OPINIÃO
A que velocidade ia o carro?
Em 43 dias soubemos isto tudo. Só não soubemos a que velocidade
se deslocava o carro do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita.
João Miguel
Tavares
31 de Julho de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/07/31/opiniao/opiniao/velocidade-ia-carro-1972453
Foi no dia 18 de
Junho, por volta da uma da tarde. O carro onde seguia o ministro da
Administração Interna, Eduardo Cabrita, colheu mortalmente um trabalhador na
A6, perto da saída para Évora. Nuno Santos deixou duas filhas menores. Foi há
43 dias. E 43 dias depois ainda não sabemos a que velocidade se deslocava o
carro do ministro.
Neste intervalo
de tempo, já soubemos muita coisa. Soubemos que no dia do acidente o INEM
demorou uma hora a chegar porque foi enviado para o sentido errado da
auto-estrada. Soubemos pelo advogado da família que não havia marcas de
travagem no pavimento. Soubemos que o carro circulava pela faixa da esquerda.
Soubemos que o condutor não foi sujeito ao teste de álcool. Soubemos por um
esclarecimento oficial do Ministério da Administração Interna que a culpa era
toda do trabalhador. Soubemos que nenhum representante do governo esteve
presente no funeral de Nuno Santos. Soubemos que o Presidente da República
desejava ver apurados todos os factos sobre o acidente. Soubemos que a violação
dos limites de velocidade por parte de viaturas oficiais só pode ocorrer em
serviço urgente de interesse público e com sinalização adequada da marcha.
Soubemos que os acidentes com carros de governantes são um problema antigo.
Soubemos que a BMW tem meios expeditos para saber com precisão a velocidade do
embate, e que está tudo armazenado no computador central do automóvel. Soubemos
pela boca de Eduardo Cabrita, após duas semanas de um desconfortável silêncio,
que ele não se iria demitir, que os factos estão a ser apurados, que está a
passar por uma situação “dramática” no “plano pessoal”, que o acidente não deve
ser “matéria de confrontação política”, e que aos seus quatro anos como
ministro da Administração Interna correspondem os “melhores quatro anos de
indicações de segurança em Portugal”. Soubemos que o carro envolvido no
acidente pertencia a um traficante de droga. Soubemos que a sogra do traficante
de droga continua a pagar todos os meses 500 euros pela prestação do carro
usado pelo ministro, e que está à espera que ele lhe seja restituído. Soubemos
que o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, foi apanhado pela TVI,
no dia 5 de Julho, a 200 km/h na A2 e a 160 km/h numa estrada nacional, mas que
não tem “qualquer memória de os factos relatados terem sucedido”. Soubemos que
o Correio da Manhã andou entretido a caçar carros de Estado, incluindo o do
primeiro-ministro, a circular a alta velocidade um mês depois do acidente.
Soubemos que a federação dos sindicatos do sector considera que existe “um
silêncio ensurdecedor” sobre o caso, e que ele “indicia um procedimento moroso,
burocrático e rotineiro do apuramento de responsabilidades”. Soubemos que
existe, e sempre existiu, nas palavras de Manuel João Ramos, uma “cultura de
impunidade rodoviária que se vive a bordo das viaturas oficiais”.
Em 43 dias
soubemos isto tudo. Só não soubemos a que velocidade se deslocava o carro do
ministro.
Aquilo a que
estamos a assistir, pela enésima vez num governo de António Costa, é à
transferência das responsabilidades políticas para a esfera criminal. É sempre
necessário um relatório externo, uma acusação, um documento oficial do
Ministério Público, para que um membro do governo conclua acerca da legitimidade
da sua acção. Só que aqui não é preciso nada disso. Basta um número.
Continuarmos a desconhecer esse número 43 dias após o trágico acidente na A6
não tem justificação, nem perdão.
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