IMAGEM DE OVOODOCORVO
Então e quem decidiu emprestar dinheiro a Berardo?
Se de um financeiro espertalhão não espanta que não pague
o que deve, já a incompetência de quem administra um banco público é mais
grave.
Maria João
Marques
29 de Junho de
2021, 22:10
https://www.publico.pt/2021/06/29/opiniao/opiniao/entao-decidiu-emprestar-dinheiro-berardo-1968453
Qualquer pessoa
que assistiu à prestação de Joe Berardo na Comissão Parlamentar de Inquérito à
CGD em 2019 sentiu o coração aquecendo ligeiramente quando leu ou ouviu a
notícia que dava Joe Berardo detido por suspeitas de fraude fiscal, burla
agravada e branqueamento de capitais. O gozo e o desrespeito ostensivos de
Berardo para com os deputados da comissão de inquérito – e, donde, o gozo e o
desrespeito para com os eleitores que os deputados representam – foi um dos
momentos mais subterrâneos acontecidos na Assembleia da República nos últimos
anos. Tendo em conta que a CGD recebeu de 2007 a 2019 mais de seis mil milhões
de euros de dinheiro dos contribuintes – incluindo daqueles que passam horas
nos transportes públicos para ir diariamente trabalhar e ao fim do mês recebem
umas centenas de euros –, e que as relações de Berardo com a CGD deram um
simpático contributo para tal cogumelo atómico, o desprezo evidenciado sem pejo
no Parlamento pelos danos causados aos seus concidadãos foi insuportável de
ver.
Mas este caso de
Joe Berardo tem outro lado, mais pestilento ainda. A saber: quem e por que
razão decidiu que a CGD deveria emprestar milhões de euros sem fim a Joe
Berardo. Se de um financeiro espertalhão e sem sentido ético desenvolvido não
espanta que se se envolva em todos os esquemas para não pagar o que deve, já a
displicência, a incompetência e as motivações políticas de quem administra ou
tutela um banco público são mais graves, porque vindas de quem tem obrigação de
zelar pelo bem comum.
Os empréstimos da
CGD a Joe Berardo têm razão conhecida: a vontade do governo de José Sócrates
controlar o BCP. Há uns anos, Jardim Gonçalves disse a este jornal, sobre os
sobressaltos do BCP naqueles anos, “O que sei é que o primeiro-ministro [José
Sócrates] e o ministro das Finanças [Fernando Teixeira dos Santos] precisavam
de ter um controlo mais fino do sistema financeiro para fazerem a colocação da
dívida pública. Mandavam na CGD e o BES era dócil e tomava a dívida pública e o
BCP era independente”. (Dívida pública – aquela realidade que cresceu tanto
durante os governos Sócrates que os juros se tornaram incomportáveis, às tantas
era considerada lixo e obrigou a um resgate financeiro internacional em 2011.)
Vai daí, a CGD
emprestou dinheiro a vários empresários conhecidos, entre eles Joe Berardo,
para que comprassem ações do BCP e forçassem uma administração amigável ao
governo. Armando Vara (eterno presente em esquemas estranhos) e Carlos Santos
Pereira estavam na administração da CGD quando os empréstimos foram aprovados.
E terminaram ambos – grande coincidência – como administrador e presidente do
BCP. As escolhas para os lugares cimeiros de ambas as instituições não terão
sido por mérito, certamente, uma vez que a dupla está ligada aos piores
momentos dos dois bancos.
Claro que nos
tempos socráticos esta rebaldaria entre negócios privados e públicos era
negócio como de costume. Ninguém investigou, poucos criticaram. Os esquemas
passaram-se em 2006 e 2007. Em 2017 (dez anos depois; perfeitamente a tempo,
portanto), a esquerda parlamentar encerrou a correr uma comissão parlamentar de
inquérito à CGD para impedir que o banco público tivesse de enviar aos
deputados a lista dos grandes devedores.
Segundo a Polícia
Judiciária, desde 2016 (há cinco anos, dez anos após os eventos suspeitos – que
ser apressado causa burnout) investigam-se estes empréstimos, obtidos,
suspeita-se, por Joe Berardo através de “relações privilegiadas” com o governo
Sócrates. A PJ “identificou procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação,
acompanhamento e recuperação de crédito, contrários às boas práticas bancárias
e que podem configurar a prática de crime”. Estamos em 2021, investigando se há
quinze anos os governantes e os administradores de um banco público cometeram crimes
na concessão de um empréstimo. Mais um prazo perfeitamente normal para uma
investigação, claro.
A Polícia
Judiciária aparentemente também investiga a ligação entre a cedência das obras
do Museu Berardo expostas no CCB e estes empréstimos da CGD a Joe Berardo. O
acordo para a coleção de arte, cedendo o Estado em todas as exigências de
Berardo, foi duramente criticado pelo então Presidente da República, Cavaco
Silva, por desproteger os interesses públicos, e inicialmente recusado com
veemência pela então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima. Porém, por
artes mágicas, contra a vontade do PR e da ministra, o governo Sócrates assinou
o acordo vantajoso (e repleto de ambiguidades) para Berardo.
Na CGD, os
empréstimos foram concedidos com a incompetência que a mistura ilegítima entre
interesses públicos e privados exigia. Um aval pessoal de trinta e oito milhões
de euros de Berardo à CGD nunca foi localizado. Ninguém se lembra de ter
proposto os empréstimos (a memória seletiva é sempre conveniente). Quando
Berardo fez a manigância de diluir os poderes dos bancos na Associação Coleção
Berardo, a CGD não deu pela perda de parte das garantias.
No meio disto
tudo, é impossível não nos repugnarmos com a impunidade de toda a gente
envolvida e garantida por – outra vez – toda a gente. Perante a decisão da
instrução da Operação Marquês, e tendo em conta prazos de prescrição, só
podemos sorrir com as investigações da PJ ao que se passou há quinze anos.
Servem para quê?
A CGD foi descaradamente usada para servir os interesses
de Sócrates e Berardo (e outros), mas que fazer? Se tudo se passou à frente de
toda a gente e ninguém quis saber, por que nos incomodaríamos quinze anos
depois?
Politicamente,
também não haverá consequências. As comissões parlamentares de inquérito aos
bancos estão transformadas em reality shows de gosto duvidoso em que os
deputados – e alguns têm excelentes prestações, como Cecília Meireles ou
Mariana Mortágua – são gozados por empresários e gestores desmemoriados e sem
qualquer espírito cívico. O PS, não querendo reclamar a herança socrática,
finge afincadamente que o partido não teve nada que ver com Sócrates, essa
personagem duvidosa que hipnotizou e tirou a capacidade crítica a toda a gente
que com ele esteve no governo e no partido.
Economicamente
não há crise, que os contribuintes são mansos e agora estão compreensivelmente
mais ocupados com as consequências económicas da pandemia. A CGD foi
descaradamente usada para servir os interesses de Sócrates e Berardo (e
outros), mas que fazer? Se tudo – empréstimos a Berardo, ofensiva sobre o BCP,
acordo para a coleção – se passou à frente de toda a gente e ninguém quis
saber, por que nos incomodaríamos quinze anos depois?
Avancemos, não há
nada para ver aqui.
A autora escreve
segundo o novo acordo ortográfico
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