OPINIÃO
Porque é que Otelo não merece luto nacional
Existem razões substanciais para negar o luto nacional a
Otelo, essas razões não são burocráticas, e explicam-se numa frase: Otelo
deu-nos a liberdade, mas não acreditou nela.
João Miguel
Tavares
29 de Julho de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/07/29/opiniao/opiniao/otelo-nao-merece-luto-nacional-1972208
António Costa
esteve muito bem ao decidir não decretar luto nacional pela morte de Otelo
Saraiva de Carvalho, e merece os parabéns por essa lucidez, sobretudo quando
está hoje a governar encostado a uma esquerda que namorou com Otelo nos anos
70. Inevitavelmente, o primeiro-ministro refugiou-se em justificações
burocráticas: disse que era preciso ter “critérios coerentes”, e lembrou que
não havia sido decretado luto nacional aquando da morte de Salgueiro Maia, em
1992 (esse, sim, um escândalo que deveria envergonhar o governo de Cavaco
Silva), ou de Ernesto Melo Antunes, em 1999.
Mas se se percebe
que António Costa tenha despachado o assunto com o histórico dos anos 90, até
porque seria de uma deselegância extrema apresentar outras razões à porta de
uma vigília, a verdade é que o problema não está nos anos 90 – está no
histórico dos anos 80. Existem razões substanciais para negar o luto nacional a
Otelo, essas razões não são burocráticas, e explicam-se numa frase: Otelo
deu-nos a liberdade, mas não acreditou nela. Após ser arrasado nas eleições
presidenciais de 1980 – onde obteve 85 mil votos, enquanto Ramalho Eanes vencia
com 3,26 milhões –, Otelo decidiu agir violentamente contra o regime que ajudou
a criar. E se tal decisão não apaga o papel que desempenhou no 25 de Abril, é
óbvio que ultrapassa um limite intransponível em democracia, que não pode ser
esquecido na hora da sua morte, ou simplesmente arquivado com o argumento de
que todos os seres humanos são complexos e contraditórios.
É verdade que Otelo fez muito por Portugal em 1974. Mas
Portugal também fez muito por Otelo em 1996. A promulgação, por Mário Soares,
da amnistia às FP-25 foi já um elevadíssimo pagamento pelo seu papel no 25 de
Abril
Sim, todos os
seres humanos são complexos e contraditórios, mas, felizmente, nem todos estão
envolvidos em grupos que promovem execuções a sangue frio e assassinatos (ainda
que acidentais) de bebés de quatro meses. Não pode haver luto nacional por
alguém que manda colocar/ fecha os olhos à colocação/ inspira quem colocou
(riscar o que não interessa) bombas numa democracia. Pura e simplesmente não
pode. E quem acha que pode, das duas, uma: ou acredita que a poesia é maior do
que a vida, tipo Manuel Alegre, ou tem ainda dentro de si o ovinho da serpente
totalitária, que admite que em nome de um bem maior (o socialismo, o fim da
injustiça neste mundo, os amanhãs que cantam) se possa sacrificar um ou outro
bem menor, como seja a vida de um indivíduo concreto num regime democrático.
(Ou, mesmo que não se possa, ou se deva, sacrificar, pode-se ao menos
considerá-lo um erro infeliz, e não uma linha vermelhíssima e impeditiva de
qualquer homenagem oficial.)
Deixem-me
recordar o óbvio: há dezena e meia de pessoas assassinadas pelas FP-25 que
deixaram família. Esta gente está viva, ainda chora a forma como os seus pais,
filhos ou irmãos morreram, e certamente vê noticiários. Alguém pensou um minuto
nessas pessoas e em como se sentiriam se vissem agora aquele foi considerado o
grande autor moral dos crimes que conduziram à morte dos seus familiares a ser
enterrado com honras de Estado? Ou acham que, para as consolar, bastaria usar a
argumentação que ouvi o deputado José Magalhães expor na TVI: Otelo foi
amnistiado e, à luz da lei, está perdoado e dispensado de responder pelos crimes
que cometeu? É verdade que Otelo fez muito por Portugal em 1974. Mas Portugal
também fez muito por Otelo em 1996. A promulgação, por Mário Soares, da
amnistia às FP-25 foi já um elevadíssimo pagamento pelo seu papel no 25 de
Abril. As contas de Portugal com Otelo estão saldadas há muito. Que
descanse em paz.
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