quarta-feira, 30 de junho de 2021

Então e quem decidiu emprestar dinheiro a Berardo?

 

IMAGEM DE OVOODOCORVO


Então e quem decidiu emprestar dinheiro a Berardo?

 

Se de um financeiro espertalhão não espanta que não pague o que deve, já a incompetência de quem administra um banco público é mais grave.

 



Maria João Marques

29 de Junho de 2021, 22:10

https://www.publico.pt/2021/06/29/opiniao/opiniao/entao-decidiu-emprestar-dinheiro-berardo-1968453

 

Qualquer pessoa que assistiu à prestação de Joe Berardo na Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD em 2019 sentiu o coração aquecendo ligeiramente quando leu ou ouviu a notícia que dava Joe Berardo detido por suspeitas de fraude fiscal, burla agravada e branqueamento de capitais. O gozo e o desrespeito ostensivos de Berardo para com os deputados da comissão de inquérito – e, donde, o gozo e o desrespeito para com os eleitores que os deputados representam – foi um dos momentos mais subterrâneos acontecidos na Assembleia da República nos últimos anos. Tendo em conta que a CGD recebeu de 2007 a 2019 mais de seis mil milhões de euros de dinheiro dos contribuintes – incluindo daqueles que passam horas nos transportes públicos para ir diariamente trabalhar e ao fim do mês recebem umas centenas de euros –, e que as relações de Berardo com a CGD deram um simpático contributo para tal cogumelo atómico, o desprezo evidenciado sem pejo no Parlamento pelos danos causados aos seus concidadãos foi insuportável de ver.

 

Mas este caso de Joe Berardo tem outro lado, mais pestilento ainda. A saber: quem e por que razão decidiu que a CGD deveria emprestar milhões de euros sem fim a Joe Berardo. Se de um financeiro espertalhão e sem sentido ético desenvolvido não espanta que se se envolva em todos os esquemas para não pagar o que deve, já a displicência, a incompetência e as motivações políticas de quem administra ou tutela um banco público são mais graves, porque vindas de quem tem obrigação de zelar pelo bem comum.

 

Os empréstimos da CGD a Joe Berardo têm razão conhecida: a vontade do governo de José Sócrates controlar o BCP. Há uns anos, Jardim Gonçalves disse a este jornal, sobre os sobressaltos do BCP naqueles anos, “O que sei é que o primeiro-ministro [José Sócrates] e o ministro das Finanças [Fernando Teixeira dos Santos] precisavam de ter um controlo mais fino do sistema financeiro para fazerem a colocação da dívida pública. Mandavam na CGD e o BES era dócil e tomava a dívida pública e o BCP era independente”. (Dívida pública – aquela realidade que cresceu tanto durante os governos Sócrates que os juros se tornaram incomportáveis, às tantas era considerada lixo e obrigou a um resgate financeiro internacional em 2011.)

 

 

Vai daí, a CGD emprestou dinheiro a vários empresários conhecidos, entre eles Joe Berardo, para que comprassem ações do BCP e forçassem uma administração amigável ao governo. Armando Vara (eterno presente em esquemas estranhos) e Carlos Santos Pereira estavam na administração da CGD quando os empréstimos foram aprovados. E terminaram ambos – grande coincidência – como administrador e presidente do BCP. As escolhas para os lugares cimeiros de ambas as instituições não terão sido por mérito, certamente, uma vez que a dupla está ligada aos piores momentos dos dois bancos.

 

Claro que nos tempos socráticos esta rebaldaria entre negócios privados e públicos era negócio como de costume. Ninguém investigou, poucos criticaram. Os esquemas passaram-se em 2006 e 2007. Em 2017 (dez anos depois; perfeitamente a tempo, portanto), a esquerda parlamentar encerrou a correr uma comissão parlamentar de inquérito à CGD para impedir que o banco público tivesse de enviar aos deputados a lista dos grandes devedores.

 

Segundo a Polícia Judiciária, desde 2016 (há cinco anos, dez anos após os eventos suspeitos – que ser apressado causa burnout) investigam-se estes empréstimos, obtidos, suspeita-se, por Joe Berardo através de “relações privilegiadas” com o governo Sócrates. A PJ “identificou procedimentos internos em processos de concessão, reestruturação, acompanhamento e recuperação de crédito, contrários às boas práticas bancárias e que podem configurar a prática de crime”. Estamos em 2021, investigando se há quinze anos os governantes e os administradores de um banco público cometeram crimes na concessão de um empréstimo. Mais um prazo perfeitamente normal para uma investigação, claro.

 

A Polícia Judiciária aparentemente também investiga a ligação entre a cedência das obras do Museu Berardo expostas no CCB e estes empréstimos da CGD a Joe Berardo. O acordo para a coleção de arte, cedendo o Estado em todas as exigências de Berardo, foi duramente criticado pelo então Presidente da República, Cavaco Silva, por desproteger os interesses públicos, e inicialmente recusado com veemência pela então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima. Porém, por artes mágicas, contra a vontade do PR e da ministra, o governo Sócrates assinou o acordo vantajoso (e repleto de ambiguidades) para Berardo.

 

Na CGD, os empréstimos foram concedidos com a incompetência que a mistura ilegítima entre interesses públicos e privados exigia. Um aval pessoal de trinta e oito milhões de euros de Berardo à CGD nunca foi localizado. Ninguém se lembra de ter proposto os empréstimos (a memória seletiva é sempre conveniente). Quando Berardo fez a manigância de diluir os poderes dos bancos na Associação Coleção Berardo, a CGD não deu pela perda de parte das garantias.

 

No meio disto tudo, é impossível não nos repugnarmos com a impunidade de toda a gente envolvida e garantida por – outra vez – toda a gente. Perante a decisão da instrução da Operação Marquês, e tendo em conta prazos de prescrição, só podemos sorrir com as investigações da PJ ao que se passou há quinze anos. Servem para quê?

 

A CGD foi descaradamente usada para servir os interesses de Sócrates e Berardo (e outros), mas que fazer? Se tudo se passou à frente de toda a gente e ninguém quis saber, por que nos incomodaríamos quinze anos depois?

 

Politicamente, também não haverá consequências. As comissões parlamentares de inquérito aos bancos estão transformadas em reality shows de gosto duvidoso em que os deputados – e alguns têm excelentes prestações, como Cecília Meireles ou Mariana Mortágua – são gozados por empresários e gestores desmemoriados e sem qualquer espírito cívico. O PS, não querendo reclamar a herança socrática, finge afincadamente que o partido não teve nada que ver com Sócrates, essa personagem duvidosa que hipnotizou e tirou a capacidade crítica a toda a gente que com ele esteve no governo e no partido.

 

Economicamente não há crise, que os contribuintes são mansos e agora estão compreensivelmente mais ocupados com as consequências económicas da pandemia. A CGD foi descaradamente usada para servir os interesses de Sócrates e Berardo (e outros), mas que fazer? Se tudo – empréstimos a Berardo, ofensiva sobre o BCP, acordo para a coleção – se passou à frente de toda a gente e ninguém quis saber, por que nos incomodaríamos quinze anos depois?

 

Avancemos, não há nada para ver aqui.

 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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