OPINIÃO
Louvar Otelo
Se Abril nos deu a liberdade e a democracia, foi apesar
de Otelo, não graças a Otelo. Otelo foi o pior que Abril nos deu.
António Barreto
31 de Julho de
2021, 0:15
https://www.publico.pt/2021/07/31/opiniao/opiniao/louvar-otelo-1972541
A morte de Otelo
Saraiva de Carvalho desencadeou uma inesperada controvérsia na sociedade
portuguesa. É herói ou não é herói? Merece ou não o “luto nacional”? Deve ou
não ser recordado com um monumento?
Mais do que a
personagem de Otelo, que é simples e pouco interessante, o que realmente
surpreende é a reacção de tantos portugueses que ainda se revêem nesta figura e
no percurso. Tristes os que se identificam com tão fracos heróis!
Depois de ter
diligentemente participado, com honra e eficácia, em duas frentes da guerra
colonial, Otelo insurge-se contra a ditadura. Graças aos seus talentos de
organizador, assumiu as funções de “estratego” do golpe, isto é, das operações
de Abril. Não foi “estratego” político, para o que não tinha conhecimentos. Mas
tratou ao pormenor dos preparativos e da logística. Coordenou a criação do
dispositivo militar. Comandou o desenrolar das operações que foram por si
lideradas com indiscutível êxito. Sem violência física e sem ter derramado
sangue, o que ficará, para sempre, a seu favor e para nosso bem. Se o golpe e a
revolução tivessem gerado violência, ainda hoje teríamos um país muito
diferente e pior.
Otelo merece
consideração profissional. Com capacidade, serviu na guerra colonial em duas
frentes, pelo que foi louvado e promovido. Também merece respeito político. Com
inegável êxito, liderou as operações que derrubaram a ditadura. Também por isso
foi louvado e promovido.
O estratega
político-militar e "um símbolo" da Revolução dos Cravos. O militar
que ajudou a derrubar a ditadura e o homem julgado, condenado e amnistiado pelo
envolvimento na rede terrorista das FP25. Otelo Saraiva de Carvalho morreu este
domingo, em Lisboa, aos 84 anos.
Não são dele a
orientação política nem o programa, para o que não tinha sabedoria. Mas colocou
o seu talento ao serviço da insurreição política. Merece aplauso, que recebeu
em devido tempo. E que ainda hoje recebe, dado que os seus admiradores se
contam por milhares. Mesmo altas autoridades, que não optaram pelo “luto
nacional”, não deixaram de aparecer no velório.
Depois do 25 de
Abril, Otelo desempenhou altas funções políticas e militares, sempre a favor da
revolução, raramente a favor da democracia. Pertenceu a todos os órgãos
revolucionários militares, liderou o COPCON, um autêntico quartel-general da
revolução. Sob seu comando, com mandatos assinados por si e com o seu
patrocínio, pessoas foram detidas, capturadas e batidas, contas bancárias foram
congeladas, casas e empresas foram ocupadas. Otelo e o COPCON governaram,
durante uns meses, Lisboa e grande parte do país, com terror e intimidação.
Otelo opôs-se ao
voto nas eleições constituintes e aconselhou o voto em branco, contrariou a
Assembleia Constituinte e patrocinou o mais sinistro dos planos políticos, o
“Documento Guia da Aliança Povo MFA”, que a Assembleia do MFA aprovou e que se
destinava a destruir qualquer hipótese de Estado de direito e de sistema
democrático. Lutou contra os partidos democráticos e contra o “Grupo dos Nove”,
intimidou o PS, o CDS e o PSD, competiu com o PCP, com o qual teve querelas.
Dirigiu várias iniciativas revolucionárias, todas anti-democráticas, como as
organizações do Poder Popular, os GDUP, a FUP e as FP-25.
Nunca defendeu
eleições livres para a criação de poder legislativo, nunca lutou pelo Estado de
direito, sempre atacou o regime parlamentar e o sistema democrático. Foi
derrotado no 25 de Novembro pelas forças democráticas. Como foi derrotado por
duas vezes que concorreu às eleições presidenciais. Contrariou todas as
tentativas de criação de instituições representativas. Sem pensamento político
próprio, pastoreou os grupos revolucionários que lhe batiam à porta e que ele
alegremente apadrinhou.
Tendo sido
derrotado e depois de afastado de qualquer função política ou militar de
relevo, Otelo enveredou por uma carreira de conspiração e de organização de
acções revolucionárias e terroristas. Apesar de condenado sem hesitações, foi
amnistiado.
É infeliz notar que tantos políticos, intelectuais,
académicos e jornalistas consideram Otelo o símbolo da liberdade e cultivam o
mito de Otelo como construtor da democracia, quando ele nada fez por isso, bem
pelo contrário, foi uma das suas piores ameaças
Se o critério for
o da liberdade e da democracia, os portugueses devem-lhe pouco. Apenas lhe
devem a organização do 25 de Abril, ponto final. Depois, exagerou nos seus
desmandos, nas ameaças e nos atentados. Apesar disso, transformou-se num
símbolo de Abril e da liberdade. É pena, pois foi o pior que Abril nos deu. E
se Abril nos deu a liberdade e a democracia, foi apesar de Otelo, não graças a
Otelo.
É infeliz notar
que tantos políticos, intelectuais, académicos e jornalistas consideram Otelo o
símbolo da liberdade e cultivam o mito de Otelo como construtor da democracia,
quando ele nada fez por isso, bem pelo contrário, foi uma das suas piores
ameaças.
Boa parte das
esquerdas, sobretudo as esquerdas mais radicais, sempre teve um problema com a
violência e o terrorismo. Se forem praticados “contra o capital”, contra o
“imperialismo e o colonialismo”, contra “os ricos” e contra as “classes
dominantes”, os actos violentos têm desculpa, são erros de passagem ou mesmo
glórias inesquecíveis. Há esquerdas que nunca condenaram a violência, toda e
qualquer violência. Há esquerdas que só depois de verem o bilhete de identidade
é que condenam ou apoiam a violência. A simetria funciona também. As direitas
sempre entenderam que a violência era necessária e bem-vinda contra os
revolucionários e contra as esquerdas.
O luto nacional não é apenas isso, luto. Nem só
recordação. É também louvor. Louvar Otelo seria simplesmente aceitar a
violência. Os democratas podem perdoar os seus inimigos. Mas não louvar
A violência e o
terrorismo em África, no Próximo Oriente, na América Latina, mesmo nos EUA e em
certos países europeus, não só não foram condenados, como foram justificados.
As Torres Gémeas de Nova Iorque foram festejadas por muitas esquerdas
europeias. As Brigadas Vermelhas italianas, o Exercito Vermelho alemão, a ETA
espanhola e o IRA irlandês acabaram quase sempre por ser louvados pela esquerda
radical ou perdoados por esquerdas mais suaves. Apenas esquerdas mais moderadas
souberam condenar sempre a violência e o terrorismo.
Cada vez que as
esquerdas são colocadas perante o absurdo dos seus louvores à violência de
esquerda, respondem com brutalidade: mas as direitas também! E citam, para
justificar os seus desmandos, Marcelino da Mata, Wiriyamu, as tropas
portuguesas em Nabuangongo e na Baixa do Cassanje. Para já não falar dos
assassinatos e das torturas de que a PIDE foi responsável. A fraqueza deste
argumento é absoluta. Não há, como no tempo e nos escritos de Trotsky, uma
moral “deles” e uma “nossa”.
A democracia pode
desculpar os seus inimigos. Pode perdoar a violência e o terror. É discutível,
mas percebe-se. Não pode é louvar os terroristas. O luto nacional não é apenas
isso, luto. Nem só recordação. É também louvor. Louvar Otelo seria simplesmente
aceitar a violência. Os democratas podem perdoar os seus inimigos. Mas não
louvar.
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