terça-feira, 29 de junho de 2021

Ele não disse mas pensou ou a manipulação da História




OPINIÃO

Ele não disse mas pensou ou a manipulação da História

 

Dá-me ideia de que da mesma forma que só judeus podem fazer piadas sobre campos de concentração, também há historiadores de esquerda que julgam que só eles podem realçar números positivos do Estado Novo.

 

João Miguel Tavares

29 de Junho de 2021, 0:00

https://www.publico.pt/2021/06/29/opiniao/opiniao/nao-pensou-manipulacao-historia-1968324

 

Há dias perguntaram-me que habilitações tinha eu para me envolver em discussões sobre a história do Estado Novo, ainda na sequência da badalada intervenção de Nuno Palma no colóquio do MEL. A pergunta está logo errada: nunca estive envolvido em discussões sobre a história do Estado Novo. Estive envolvido, isso sim, numa discussão sobre a manipulação do discurso na democracia portuguesa. São coisas muito diferentes, como se tem comprovado ao longo das últimas semanas.

 

Por esta altura, já se pronunciaram sobre este caso políticos e historiadores (alguns acumulam) como Ana Catarina Mendes, Pedro Marques, Pacheco Pereira, Manuel Loff, Fernando Rosas ou Irene Pimentel. O grau de seriedade com que o tema foi abordado varia muito, desde o relativamente sério (o texto de Fernando Rosas “O milagre da economia sem política”, que no que diz respeito aos factos confirma tudo aquilo que Palma disse no colóquio) ao absolutamente indigente (Manuel Loff, who else?, que consegue misturar Jair Bolsonaro, Nuno Palma e o último livro de José Gomes Ferreira num só texto). No entanto, cada um deles, à sua maneira, fizeram pelo menos uma de duas coisas (alguns acumulam): ou colocaram na boca de Palma palavras que ele nunca disse; ou utilizaram a velha táctica dos casais que já não se conseguem suportar um ao outro – ele não disse, mas pensou.

 

Ainda esta segunda-feira Luís Reis Torgal veio acrescentar um artigo (“E se só a Ciência for revolucionária?”) à polémica, no qual afirma: “Palma quis provar que a economia nacional e o PIB cresceram com o Estado Novo, louvando indirectamente o regime.” Pergunto: como é que alguém que gasta uma página inteira a elogiar o pensamento científico transforma a constatação de um facto objectivo num louvor? O próprio Reis Torgal admite logo a seguir que “serão em parte reais estas conclusões, mas um historiador teria sempre de enquadrar esses fenómenos em toda a sua complexidade”.

 

A argumentação anti-Palma pelos historiadores de esquerda dados à intervenção pública segue sempre o mesmo padrão. 1) Admitem que os factos que Palma apresentou sobre o crescimento durante o Estado Novo, a alfabetização ou a mortalidade infantil são verdadeiros. 2) Afirmam que Palma não contextualizou tais factos devidamente. 3) Defendem que Palma, mesmo tendo declarado o Estado Novo “indefensável”, só o fez por “mera retórica”, porque o seu objectivo secreto era louvar “indirectamente” Salazar. Deve ser isto a ciência revolucionária de Torgal, Rosas & Pacheco.

 

Haverá razões para a repetição contínua deste padrão? Uma delas, se quisermos ser benevolentes, poderá ser geracional – quem não nasceu durante o Estado Novo não tem uma relação pessoal e afectiva com a ditadura (seja amor nostálgico, seja ódio visceral), e consegue olhar para ela de forma muito mais distanciada. Mas isso é um ponto a favor de Nuno Palma, e a desfavor de todos os outros. Outra razão, menos benévola, está relacionada com a protecção de um certo território académico. Dá-me ideia de que da mesma forma que só judeus podem fazer piadas sobre campos de concentração, também há historiadores de esquerda que julgam que só eles podem realçar números positivos do Estado Novo. Se for Fernando Rosas ou Luís Reis Torgal a fazê-lo, estão a ser excelentes historiadores. Se for Nuno Palma ou Rui Ramos, estão a ser fascistas ou, no mínimo, simpatizantes de Salazar. Acham mesmo que isto é um debate sobre História? Olhem outra vez.


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