ENTREVISTA
Rita Valadas: “A crise social ainda não chegou”
A presidente da direcção da Cáritas Portuguesa avisa que
a crise social ainda está para chegar e, assumindo o seu receio pela gestão dos
milhões do Plano de Recuperação e Resiliência, avisa que distribuir dinheiro
não resolve as situações de pobreza.
Natália Faria,
Eunice Lourenço (Renascença) e Daniel Rocha
29 de Julho de
2021, 6:30
https://www.publico.pt/2021/07/29/sociedade/entrevista/crise-social-nao-chegou-1972176
A crise social
que irá emergir desta pandemia tem vindo a ser adiada por força das moratórias
e dos apoios ao layoff simplificado, avisa a presidente da direcção
da Cáritas Portuguesa. E porque a pobreza não se resolve atirando-lhe com
milhões em cima, Rita Valadas defende a criação de medidas ajustadas às
necessidades de cada família e de cada território e que o Rendimento Social de
Inserção deve sair da alçada exclusiva da Segurança Social para passar a ser
uma medida interministerial.
Como avalia o
risco de agravamento da pobreza em Portugal ao longo de 2021 e nos tempos que
se seguem?
É uma fonte mais
de dúvidas do que certezas, até porque as estatísticas e os estudos
contradizem-se entre si e eu tenho duas perspectivas: uma perspectiva que advém
dos dados do Eurostat, que referem que houve uma relativa estabilização do
risco de pobreza ao longo de 2020, e depois tenho a percepção do território que
mostra um agravamento das situações e que nos aparecem muitas famílias que não
recorriam à Cáritas e que precisam agora da nossa ajuda. Algumas dessas
famílias elas próprias ajudavam outras, o que é um bocadinho assustador, mas
corresponde à realidade em que famílias de classe média se vêem agora.
Qual foi o tipo
de apoio mais procurado?
Para além do
apoio alimentar normal, que mantivemos exactamente igual, reforçámos o sistema
de vales de bens essenciais, que podem ser descontados tanto em bens
alimentares como em outros bens essenciais, e houve aqui um grande incremento.
E depois, nos apoios económicos, o maior pedido foi para apoios à renda de
casa. O pânico de ficar sem casa é muito real e muitas pessoas que viram o seu
rendimento baixar deixaram de ter condições para resolver esse problema.
A diminuição de
rendimentos nestas famílias de classe média decorre de que factor?
São aquelas
famílias que viviam, por exemplo, de pequenos negócios, ou que estavam
dependentes do turismo e restauração, cujos negócios foram suspensos. Isto
começou logo em Abril de 2020, nessa altura já estávamos a ter pedidos, e
continua até hoje, tanto que este programa, que supostamente ia ter três meses,
ainda está activo e ainda estará, porque creio que a crise social ainda
não chegou. Esta crise sanitária teve algumas almofadas fortes, mas que não
resolvem os problemas.
As moratórias?
E o layoff.
Há várias empresas que só vão perceber se conseguem fazer a retoma no momento
em que as coisas estiverem mais normalizadas. Nessa altura, vão perceber se
podem manter o número de empregos ou se vão ter que passar a recrutar menos
pessoas.
Por isso diz que
a crise ainda não chegou?
Sim, porque o
tempo da crise social é sempre diferente do tempo da crise económica. A
situação das pessoas só começa a ser visivelmente crítica quando as empresas
que lhes pagam o salário não conseguem manter o emprego. E só quando o subsídio
de desemprego acaba, sem que a economia tenha feito uma retoma, é que
as pessoas caem em crise.
Não é com medidas
iguais para todos que se luta contra a pobreza
A taxa de risco
de pobreza em Portugal estava nos 16,2% em 2019. Corremos o risco de voltar aos
19,5% de 2013 e 2014?
É possível que
isso aconteça, mas não tenho condições de adivinhar o que aí vem. Se
conseguirmos fazer uma retoma segura, se utilizarmos os recursos que aí vêm com
muito propósito e muita intenção, talvez consigamos que as pessoas não caiam no
desemprego.
O que quer dizer
com uma “retoma segura”?
Significa que
vamos ter que avaliar as necessidades e as potencialidades dos territórios. Nós
somos um país pobre, mas não temos uma pobreza igual em todo o lado. Há pessoas
em zonas rurais que têm pensões de duzentos euros e que conseguem aforrar. Se
vivermos em Lisboa, duzentos euros não chegam para ninguém sobreviver.
Portanto, não é com medidas iguais para todos que se luta contra a pobreza (e,
ainda por cima, dizemos lutar contra a pobreza em vez de erradicar a pobreza,
isto é, partimos derrotados) e essa é uma luta desigual, se não tivermos muita
consciência do que é que se passa no terreno.
Defende,
portanto, medidas diferentes?
Medidas à medida
do que as famílias precisam, das suas competências, e do que há no território.
Porque há famílias que nem que tenham muito dinheiro vão alguma vez conseguir
sair da pobreza. Se tiverem problemas de violência, saúde
mental, etc., por muito dinheiro que tenham, não vão conseguir resolver o
problema. Portanto, medidas à medida das situações e das oportunidades.
Mas como é que se
consegue quebrar esta amarra da pobreza que, em Portugal, é algo que
se herda?
Herda-se mesmo e
esse é o problema. Até agora, apesar de termos hoje medidas de política social
bastante mais intencionais, a verdade é que não conseguimos combater a pobreza.
E a alteração da taxa é uma coisa relativamente pouco sentida no terreno: ser
16% ou 19% não é uma diferença que se note muito no terreno.
No último
momento, quem está a trabalhar com o RSI é uma técnica sem recursos e uma
família sem condições de vida.
Não será por
causa da lógica assistencialista na luta contra a pobreza que as pessoas, mesmo
subindo acima da linha da pobreza, que estava em 2019 nos 540 euros mensais,
estão demasiadamente expostas ao risco de voltarem a cair abaixo dessa linha?
Acho que isto não
tem nada a ver com assistencialismo. O que as pessoas apontam como
assistencialismo (ou caridade, ou o que for que as pessoas queiram utilizar
como adjectivo) é um recurso que só pode deixar de existir quando a situação
não for crítica. Há dois ritmos de olhar para o problema: um é o ritmo de dar
de comer a quem tem fome e o outro é promover, inserir. O Rendimento
Social de Inserção, por si só, como o próprio valor de referência que anda à
volta dos 200 euros diz, não permite que ninguém mude de situação. Mas também
sabemos que foi e tem sido muito importante para algumas situações de pobreza
extrema. Mas não tirou ninguém da pobreza. Na génese, a ideia era que houvesse
uma contratualização com as pessoas e essa contratualização passava por um
investimento transversal a várias áreas governamentais que ia retirar a pessoa
da pobreza. Essa intervenção ao nível do projecto de vida e da contratualização
da situação é talvez uma falha do sistema porque, como dizia uma técnica da
Cáritas que trabalha com o RSI, no último momento, quem está a trabalhar
com o RSI é uma técnica sem recursos e uma família sem condições de
vida.
Como é que se
garante que o RSI não se limita a aliviar aqui e ali as situações de
pobreza, mas que é efectivamente capaz de retirar as pessoas dessa situação?
Este mecanismo
devia envolver todas as áreas governamentais e não só uma. Se fizermos depender
isto só da Segurança Social, por muito competente e capaz que a rede da
Segurança Social seja no país, não consegue chegar às questões da habitação, da
saúde, da educação. E sem agir nessas áreas todas não conseguimos tirar [as
pessoas da pobreza] e vamos acabar por manter as famílias no mesmo nível do
problema.
O RSI devia
então sair da alçada exclusiva da Segurança Social e passar a ser
interministerial?
Devia ser
interministerial, sim. Seja qual for o modelo que queiram adoptar, o
investimento tem de ser transversal. Na área da intervenção social, o trabalho
em rede é uma necessidade absoluta. E a rede não é feita só por um, nem sequer
é manejada só por um. E nós temos dificuldade em fazer rede com propósitos que
às vezes podem ser plurianuais e que têm uma dimensão tempo bastante mais
rápida do que os ciclos políticos.
O RSI já
obriga a que as crianças frequentem a escola e à inscrição dos beneficiários
nos centros de emprego. Há outras condições que deviam ser colocadas para
garantir a eficácia desta ajuda?
A obrigatoriedade
de as crianças frequentarem a escola foi um dos sucessos do RSI. É
obrigatório estar registado no centro de emprego, no centro de saúde e
frequentar o ensino. E isso fez diferença, mas estamos a falar da
obrigatoriedade de cumprimento por parte de quem aufere do RSI. O
resto, são caixas dos diversos serviços, que garantem o apoio mas não
conversam entre si. Na fase piloto do então Rendimento Mínimo Garantido (RMG),
houve um grande investimento nas equipas, nas redes, no investimento com propósito
de olhar para cada caso e ver qual era o modelo, mas, por alguma razão, isso
foi-se perdendo, até se deixar ficar de facto a intervenção reduzida a
um técnico/uma família ou um técnico/um utente. E isso não
vai fazer reverter a situação, além de podermos estar a sujeitar uma família a
50 atendimentos em sítios diferentes e eventualmente ao abuso na utilização dos
recursos.
Sendo verdade que
o RSI só chegou a 5% da população pobre, dever-se-ia alargar a base
de elegibilidade do RSI, fazendo aproximar os seus valores da linha da
pobreza, como vem defendendo Carlos Farinha Rodrigues?
Eu acho que isto
não chega, porque isto não é uma questão de falta de dinheiro. Distribuir
dinheiro não resolve as situações de pobreza, porque muitas são bastante mais
subliminares do que só o dinheiro e o não poder comprar. Temos problemas de
saúde mental graves - se há área que tem de ser chamada a este problema é
a saúde mental na comunidade, na proximidade, não é a saúde mental de
gabinete e de secretária. Depois temos dependências, problemas legais,
problemas de vítimas de violência vária, nomeadamente a doméstica.
Em que é que os
milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) devem ser usados
para que sirvam para alguma coisa?
Confesso que
ainda não consegui ultrapassar o medo que tenho do PRR. Relembro
o EQUAL [programa comunitário enquadrado na estratégia europeia de
emprego visando as pessoas mais vulneráveis] e a quantidade de investimento na
qualificação dos profissionais que se fez: eu hoje, se quiser procurar uma das
ferramentas do EQUAL, nem sequer a encontro na Internet, porque as
plataformas foram abaixo, etc.. Portanto, nós temos uma habilidade
especial para o desperdício. O que é absolutamente contra a perspectiva que se
devia ter quando temos tanta pobreza. Vivemos na abundância, temos para tudo,
mas depois criamos desperdício sem resolver os problemas. Portanto, somos
pobres a viver como ricos e temos pouca atenção às coisas que, se assumíssemos
que vivemos numa sociedade escassa, faríamos. Quem percebe a escassez sabe que
tem que poupar aqui, guardar ali, não pode deitar fora. E nós temos esta
contradição em tudo. E por isso este meu medo do PRR. Acho que devemos
todos ter muita consciência da forma como gastamos aquele dinheiro, como se
fosse nosso, e de avaliar o impacto de cada medida passo a passo, para ter a
certeza que é válida. E se não for, há que, com toda a honestidade e
coragem, dizer que não.
“Não tenho a certeza se conseguimos suportar um aumento
do salário mínimo”
Portugal soma
quase 10% de trabalhadores pobres. Como é que o Estado devia responder a
estas ineficiências do mercado de trabalho?
Se isto acontece,
alguma coisa está mal. Acho que há duas áreas em que devíamos investir. Uma é
saber como é que se garante um rendimento estável e adequado e um trabalho
digno. Como é que dignificamos o trabalho de tal forma que quem trabalha não
seja pobre? Pode ser por uma razão de rendimento desadequado, mas porquê? Pode
ser porque é uma família extensa, e uma das coisas que um estudo publicado este
ano mostra é que, quanto mais crianças existem a cargo, maior é a probabilidade
de as famílias caírem na pobreza.
Mas e quais serão
as respostas para que deixemos de ter uma percentagem tão significativa
de trabalhadores pobres e para responder ao facto de a taxa de risco
de pobreza nas famílias com três ou mais crianças a cargo estar quase nos 40%?
Mais uma vez,
juntando a escola, juntando a saúde, a Segurança Social e juntando o Instituto
de Emprego.
Aumentar o
salário mínimo nacional não seria um primeiro passo?
Não sei se
teremos capacidade para isso. Aumentar o nível do salário mínimo
nacional seria importante, assim como as pensões muito baixas, mas nós
temos que garantir a sustentabilidade das medidas. E não tenho a certeza se
conseguimos suportar um aumento do salário mínimo. Em muitas empresas,
associações e instituições que sobrevivem de pessoas que ganham o salário
mínimo nacional, de cada vez que este aumenta, o sufoco de pagar salários é
brutal.
O sector social é
um dos sectores em que há mais trabalhadores com o salário mínimo. Não acha
possível mudar essa realidade?
Essa situação tem
que ser avaliada do ponto de vista da sustentabilidade. Claro que gostaria que
o salário mínimo fosse mais alto, mas pode estar a acontecer que uma pessoa
está a receber o salário mínimo e não consegue suportar a sua situação familiar
porque há outra pessoa desempregada ou porque tem muitas crianças que precisam
de determinado tipo de apoios que a família não consegue garantir, razão pela
qual não levam os meninos a fazer avaliação precoce e estes chegam depois à
escola com problemas de audição ou de visão. Seja qual for a pergunta, a matriz
primeira é: em termos de resposta, tem de estar toda a gente junta, e temos que
ir até ao limite das nossas possibilidades para garantir um salário digno e um
trabalho digno para as pessoas todas.
O abono de
família não poderia ser um recurso para obviar à situação das crianças e das
famílias com crianças a cargo em situação de pobreza?
Sim, se essa for
a solução para que as famílias não caíam nesse nível, sobretudo quanto têm um
rendimento que poderia ser suficiente se não fossem as crianças. [O que temos
de analisar é] o que é que leva à pobreza de uma determinada família. É ter
três crianças e dois salários baixos? É ter três crianças e só um salário? Pode
haver várias componentes que concorrem para resolver esta situação e não tem
que ser por matriz única. Eu sei que isto é difícil, porque é muito mais fácil
criar uma medida que seja universal e igual para todos, mas não há uma família
igual à outra nem uma situação de pobreza igual à outra.
Como é que se
posiciona perante a discussão sobre a criação de uma retribuição mínima
garantida ou rendimento básico incondicional?
É uma coisa que
merece a minha maior curiosidade. Tenho muita dificuldade em ver o impacto que
isso pode ter. Há experiências destas com imenso sucesso e outras que tiveram
que ser abandonadas, mas isso também aconteceu com o Rendimento Mínimo
Garantido, com países que começaram com isto antes de nós e que terminaram
quando nós estávamos a começar. Mas, aparentemente, seria óptimo, porque nos
resolvia uma parte do problema. Se todas as pessoas tivessem um rendimento de
referência e esse rendimento permitisse que elas não estivessem numa situação
de pobreza, seria óptimo, mas tudo depende das condições que são atribuídas,
porque temo que possa haver muitas pessoas que nunca vão procurar um trabalho.
Quando veio
o RMG, tivemos uma crise nos primeiros meses com o recrutamento de
ajudantes familiares. Porquê? Porque as pessoas tinham crianças e, com o valor
do RMG, preferiram ficar em casa a tomar conta das crianças. Não pagando
as creches e recebendo aquilo, era mais benéfico ficarem em casa e
tomar conta das crianças. Isso depois alterou-se um bocadinho com a obrigatoriedade
de as crianças irem para a escola - estas coisas também se vão corrigindo -,
mas acho que há cautelas que devemos ter ao pensar uma medida destas. Será
interessante ir trabalhar para as obras ou ser um ajudante de geriatria se
houver um rendimento desse tipo? Ou nós vamos assumir salários mais baixos que
somarão a essa prestação? Tudo depende das condições.
tp.ocilbup@airafn
tp.ocilbup@ahcord
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