OPINIÃO
Uma bola no lugar da cabeça
Em matéria de futebol, os políticos consideram-se
sintonizados com o “povo” e perdem a noção do seu privilégio. Não deviam.
João Miguel
Tavares
26 de Junho de
2021, 0:00
https://www.publico.pt/2021/06/26/opiniao/opiniao/bola-lugar-cabeca-1967919
A melhor razão
para separar o futebol da política é esta: há qualquer coisa no futebol que faz
até as pessoas inteligentes parecerem “lelés da cuca”. O problema agrava-se
quando está em causa a selecção nacional e os mais altos representantes da
nação sentem o dever de se mostrar “patrióticos”. Ao misturar esta tendência
irritante com uma pandemia que limita a liberdade a milhões de pessoas, o resultado
é um cocktail explosivo que afecta a lucidez dos políticos e origina
declarações públicas delirantes.
A primeira figura
do Estado – o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa – disse há dez
dias, em Budapeste, quando estava a ser questionado pelos jornalistas sobre o
combate à pandemia e o desentendimento com o primeiro-ministro quanto às
medidas de confinamento: “Não vou agora estar a falar de outros temas, porque é
desconcentrar do fundamental.” O fundamental, segundo Marcelo, era o Portugal-Hungria,
ao pé do qual o aumento do número de infectados e um novo encerramento parcial
da economia era questão menor.
A segunda figura
do Estado – o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues – disse na
quarta-feira, após o Portugal-França e o apuramento para a fase seguinte do
Euro, em que a selecção vai jogar com a Bélgica em Sevilha: “Espero que os
portugueses se desloquem de forma ‘massiva’ para o Sul de Espanha e que possam
apoiar uma grande vitória de Portugal nos oitavos de final deste Campeonato da
Europa.” Isto foi na véspera de serem anunciadas as medidas que fazem marcha
atrás no desconfinamento em vários concelhos, incluindo Lisboa, onde o comércio
e a restauração voltam a ter horários limitados, em particular ao fim-de-semana.
Imagino o que será para um comerciante de Lisboa ou de Albufeira, que anda há
ano e meio a lutar pela sobrevivência do seu negócio, ouvir Ferro Rodrigues
mandar os portugueses “massivamente” para Sevilha, quando eles estão proibidos
pelo Governo de jantar fora no sábado à noite.
A terceira figura
do Estado – o primeiro-ministro, António Costa – também tem o seu quinhão de
frases insanas em tempos de pandemia, a mais famosa das quais foi proferida o
ano passado, quando anunciou a realização da fase final da Liga dos Campeões em
Lisboa: “Um prémio merecido para os profissionais de saúde.” Desde então,
Portugal continuou a dar prémios sucessivos aos profissionais de saúde,
oferecendo-lhes um vasto leque de variantes da covid-19, para eles não se
aborrecerem sempre com a mesma, através da organização de outros grandes
eventos desportivos, incluindo a famosa final da Champions no Porto, um jogo
entre dois clubes ingleses que Inglaterra se recusou organizar.
O corrupio de políticos à volta da selecção, com a
presença das principais figuras em todos os jogos, é uma afronta ao país dos
desempregados pela pandemia e dos negócios devastados. Não perceber isso é não
perceber coisa alguma
Mais do que
sublinhar esta espantosa falta de noção quando a pandemia se cruza com o
futebol – cujo ponto alto foram os festejos da vitória do Sporting, que fizeram
disparar o R(t) em Lisboa e produziram um relatório de apuramento de
responsabilidades que ainda ninguém viu – é perceber porque é que ela acontece.
Porque é que estas pessoas perdem a noção do seu papel, e parecem, diante do
futebol, adolescentes deslumbrados com a primeira namorada? A minha tese é
esta: em matéria de futebol, os políticos consideram-se sintonizados com o
“povo” e perdem a noção do seu privilégio. Não deviam. O corrupio de políticos
à volta da selecção, com a presença das principais figuras em todos os jogos, é
uma afronta ao país dos desempregados pela pandemia e dos negócios devastados. Não
perceber isso é não perceber coisa alguma.
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