OPINIÃO
É evidente. Era evidente. Sempre foi evidente
Viver em Portugal em 2009 sem perceber quem aquela gente
era e o que andava a fazer é como ir a Belém e não ser capaz de encontrar o
Mosteiro dos Jerónimos ou o CCB.
João Miguel
Tavares
30 de Junho de
2021, 15:42
https://www.publico.pt/2021/06/30/opiniao/opiniao/evidente-evidente-evidente-1968565
O que une Joe
Berardo a Carlos Santos Ferreira? O homem do costume. Perguntam-me muitas vezes
por que escrevo tanto sobre José Sócrates. É simples: porque ele estava em todo
o lado e tudo estava à vista. Nunca foi preciso ser especialmente lúcido para
ver o que se passava em Portugal na altura. Foi preciso, isso sim, ser
especialmente cego para não ver ou especialmente cúmplice para não querer ver.
Se Sócrates,
Vara, Santos Ferreira, Berardo e tantos outros que brilharam naqueles anos
fossem mestres do crime, conspirando habilmente na sombra, eu — e outros como
eu, porque felizmente nunca estive sozinho — poderia estar hoje aqui a armar-me
em Sherlock Holmes da política portuguesa, apresentando centenas de crónicas
com as minhas magníficas deduções sobre Sócrates & Companhia. Infelizmente,
não posso. Viver em Portugal em 2009 sem perceber quem aquela gente era e o que
andava a fazer é como ir a Belém e não ser capaz de encontrar o Mosteiro dos
Jerónimos ou o CCB.
Aqueles que hoje
bufam de enfado ao ouvir o nome de José Sócrates — “oh, não, lá vem ele outra
vez!” — e insistem em desvalorizar aquilo que foi um verdadeiro assalto às
instituições do país e um atentado ao Estado de direito fazem-no por uma razão
muito prosaica — querem que esqueçamos que erraram como eleitores, como
portugueses informados, como cidadãos que adoram encher a boca com os grandes valores
da democracia, para depois falharem clamorosamente na hora em que é urgente
defendê-la.
Pior: não
perceberam nada e não aprenderam nada. Continuo a assistir a uma desvalorização
generalizada do renovado assalto do PS ao Estado e a instituições que deveriam
ser independentes, do Banco de Portugal aos reguladores, passando pela relação
cada vez mais problemática com partes do Ministério Público. Porquê? Porque os
que estão no poder são “dos nossos” — parecendo não compreender que esta lógica
de tribalismo partidário aplicada aos pilares essenciais do sistema democrático
é profundamente corrosiva e que as opções ideológicas entre esquerda e direita
vêm depois da protecção das estruturas básicas de uma democracia funcional. Os
pesos e contrapesos, a independência dos vários poderes, são património comum
de todos os democratas — e só depois de esse núcleo de valores essenciais estar
assegurado é que faz sentido a dissensão partidária.
Não é isso que
acontece em Portugal, onde o combate político infecta tudo — se forem “dos
nossos”, podem assaltar o Estado; se forem “dos nossos”, podem encher os
reguladores de “boys” e “girls”; se forem “dos nossos”, podem nomear os seus
comissários; se forem “dos nossos”, têm legitimidade para usar todas as armas
para controlar o poder. E aqueles que, como eu, escrevem regularmente sobre
estes temas são atacados com toneladas de “whataboutism”, porque em tempos a
direita fez o mesmo e ninguém falava sobre isso — o que é uma mentira
descarada, mas uma mentira que contribui para a constante desvalorização dos
abusos que estão a ser cometidos no presente.
Depois, 15 anos
mais tarde, aparecem os Joe Berardo e os Carlos Santos Ferreira, arguidos numa
investigação relacionada com a tomada do BCP com dinheiro da Caixa em 2006 e 2007
— e fingimo-nos espantados com o que aconteceu, como se tudo não se tivesse
passado à frente do nosso nariz. Isso está escrito. Ficou registado nas páginas
do jornal que estão a ler neste momento. Leiam. Recordem. Para não voltarem a
ter de se espantar no dia em que voltar a acontecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário