quarta-feira, 30 de junho de 2021

É evidente. Era evidente. Sempre foi evidente

 



OPINIÃO

É evidente. Era evidente. Sempre foi evidente

 

Viver em Portugal em 2009 sem perceber quem aquela gente era e o que andava a fazer é como ir a Belém e não ser capaz de encontrar o Mosteiro dos Jerónimos ou o CCB.

 

João Miguel Tavares

30 de Junho de 2021, 15:42

https://www.publico.pt/2021/06/30/opiniao/opiniao/evidente-evidente-evidente-1968565

 

O que une Joe Berardo a Carlos Santos Ferreira? O homem do costume. Perguntam-me muitas vezes por que escrevo tanto sobre José Sócrates. É simples: porque ele estava em todo o lado e tudo estava à vista. Nunca foi preciso ser especialmente lúcido para ver o que se passava em Portugal na altura. Foi preciso, isso sim, ser especialmente cego para não ver ou especialmente cúmplice para não querer ver.

 

Se Sócrates, Vara, Santos Ferreira, Berardo e tantos outros que brilharam naqueles anos fossem mestres do crime, conspirando habilmente na sombra, eu — e outros como eu, porque felizmente nunca estive sozinho — poderia estar hoje aqui a armar-me em Sherlock Holmes da política portuguesa, apresentando centenas de crónicas com as minhas magníficas deduções sobre Sócrates & Companhia. Infelizmente, não posso. Viver em Portugal em 2009 sem perceber quem aquela gente era e o que andava a fazer é como ir a Belém e não ser capaz de encontrar o Mosteiro dos Jerónimos ou o CCB.

 

Aqueles que hoje bufam de enfado ao ouvir o nome de José Sócrates — “oh, não, lá vem ele outra vez!” — e insistem em desvalorizar aquilo que foi um verdadeiro assalto às instituições do país e um atentado ao Estado de direito fazem-no por uma razão muito prosaica — querem que esqueçamos que erraram como eleitores, como portugueses informados, como cidadãos que adoram encher a boca com os grandes valores da democracia, para depois falharem clamorosamente na hora em que é urgente defendê-la.

 

Pior: não perceberam nada e não aprenderam nada. Continuo a assistir a uma desvalorização generalizada do renovado assalto do PS ao Estado e a instituições que deveriam ser independentes, do Banco de Portugal aos reguladores, passando pela relação cada vez mais problemática com partes do Ministério Público. Porquê? Porque os que estão no poder são “dos nossos” — parecendo não compreender que esta lógica de tribalismo partidário aplicada aos pilares essenciais do sistema democrático é profundamente corrosiva e que as opções ideológicas entre esquerda e direita vêm depois da protecção das estruturas básicas de uma democracia funcional. Os pesos e contrapesos, a independência dos vários poderes, são património comum de todos os democratas — e só depois de esse núcleo de valores essenciais estar assegurado é que faz sentido a dissensão partidária.

 

Não é isso que acontece em Portugal, onde o combate político infecta tudo — se forem “dos nossos”, podem assaltar o Estado; se forem “dos nossos”, podem encher os reguladores de “boys” e “girls”; se forem “dos nossos”, podem nomear os seus comissários; se forem “dos nossos”, têm legitimidade para usar todas as armas para controlar o poder. E aqueles que, como eu, escrevem regularmente sobre estes temas são atacados com toneladas de “whataboutism”, porque em tempos a direita fez o mesmo e ninguém falava sobre isso — o que é uma mentira descarada, mas uma mentira que contribui para a constante desvalorização dos abusos que estão a ser cometidos no presente.

 

Depois, 15 anos mais tarde, aparecem os Joe Berardo e os Carlos Santos Ferreira, arguidos numa investigação relacionada com a tomada do BCP com dinheiro da Caixa em 2006 e 2007 — e fingimo-nos espantados com o que aconteceu, como se tudo não se tivesse passado à frente do nosso nariz. Isso está escrito. Ficou registado nas páginas do jornal que estão a ler neste momento. Leiam. Recordem. Para não voltarem a ter de se espantar no dia em que voltar a acontecer.

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