quinta-feira, 1 de julho de 2021

Russiagate. Exoneração de encarregado de proteção de dados congelada, relatório ainda não foi divulgado

 


POLÍTICA

Russiagate. Exoneração de encarregado de proteção de dados congelada, relatório ainda não foi divulgado

 

Tiago Miranda

Medina garantiu exoneração do encarregado de proteção de dados, mas só com processo disciplinar ou aprovação em Reunião da Câmara o poderá fazer. Vereador do PSD não garante voto favorável à exoneração

22 JUNHO 2021 13:42

Hugo Séneca

https://expresso.pt/politica/2021-06-22-Russiagate.-Exoneracao-de-encarregado-de-protecao-de-dados-congelada-relatorio-ainda-nao-foi-divulgado-0da3a159?fbclid=IwAR02bkkBTN8CBKEEnZv-p8sYIeMVvKcfXE4wq-dgI-bEti5ww8ymY9D3nuI

 

Fernando Medina anunciou que vai exonerar o Encarregado de Proteção de Dados (DPO) da Câmara Municipal de Lisboa na sequência do envio de dados de manifestantes para várias embaixadas estrangeiras, mas essa decisão só deverá tornar-se realidade caso garanta a aprovação em Reunião de Câmara. E não vai ser já na próxima Reunião de quinta-feira que o presidente da Câmara de Lisboa vai poder saber se todos os partidos aprovam ou não a exoneração. Ao que o Expresso apurou a Ordem de Trabalhos definida pelo executivo camarário liderado por Medina não conta com qualquer proposta de exoneração do DPO.

 

Para levar essa destituição em frente, o executivo camarário terá de abrir um processo disciplinar no caso de o DPO ter um contrato de trabalho, e ainda demonstrar que a exoneração não é ilegal à luz do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD).

 

“Queremos ver o relatório da auditoria. Não exoneramos ninguém sem razões para o fazer”, refere ao Expresso João Pedro Costa, vereador do PSD na Câmara de Lisboa. “Não deve ser a entidade que quer exonerar a pessoa que faz a auditoria ao trabalho dessas pessoas”, acrescenta o vereador.

 

Na verdade, apesar da promessa do autarca de divulgação da auditoria após a conferência de imprensa, quatro dias depois da conferência de imprensa onde foram divulgadas as suas conclusões a Câmara ainda não divulgou o relatório - pelo menos até à publicação deste texto, ao início da tarde de terça-feira.

 

EXONERAÇÃO ILEGAL?

A revelação do envio de dados pessoais para a embaixada Rússia acabou por trazer para a linha frente o nome do DPO Luís Feliciano – mas a 28 de abril, a prestação dos serviços do DPO já havia sido alvo de uma primeira tentativa de análise: a ordem de trabalhos da Reunião da Câmara chegou ter definida a prorrogação de funções do DPO e respetivos membros da Equipa de Projeto de Proteção de Dados Pessoais. Essa proposta haveria de ser retirada no próprio dia 28 de abril pelo vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa João Paulo Saraiva, recorda um voto de protesto dos vereadores do PSD.

 

A 19 de maio a mesma proposta voltou a ser apresentada em Reunião da Câmara, sendo a prorrogação da equipa liderada por Luís Feliciano aprovada com votos a favor de todos os partidos e abstenção do PSD - já depois de os procedimentos internos, incluindo dos emails sobre manifestações, terem sido alterados internamente (facto que não foi ainda justificado pela CML). O facto de as funções de o atual DPO terem sido aprovadas em Reunião de Câmara leva o PSD a considerar que a exoneração terá sempre de ser votada também pelo mesmo órgão camarário.

 

Em paralelo com frente política, o elenco liderado por Medina terá de enfrentar várias questões legais associadas ao envio de dados de organizadores de 180 manifestações para embaixadas estrangeiras, e ainda uma alegada ilegalidade da demissão do atual DPO do município. Na segunda-feira ao final da tarde, a Associação dos Profissionais de Proteção e Segurança de Dados (APDPO) anunciou que vai avançar com uma queixa formal na Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), caso se confirme a exoneração do encarregado de proteção de dados da Câmara Municipal de Lisboa, após o envio de dados de organizadores de manifestações para embaixadas de diferentes países.

 

A APDPO considera que, à luz do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), essa decisão será “ilegal”, se se confirmar.

 

“Os DPO são profissionais com funções de informação, aconselhamento, sensibilização e controlo/auditoria. Todas as suas recomendações são não vinculativas. Assim, o DPO não é, ao contrário do que tem sido dito, responsável pela proteção de dados. É a organização, na pessoa do seu dirigente máximo, que é a responsável pelo tratamento e pela proteção de dados”, sublinha Inês Oliveira, presidente da APDPO, em declarações ao Expresso.

 

A posição da associação tem por base o RGPD que foi aprovado pela Comissão Europeia e Parlamento Europeu.

 

Foi devido ao RGPD que muitas organizações estatais e privadas tiveram de nomear, a título oficial e com funções de interligação com as autoridades, responsáveis pela proteção de dados, que são conhecidos por DPO, sigla inglesa de Data Protection Officer. Estes profissionais podem não ter funções exclusivas de DPO, e podem ou não pertencer aos quadros das empresas, câmaras ou institutos públicos.

 

Além de determinar que o DPO não recebe ordens no que toca ao tratamento de dados, o artigo 38º do RGPD distingue as responsabilidades que estes profissionais devem assumir face aos restantes colegas que trabalham na mesma organização. “O encarregado não pode ser destituído nem penalizado pelo responsável pelo tratamento ou pelo subcontratante pelo facto de exercer as suas funções. O encarregado da proteção de dados informa diretamente a direção ao mais alto nível do responsável pelo tratamento ou do subcontratante”, refere uma das alíneas do artigo 38º do RGPD.

 

É devido a este artigo do RGPD que Inês Oliveira considera que o Município de Lisboa não tem sustentação legal para proceder à exoneração do DPO: “A APDPO considera que a exoneração do DPO da CML viola o RGPD, em concreto o artigo 38.º n.º 3, que prevê claramente que o DPO não pode ser destituído pelo exercício da sua função”, reitera por escrito.

 

AINDA FALTA PROCESSO DISCIPLINAR

Uma coisa é certa: ainda é cedo para dar a exoneração como um dado adquirido. Sofia de Vasconcelos Casimiro, advogada e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, considera que o artigo 38º invocado pela APDPO apenas pretende garantir a imparcialidade do DPO, e não impede qualquer responsabilização da pessoa que exerce essas funções – mas só depois de confirmadas as más práticas.

 

“Esse artigo não dá qualquer garantia de que o DPO não é penalizado. Caso contrário, estaríamos a criar uma função que nunca poderia ser responsabilizada pelas violações das regras básicas das suas funções”, explica a professora de Direito. Sobre o processo de exoneração, Sofia Vasconcelos Casimiro não tem dúvidas: se o DPO tiver contrato de trabalho, a exoneração só poderá avançar quando apuradas as responsabilidades durante um processo disciplinar, que assegure os direitos de defesa do visado".

 

E se esse processo disciplinar atribuir responsabilidades ao DPO da Câmara de Lisboa pela partilha de dados indevida dos organizadores de manifestação? “O regime do RGPD não prevê qualquer responsabilidade contraordenacional do DPO no exercício das suas funções. Isso só acontece se usurpar funções, realizar ele próprio tratamentos ilícitos de dados, ou se violar o dever de sigilo. Nos casos de quebra de dever de sigilo, trata-se de crime punido com prisão até dois anos”, explica Luís Neto Galvão, especialista em questões jurídicas relacionadas com tecnologias proteção de dados da SRS Advogados que tem trabalhado com a Comissão Europeia e o Conselho da Europa.

 

Neto Galvão recorda ainda que o DPO tem funções de controlo que passam por recomendações de boas práticas e alertas para as autoridades e não pela execução de medidas. “É claro que, em caso de falta grave, como uma violação do dever de confidencialidade, o DPO pode ser destituído. Mas tal não significa que possa ser destituído pelo mero conhecimento de más práticas. Quando tal ocorre, compete ao DPO avisar a organização, se necessário, ao mais alto nível e sugerir medidas. Ao DPO não está cometida, pelo RGPD, qualquer responsabilidade pela execução dessas medidas”, refere por escrito.

 

A APDPO também tem uma leitura similar: no comunicado lançado ao final da tarde a associação recorda que, do mesmo que garante autonomia ao DPO, a legislação europeia de proteção de dados faz incidir as responsabilidades de más práticas nas organizações. “É ao responsável pelo tratamento, ou seja, aos organismos nas pessoas dos seus dirigentes máximos, que incumbe adotar todas as medidas de proteção de dados", acrescenta.

 

A lei 58/2019, que executa o RGPD para a legislação nacional, não fornece muitos detalhes no que toca às responsabilidades que podem ser assumidas pelo denominado DPO: “Independentemente da natureza da sua relação jurídica, o encarregado de proteção de dados exerce a sua função com autonomia técnica perante a entidade responsável pelo tratamento ou subcontratante”, refere uma das alíneas do artigo 9º da lei 58/2019.

 

A autonomia concedida tanto pelo RGPD como pela lei nacional torna o DPO num elemento que deve ter acesso direto a nível hierárquico mais elevado – e que terá de atuar, mesmo contra os eventuais interesses das chefias hierárquicas, quando há uma má prática em termos de tratamento de dados. “Pela importância das funções que exerce e pela natural hostilidade que o exercício do seu cargo pode gerar numa organização, a destituição de um DPO é uma decisão de enorme gravidade e sensibilidade, que tem de ser antecedida de um procedimento que dê ao próprio a possibilidade de se defender e que documente ter sido tomada dentro da legalidade”, explica Luís Neto Galvão.

 

João Pedro Costa recorda que o desfecho deste caso também é político: “Os partidos com assento na Reunião da Câmara vão ter de decidir se o trabalhador é o bode expiatório ou se é a entidade patronal que assume a responsabilidade”.

 

Entre 2012 e 2021, a Câmara Municipal de Lisboa autorizou mais de sete mil manifestações – mas 180 desses pedidos de autorização redundaram no envio de dados para embaixadas ou serviços diplomáticos dos países visados pelas manifestações.

 

Nesses 180 pedidos cujos dados foram enviados indevidamente para embaixadas estrangeiras encontram-se 52 processos, que já terão sido levados a cabo depois de 2018, ano de entrada em vigor do RGPD na UE, que prevê multas que poderão chegar aos 20 milhões de euros. Portugal só garantiu a promulgação da lei que executa (que põe em prática dentro de uma margem de manobra pré-estabelecida) o RGPD em 2019.

 

Na passada sexta-feira, Fernando Medina pediu desculpa aos visados pelo envio de dados para as embaixadas estrangeiras e anunciou que iria proceder à exoneração do DPO.

 

O caso ganhou proporções com as denúncias de ativistas russos, depois de terem descoberto que os seus dados tinham sido enviados para a embaixada e governos russos, na sequência de um pedido de autorização para uma manifestação na cidade. Nomes, moradas, números de identificação e telefones terão sido partilhados nessa ocasião.

 

Antes deste caso mais mediático, também já haviam sido registadas, no passado, suspeitas de partilha de dados de manifestantes pró-Palestina com a diplomacia de Israel.

 

Durante o executivo de António Costa, que liderou a Câmara Municipal de Lisboa antes de chegar a primeiro-ministro, foi enviada, em 2013, uma ordem com vista a interromper o envio de dados de organizadores e manifestações para as embaixadas estrangeiras, mantendo a PSP como única entidade que teria de ser devidamente informada. Apesar de aprovada e divulgada, essa regra acabou por não ser devidamente respeitada nos anos que se seguiram.

 

* texto corrigido, depois da informação de que a Câmara entregou aos jornalistas dois emails, na sexta-feira, que confirmarão que os governos civis chegaram a enviar avisos de manifestações a pelo menos duas embaixadas.

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