OPINIÃO
A gestão do Património Cultural – o futuro da DGPC
A DGPC enferma de dificuldades sérias de recursos
financeiros e humanos que limitam as suas capacidades de prestação de serviço
público. Não se mascare, pois, as dificuldades atuais em modelos organizativos
e com mudanças de diretores gerais ou complexidades de gestão.
Jorge Barreto
Xavier
1 de Julho de
2021, 0:25
No passado dia 25
de Junho, a ministra da Cultura exonerou Bernardo Alabaça do cargo de diretor
geral do património cultural (DGPC). Os motivos publicamente invocados já foram
desmentidos pelo mesmo. É já o segundo diretor geral de património exonerado
pela atual ministra. O que se passa com a DGPC? Mas, mais importante, o que se
passa com a política para o património cultural deste governo?
Património
cultural é o conjunto tangível e intangível que corresponde ao reconhecimento,
veiculação, interação e fruição presente de bens produzidos e vividos pelas
gerações anteriores, assim como da valorização contemporânea da materialidade e
imaterialidade, aos quais se reconhece o estatuto de valores a proteger. Assim,
património cultural pode ser uma igreja, uma fortificação, um palácio, um
castelo, um edifício industrial ou agrícola, um barco ou um coche, mas também
uma pintura, uma escultura, um móvel, uma joia, um utensílio, uma peça de
vestuário, ou ainda um documento, uma criação literária, uma tradição oral, uma
música, uma peça de teatro, uma coreografia. Atualmente, percebe-se que, de
alguma forma, a proteção do património natural – desde as paisagens aos mares,
da flora e da fauna – é uma dinâmicas que não é alheia a uma ideia de
património cultural, o que tem razão acrescida nesta fase da história do
planeta a que se já propôs a classificação de Antropoceno.
Enfim, o
património cultural revela-se por inúmeras manifestações. Dada a importância do
património cultural – pois é através deste que se pode perceber as nossas
raízes, a pluralidade do humano, os quadros de referência que pontuam as nossas
vidas – tanto a nível internacional como nacional, existem normas que regulam o
seu estatuto, formas de proteção e acesso.
São documentos de
referência as Convenções da UNESCO de proteção do património edificado e do
património imaterial, assim como do património afetado por situações de
conflito, tráfico ou falta de conservação, a Convenção Quadro do Conselho da
Europa relativa ao valor do património cultural (também conhecida como
Convenção de Faro), a Lei de Bases do Património Cultural.
Em Portugal, a
nível estatal, há diferentes entidades com responsabilidades na gestão do
património cultural e outras que, não tendo como função direta a gestão de
património cultural, detêm vastos acervos do mesmo. Assim, para além de
entidades na órbita do Ministério da Cultura, nomeadamente, a Direção Geral do
Património Cultural, a Direção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, a
Biblioteca Nacional, os Teatros Nacionais, as Direções Regionais de Cultura,
não podemos esquecer o papel e as responsabilidades das Regiões Autónomas e dos
Municípios. O Ministério das Finanças, o Ministério da Defesa, o Ministério dos
Negócios Estrangeiros, o Ministério da Justiça, nomeadamente, são detentores de
património edificado e património móvel de grande relevância, assim como
universidades públicas, o Banco de Portugal e Caixa Geral de Depósitos. Uma
articulação mais coerente de todos estes acervos, assim como das aquisições de
bens culturais por parte do Estado, seria recomendável, não só para ter uma
noção sistémica do património cultural do Estado como da política de
valorização do mesmo, nomeadamente, através de uma visão sistémica, com
prioridades definidas, das opções aquisitivas, de forma a beneficiar os ativos
prioritários e evitar a dispersão de despesa, por vezes, arbitrária.
A salvaguarda do
património cultural é uma tarefa coletiva. Se, por um lado, o Estado tem
particulares responsabilidades nesta matéria, os cidadãos em geral têm
obrigações sobre o mesmo, nomeadamente, instituições que detêm acervos
patrimoniais importantes, como no caso português a Igreja Católica e algumas
fundações.
Em democracia, a
responsabilidade estatal pela gestão do património cultural, desde a década de
70 do século passado, passou por sucessivas concentrações, fusões e divisões de
serviços. A mais recente reorganização é de 2011, concentrando o então Instituto
de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (Igespar), o Instituto de
Museus e Conservação (IMC) e a Direção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do
Tejo (DRCLVT) na Direção Geral do Património Cultural.
Agora, o Grupo de
Projeto Museus no Futuro, criado pela Resolução do Conselho de Ministros
35/2019, vem no seu Relatório Final, de julho de 2020, evidenciar muitas
dificuldades do sistema museológico público e propor a divisão da DGPC,
separando a componente museológica, palácios e monumentos, da restante
estrutura.
O Relatório,
sendo consistente e bem elaborado, revela dados sobre os quais importa refletir
e não deixa de ter alguns enviesamentos que vale a pena comentar.
Começando pelos
dados. Na sequência da revisão e harmonização dos sistemas de preços e
bilhética dos museus, palácios e sítios na tutela da Direção Geral do
Património Cultural (DGPC) e Direções Regionais de Cultura (DRC), que tomei a
iniciativa de promover quando tive a tutela da Cultura, e do aumento
significativo do turismo estrangeiro nos últimos dez anos, as receitas próprias
destas entidades subiram de forma significativa, com destaque para a DGPC.
Assim, dos 21
milhões de euros de despesas com museus, palácios e monumentos (2018), 58,5%
são com pessoal e 27,6% com aquisição de bens e serviços. 91% das receitas
próprias resultam de ingressos – 17 milhões de euros. Ou seja, grosso modo, a
DGPC beneficia de 18 milhões de euros de receitas só na área dos Museus,
Palácios e Monumentos, face a um orçamento total executado de 32,6 milhões de
euros – mais de metade do seu orçamento são receitas próprias.
A atual estrutura da DGPC é considerada “gigante”,
“modelo falhado”, exageradamente complexa, propondo-se a criação do Instituto
de Museus, Palácios e Monumentos. Se a transformação da DGPC em Instituto de
Gestão do Património Cultural faz sentido, pela agilização das suas
competências, a divisão do mesmo não
São apontadas
dificuldades graves ao nível do pessoal – por um lado, o seu envelhecimento,
por outro, a inexistência de recursos básicos para manter os serviços em
funcionamento e abertos ao público. São apontadas dificuldades no modelo de
gestão face aos constrangimentos jurídicos colocados a um organismo da
administração pública direta do Estado e dificuldades internas de comunicação,
atraso nas respostas e decisões.
Quanto aos
enviesamentos: a atual estrutura da DGPC é considerada “gigante”, “modelo
falhado”, exageradamente complexa, propondo-se a criação do Instituto de
Museus, Palácios e Monumentos. Se a transformação da DGPC em Instituto de
Gestão do Património Cultural faz sentido, pela agilização das suas
competências, a divisão do mesmo não. Esta divisão corresponde a uma ânsia
corporativa dos diretores de museus e conservadores, espelhada no Relatório. A
visão é enviesada porque este relatório não faz, como devia fazer, uma análise
comparativa internacional de modelos de gestão. Se fizesse, poderia ver que, em
França – tantas vezes apontada como exemplo modelar para as políticas públicas
de Cultura –, desde 2010, existe uma única direção geral que fundiu as
competências da direção geral dos museus de França, da direção geral de
arquitetura e património, da direção geral de arquivos. Aliás, o Ministério da
Cultura de França só tem quatro direções gerais. Para além da referida, a
direção geral da criação artística, a direção geral dos media e indústrias
culturais e a secretaria geral.
Não se mascare,
pois, as dificuldades atuais em modelos organizativos e com mudanças de
diretores gerais ou complexidades de gestão.
A DGPC enferma de
dificuldades sérias de recursos financeiros e humanos que limitam as suas
capacidades de prestação de serviço público e de um envelhecimento do seu
pessoal, sem transmissão de saberes pelos que, entretanto, se vão reformando,
às gerações mais novas. Espera-se que haja consciência do interesse público em
presença e que não se continue a mascarar a realidade com decisões paliativas e
justificações que raiam a demagogia.
O autor escreve
segundo o novo acordo ortográfico
Sem comentários:
Enviar um comentário