quinta-feira, 29 de julho de 2021

Porque é que Otelo não merece luto nacional

 



OPINIÃO

Porque é que Otelo não merece luto nacional

 

Existem razões substanciais para negar o luto nacional a Otelo, essas razões não são burocráticas, e explicam-se numa frase: Otelo deu-nos a liberdade, mas não acreditou nela.

 

João Miguel Tavares

29 de Julho de 2021, 0:00

https://www.publico.pt/2021/07/29/opiniao/opiniao/otelo-nao-merece-luto-nacional-1972208

 

António Costa esteve muito bem ao decidir não decretar luto nacional pela morte de Otelo Saraiva de Carvalho, e merece os parabéns por essa lucidez, sobretudo quando está hoje a governar encostado a uma esquerda que namorou com Otelo nos anos 70. Inevitavelmente, o primeiro-ministro refugiou-se em justificações burocráticas: disse que era preciso ter “critérios coerentes”, e lembrou que não havia sido decretado luto nacional aquando da morte de Salgueiro Maia, em 1992 (esse, sim, um escândalo que deveria envergonhar o governo de Cavaco Silva), ou de Ernesto Melo Antunes, em 1999.

 

Mas se se percebe que António Costa tenha despachado o assunto com o histórico dos anos 90, até porque seria de uma deselegância extrema apresentar outras razões à porta de uma vigília, a verdade é que o problema não está nos anos 90 – está no histórico dos anos 80. Existem razões substanciais para negar o luto nacional a Otelo, essas razões não são burocráticas, e explicam-se numa frase: Otelo deu-nos a liberdade, mas não acreditou nela. Após ser arrasado nas eleições presidenciais de 1980 – onde obteve 85 mil votos, enquanto Ramalho Eanes vencia com 3,26 milhões –, Otelo decidiu agir violentamente contra o regime que ajudou a criar. E se tal decisão não apaga o papel que desempenhou no 25 de Abril, é óbvio que ultrapassa um limite intransponível em democracia, que não pode ser esquecido na hora da sua morte, ou simplesmente arquivado com o argumento de que todos os seres humanos são complexos e contraditórios.

 

É verdade que Otelo fez muito por Portugal em 1974. Mas Portugal também fez muito por Otelo em 1996. A promulgação, por Mário Soares, da amnistia às FP-25 foi já um elevadíssimo pagamento pelo seu papel no 25 de Abril

 

Sim, todos os seres humanos são complexos e contraditórios, mas, felizmente, nem todos estão envolvidos em grupos que promovem execuções a sangue frio e assassinatos (ainda que acidentais) de bebés de quatro meses. Não pode haver luto nacional por alguém que manda colocar/ fecha os olhos à colocação/ inspira quem colocou (riscar o que não interessa) bombas numa democracia. Pura e simplesmente não pode. E quem acha que pode, das duas, uma: ou acredita que a poesia é maior do que a vida, tipo Manuel Alegre, ou tem ainda dentro de si o ovinho da serpente totalitária, que admite que em nome de um bem maior (o socialismo, o fim da injustiça neste mundo, os amanhãs que cantam) se possa sacrificar um ou outro bem menor, como seja a vida de um indivíduo concreto num regime democrático. (Ou, mesmo que não se possa, ou se deva, sacrificar, pode-se ao menos considerá-lo um erro infeliz, e não uma linha vermelhíssima e impeditiva de qualquer homenagem oficial.)

 

Deixem-me recordar o óbvio: há dezena e meia de pessoas assassinadas pelas FP-25 que deixaram família. Esta gente está viva, ainda chora a forma como os seus pais, filhos ou irmãos morreram, e certamente vê noticiários. Alguém pensou um minuto nessas pessoas e em como se sentiriam se vissem agora aquele foi considerado o grande autor moral dos crimes que conduziram à morte dos seus familiares a ser enterrado com honras de Estado? Ou acham que, para as consolar, bastaria usar a argumentação que ouvi o deputado José Magalhães expor na TVI: Otelo foi amnistiado e, à luz da lei, está perdoado e dispensado de responder pelos crimes que cometeu? É verdade que Otelo fez muito por Portugal em 1974. Mas Portugal também fez muito por Otelo em 1996. A promulgação, por Mário Soares, da amnistia às FP-25 foi já um elevadíssimo pagamento pelo seu papel no 25 de Abril. As contas de Portugal com Otelo estão saldadas há muito. Que descanse em paz.

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