ocidental (conforme tabela). Em 1900, era o
país com maior percentagem de analfabetos (75%). Em termos institucionais, as
Cortes deixaram de se reunir em Portugal a partir de finais do século XVII.
Voltaram a reunir-se no século XIX, em moldes diferentes, mas o sistema
político manteve-se disfuncional.
Por tudo isto, o
Estado Novo herdou um país profundamente atrasado. Não é de surpreender que, em
meados do século XX, vários indicadores de bem-estar estivessem piores do que
os de outros países europeus. Quando se quer analisar as políticas do Estado
Novo, é necessário entender este contexto histórico. E é por isso que não faz
sentido centrar o debate das causas do atraso exclusivamente nesse regime. Como
já tenho salientado, assistimos hoje à mesma lógica política que funcionou
durante séculos: os partidos dominantes do presente sentem a necessidade de
culpar o regime anterior para se legitimarem.
O Estado Novo
tinha essa mesma narrativa para justificar o 28 de Maio. É instrutivo vermos
como um livro único de História, obrigatório para todas as áreas de estudo no
antigo 7.º ano do Liceu, descrevia a Primeira República. Vejamos por exemplo a
4.ª edição de A. Martins Afonso, Curso de História da Civilização Portuguesa:
descreve o regime republicano parlamentar como uma “permanente agitação
política que não lhes dá tempo nem possibilidade de resolver os grandes
problemas da administração pública”. O direito à greve é considerado
facilitador da desordem e balbúrdia. Já “as efémeras gerências dos sucessivos
governos parlamentares não conseguiram realizar a obra de valorização económica
e de pacificação social de que Portugal carecia”. Tudo óbvia propaganda em
causa própria: “Em vez da prometida ‘paz laboriosa’, o país via-se, ao fim de
poucos anos, a braços com uma grande pressão económica e uma permanente
agitação política e social.”
Neste livro,
escreve-se também que a ditadura nacional teria, depois, aberto o caminho ao
que é descrito essencialmente como uma epopeia nacional não menos pacífica nem
gloriosa do que os termos em que a Resolução de Conselho de Ministros que
nomeou Pedro Adão e Silva descreve o 25 de Abril. Sem surpresa, os próprios
republicanos tinham antes feito o mesmo: culparam a monarquia como sendo a
causa do nosso atraso. E os monárquicos liberais haviam culpado os miguelistas.
É sempre a mesma estratégia de passa-culpas.
Rosas e outros
como ele são incapazes de se libertar dos seus estereótipos ideológicos. A
ditadura também veiculava esta visão primária: quem não era pela situação era
logo rotulado de comunista. Não podemos admitir que um regime democrático
fomente este primarismo em que quem analisar objetivamente o Estado Novo é logo
rotulado de fascista. Rosas insinua que o meu objetivo, ao “defender” (segundo
ele) as “maravilhas da economia estado-novista”, consistiria em “apresentar o
modelo económico do Estado Novo como de exemplar atualidade”. Rosas assina como
“historiador”. Também o fazem Manuel Loff, candidato várias vezes nas listas da
CDU, ou Pacheco Pereira. Seria mais honesto assinarem “político”.
No que respeita
às críticas de Rosas ao corporativismo e condicionamento industrial, é curioso
ver alguém defensor de um Estado fortemente intervencionista (ao contrário de
mim) queixar-se dos problemas que resultam da supressão da concorrência e de
setores “garantidos administrativamente pelo Estado”. Já no que respeita à
existência de salários baixos, chamo a atenção para um estudo onde se mostra
que numa grande empresa oligopolista, a CUF do Barreiro, o salário médio real
da mão de obra cresceu 250% entre 1925 e 1974 (Lima et al. 2010). Infelizmente,
quando faz comparações de salários internacionais, Rosas mostra desconhecer a
noção de paridades de poder de compra.
Apesar de o
crescimento só se ter iniciado em força a partir do pós-guerra, na verdade, já
havia crescimento anterior, ao contrário do que Rosas afirma — como pode ser
verificado no gráfico. Mas o que é mais importante é que houve aspetos em que a
ditadura militar e o Estado Novo estiveram associados a progresso desde um
momento anterior à guerra. Um aspeto importante foi o combate contra um problema
secular da economia portuguesa: o analfabetismo. Na sequência de uma Primeira
República que nesta área tudo havia prometido e pouco havia conseguido, houve
um claro progresso na luta contra o analfabetismo infantil logo desde 1926,
tendo sido a validade do nosso estudo já reconhecido em Portugal, por exemplo,
pelo economista Luís Aguiar-Conraria.
É por isso falsa
a ideia de que o país só se desenvolveu a partir do pós-guerra. Note-se, aliás,
que Rosas escreve que, “com cerca de 29% de analfabetos em 1970, Portugal só
era ultrapassado pela Turquia”. Comete a falácia de misturar gerações: em 1970
o Estado Novo já tinha resolvido o problema do analfabetismo entre as crianças,
por isso resolvendo o problema a prazo. E com referência aos dias de hoje, Portugal
continua a ser dos países mais atrasados da Europa a nível educativo, mesmo
entre os jovens: continua a ser dos mais próximos da Turquia, mesmo para as
gerações posteriores ao 25 de Abril. Também isto é culpa do Estado Novo?
O erro fundamental de Rosas e outros da sua escola,
condicionados como estão pelos seus estereótipos ideológicos, é desconhecerem a
profundidade histórica do atraso português
Como eu sempre
disse, o progresso económico que aconteceu durante o Estado Novo não justifica
o regime a nível político. Mas, ao contrário do que afirma Rosas, é evidente
que a política se pode separar da economia no sentido em que também foi por ter
sido uma economia de mercado, progressivamente integrada no mercado europeu,
que Portugal cresceu e convergiu de forma sustentada — o que não aconteceu nas
economias comunistas do Leste da Europa. A economia chinesa tem crescido de
forma sustentada nas últimas décadas numa lógica semelhante, e reconhecer isso
não é branquear coisa nenhuma. O ridículo é querer fazer do Estado Novo bode
expiatório para os sérios problemas que Portugal tem hoje, como tentam fazer
políticos oportunistas.
O Estado Novo foi
um regime do seu tempo, que até conseguiu fazer reformas a nível educativo, de
justiça (Álvares e Garoupa 2020) e de integração europeia. Nem eu nem nenhum
outro liberal tem qualquer tipo de atração por ditaduras: pelo contrário, são
as economias de planeamento central que Rosas admira que são por natureza
ditatoriais. Já os nossos problemas de hoje são em primeiro lugar
responsabilidade das instituições e dos políticos atuais.
Termino com uma
dolorosa observação: se até um regime tão iníquo e condenável como o Estado
Novo conseguiu gerar convergência e aumentos de bem-estar para a população,
algo de grave tem de estar a falhar com o comportamento das instituições e
elites políticas que nos governam. A verdade é que o modelo económico português
excessivamente assente no Estado e nas ajudas europeias gera menos crescimento
e mais desigualdade do que os modelos mais liberais e mais democráticos de
vários países da Europa do Leste, ainda que tenham partido de uma situação
económica pior do que a nossa há apenas 20 anos. É por isso que estamos a
divergir da Europa e é para aqui que temos de olhar para encontrar a verdadeira
fonte dos nossos problemas.
Quanto à
historiografia militante antifascista de Rosas e outros como ele: é
manifestamente provinciana, sendo a sua influência nacional proporcional à sua
completa irrelevância internacional. Define-se pela falta de rigor
quantitativo, pela incapacidade de separar afirmações descritivas de normativas
e pelas constantes manipulações demagógicas que tornam inviável qualquer tipo
de análise isenta. Tudo não passa de política mascarada de história e, como
tal, tem o mesmo destino da historiografia nacionalista do tempo do Estado
Novo: daqui a 50 anos, será vista como um curioso produto do seu tempo — e nada
mais.
Professor de
Economia na Universidade de Manchester e Investigador do ICS-ULisboa
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