OPINIÃO
Ele não disse mas pensou ou a manipulação da História
Dá-me ideia de que da mesma forma que só judeus podem
fazer piadas sobre campos de concentração, também há historiadores de esquerda
que julgam que só eles podem realçar números positivos do Estado Novo.
João Miguel
Tavares
29 de Junho de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/06/29/opiniao/opiniao/nao-pensou-manipulacao-historia-1968324
Há dias
perguntaram-me que habilitações tinha eu para me envolver em discussões sobre a
história do Estado Novo, ainda na sequência da badalada intervenção de Nuno
Palma no colóquio do MEL. A pergunta está logo errada: nunca estive envolvido
em discussões sobre a história do Estado Novo. Estive envolvido, isso sim, numa
discussão sobre a manipulação do discurso na democracia portuguesa. São coisas
muito diferentes, como se tem comprovado ao longo das últimas semanas.
Por esta altura,
já se pronunciaram sobre este caso políticos e historiadores (alguns acumulam)
como Ana Catarina Mendes, Pedro Marques, Pacheco Pereira, Manuel Loff, Fernando
Rosas ou Irene Pimentel. O grau de seriedade com que o tema foi abordado varia
muito, desde o relativamente sério (o texto de Fernando Rosas “O milagre da
economia sem política”, que no que diz respeito aos factos confirma tudo aquilo
que Palma disse no colóquio) ao absolutamente indigente (Manuel Loff, who
else?, que consegue misturar Jair Bolsonaro, Nuno Palma e o último livro de
José Gomes Ferreira num só texto). No entanto, cada um deles, à sua maneira,
fizeram pelo menos uma de duas coisas (alguns acumulam): ou colocaram na boca
de Palma palavras que ele nunca disse; ou utilizaram a velha táctica dos casais
que já não se conseguem suportar um ao outro – ele não disse, mas pensou.
Ainda esta
segunda-feira Luís Reis Torgal veio acrescentar um artigo (“E se só a Ciência
for revolucionária?”) à polémica, no qual afirma: “Palma quis provar que a
economia nacional e o PIB cresceram com o Estado Novo, louvando indirectamente
o regime.” Pergunto: como é que alguém que gasta uma página inteira a elogiar o
pensamento científico transforma a constatação de um facto objectivo num
louvor? O próprio Reis Torgal admite logo a seguir que “serão em parte reais
estas conclusões, mas um historiador teria sempre de enquadrar esses fenómenos
em toda a sua complexidade”.
A argumentação
anti-Palma pelos historiadores de esquerda dados à intervenção pública segue
sempre o mesmo padrão. 1) Admitem que os factos que Palma apresentou sobre o
crescimento durante o Estado Novo, a alfabetização ou a mortalidade infantil
são verdadeiros. 2) Afirmam que Palma não contextualizou tais factos
devidamente. 3) Defendem que Palma, mesmo tendo declarado o Estado Novo
“indefensável”, só o fez por “mera retórica”, porque o seu objectivo secreto
era louvar “indirectamente” Salazar. Deve ser isto a ciência revolucionária de
Torgal, Rosas & Pacheco.
Haverá razões
para a repetição contínua deste padrão? Uma delas, se quisermos ser
benevolentes, poderá ser geracional – quem não nasceu durante o Estado Novo não
tem uma relação pessoal e afectiva com a ditadura (seja amor nostálgico, seja
ódio visceral), e consegue olhar para ela de forma muito mais distanciada. Mas
isso é um ponto a favor de Nuno Palma, e a desfavor de todos os outros. Outra
razão, menos benévola, está relacionada com a protecção de um certo território
académico. Dá-me ideia de que da mesma forma que só judeus podem fazer piadas
sobre campos de concentração, também há historiadores de esquerda que julgam
que só eles podem realçar números positivos do Estado Novo. Se for Fernando
Rosas ou Luís Reis Torgal a fazê-lo, estão a ser excelentes historiadores. Se
for Nuno Palma ou Rui Ramos, estão a ser fascistas ou, no mínimo, simpatizantes
de Salazar. Acham mesmo que isto é um debate sobre História? Olhem outra vez.
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