CRÓNICA ACÇÃO
PARALELA
Otelo e a revolução
António Guerreiro
30 de Julho de
2021, 7:51
https://www.publico.pt/2021/07/30/culturaipsilon/cronica/otelo-revolucao-1972111
Lendo o que foi
dito e escrito pela morte de Otelo Saraiva de Carvalho, uma pergunta ganha
forma, pronta a ser formulada: o que resta daquilo em que se acreditou quando
já não se acredita? Fim de uma história.
A revolução, que
hoje é sinónimo do impossível, foi aquilo em que muitos acreditaram. Apesar dos
entusiasmos serôdios erguidos sobre escombros de uma história ainda mais
serôdia, por todo o lado onde os relógios políticos estavam mais sincronizados
com a tonalidade da época, o tempo dos reencantamentos revolucionários já tinha
passado. E hoje, como acabámos de comprovar, os assomos violentos de um desejo
insensato e intempestivo de revolução (ou, pelo menos, o que procurava
legitimar-se enquanto tal) tornaram-se muito menos desculpáveis do que o uso de
todos os meios violentos para os impedir. Nos códigos oficiais das nossas sociedades,
está adquirido que toda a violência, excepto a do Estado, é ilegítima. E nem
sequer devemos procurar subterfúgios, lembrando, por exemplo, que a fundação de
todos os Estados ocorre numa situação que se pode chamar revolucionária, na
media em que inaugura violentamente um novo direito.
Vivemos num tempo
“pós”, depois da revolução. É difícil pensar que há menos cinquenta anos ainda
se tinha uma vista do horizonte como revolução. Hoje, a não ser os que conhecem
bem os arquivos e a história política, já nem nos lembramos que foram numerosos
os que no século XX viveram na ideia de que o mundo esperava a sua revolução.
Mesmo para aqueles que achavam que ela tinha acontecido em 1917, permanecia
ainda como horizonte a transmutação dessa revolução em “revolução mundial”,
através da passagem do “socialismo” ao “comunismo”. O esquema desta implicação,
de uma segunda revolução implicada na primeira, era fornecido pelo conceito de
revolução permanente.
Uma coisa é
certa: já não há ninguém a reclamar a revolução, isto é, a violência
revolucionária (e não devemos confundir revolta — essa sim, sempre actual e
conhecendo sempre novas formas — com revolução). A palavra e a coisa foram
banidas de uma vez por todas. Um dos escritos mais revolucionários dos últimos
anos (assinado por um denominado “Comité Invisible”) , garantia que a
democracia não passa de “governo em estado puro”, isto é, de poder gestionário,
e lembrava uma frase cínica de Rivarol: “Há duas verdades que neste mundo não
devem nunca ser separadas: 1) que a soberania reside no povo; 2) que ele nunca
deve exercê-la”. Seguindo este preceito, o “comité invisible” proclamava: “Eles
querem obrigar-nos a governar, nós não cedermos a esta provocação”.
Se aos olhos da
grande maioria, ou mesmo de todos, a violência revolucionária já não é possível
nem permitida (e esta consciência tem quase sempre efeitos retroactivos até à
Revolução Francesa, não há revolução à qual não se queira regressar: esse é o
princípio da contra-revolução), é porque não existe outro mundo senão este, a
regra única em que vivemos. Na verdade, a violência revolucionária foi possível
e permitida enquanto houve a hipótese de um mundo alternativo. Ora, esse mundo
alternativo, projectado de muitas maneiras, mas sempre com a convicção de que
havia um outro horizonte do nosso tempo, já não existe. Já não há ninguém a
deixar-se tentar pela revolução, ao ponto de pensar que ela deva passar pela
violência. A decisão de Mário Soares, aprovada na Assembleia da República, de
amnistiar Otelo, trazia consigo o selo de uma visão da história. Foi uma
maneira de encerrar um ciclo, de tentar fazer tábua rasa desse passado, de
maneira a evitar que ele continuasse a assombrar o presente. Como sabemos,
Mário Soares não era um homem do luto nem da melancolia. E sabia bem que
ilegítima, como a violência, é também a origem do poder.
O fim de uma
história não é o fim da história. Mas esta história da revolução que chegou ao
seu fim fala-nos também de uma outra triste história: o fim da política. A
política morreu, é o seu destino. A revolução foi um sonho que terá resultado
em pesadelos (não há, em si, boas revoluções), mas foi o sonho que a política
pôde parir. A que parto nos faz ela hoje aceder?
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