ANÁLISE
França: a greve dos eleitores
A esmagadora abstenção nas eleições regionais francesas
surge como um risco para democracia. Tanto mais que é acompanhada por uma
contínua fragmentação política que desorienta os eleitores.
Jorge Almeida
Fernandes
26 de Junho de 2021,
7:00
https://www.publico.pt/2021/06/26/mundo/analise/franca-greve-eleitores-1968004
Os tempos não
estão fáceis para a política e para os partidos. A saúde das democracias
europeias não é invejável. A primeira volta das eleições regionais francesas de
domingo fez soar o alarme: 66,7% dos inscritos não compareceram nas urnas e a
cena política aparece ainda mais fragmentada que antes. Estes são os fenómenos
de fundo. Por fim, um relativo avanço da direita e um enfraquecimento de
Emmanuel Macron e de Marine Le Pen suscitam novas incógnitas para as eleições
presidenciais de Abril de 2022. Mas a própria análise destes efeitos é posta em
causa pelo nível da abstenção.
A abstenção, uma
perfeita greve dos eleitores, começa por se dever à desvalorização de uma
eleição que devia rodar em torno de interesses regionais, mas que foi marcada
por uma forte polarização política.
Dominique Reynié,
director do think thank Fondapol, considera que “a campanha foi esmagada por
temas nacionais e uma extrema politização”. Alguns evocaram a possível
influência da pandemia, que teria acentuado a indiferença dos cidadãos. Mas,
responde Reynié, “a abstenção de domingo inscreve-se numa série”. Na segunda
volta das eleições legislativas de 2017, houve um recorde de 57,3% de
abstenções, enquanto a mesma taxa nas presidenciais desse ano foi de apenas
25,4. Outro máximo foi atingido nas regionais de 2020 – 58,4. Olhando, num
horizonte temporal mais largo e sempre no terreno das regionais, passámos de
uma abstenção de 22% em 1986, para os 66,7 de 2021.
“A
‘des-institucionalização’ da vida política é um temível desafio para a nossa
democracia”, sublinha Reynié. “Marca o advento de uma forma anómica da política
(…) e a ascensão do peso do espaço público digital.” E deixa o campo livre à
contestação por minorias activas. “Esta greve às urnas é grave”, escreve o
Monde em editorial. “A abstenção é uma fábrica de contestação.”
Canibalização
Gérard Grunberg,
do CNRS, atribui a enormidade da abstenção à “canibalização pela eleição
presidencial das outras consultas eleitorais e à desestruturação do sistema
partidário”. Por isso esta abstenção não deverá repetir-se em Abril de 2022.
“Durante a V República, a eleição presidencial sempre foi a eleição rainha. Com
a passagem do tempo tornou-se na única.” As próprias legislativas têm vindo a
ser desvalorizadas.
A desestruturação
do sistema partidário começou com o declínio da clivagem esquerda-direita no início
do século e foi consumada nas presidenciais e nas legislativas de 2917,
argumenta Grunberg. O Partido Socialista quase se evaporou. A direita clássica
falhou a segunda volta das presidenciais, em benefício da nova polarização
Macron-Le Pen. “Esta desestruturação do sistema não desembocou numa
recomposição, privando os eleitores de referências claras para se orientarem no
campo político.” O que, uma vez mais, favorece a abstenção.
A desorientação é
patente entre os antigos líderes socialistas. Na Île-de-France (região
parisiense), Lionel Jospin e François Hollande apelam ao voto em Julien Baylou,
candidato ecologista apoiado pela esquerda, enquanto Manuel Valls e Jean-Paul
Huchon, ex-presidente socialista da região, declaram votar na candidata de
direita, Valérie Pécresse, que rompeu com Os Republicanos e lidera a região
desde 2015.
O
“estilhaçamento” do sistema partidário e o declínio das referências ideológicas
tornam as previsões políticas cada vez mais aleatórias. Em Março houve um
alarme. O Libération anunciou o fim da “frente republicana”, porque quase
metade dos eleitores de esquerda declaravam recusar-se a escolher entre Macron
e Le Pen na segunda volta das presidenciais: “Nem Macron nem Le Pen”, era o
slogan.
Os resultados do
passado domingo voltam a baralhar as contas. Segundo o semanário L’Obs, põem em
dúvida a certeza de que a segunda volta de 2022 irá necessariamente ser
disputada entre Macron e Le Pen.
Certo é que o resultado
das presidenciais vai ser ditado pelos 30 milhões de abstencionistas que, em
Abril, não deixarão de acorrer às urnas.
Os duelos de
domingo
Quatro forças
disputam domingo a segunda volta das regionais. A direita, relativamente unida,
a esquerda (ora dividida ou unida), A República em Marcha (LREM), de Macron, e
a União Nacional, de Marine Le Pen. Acontece que a maioria dos acordos de
transferência de votos falhou. Assim, em vez de duelos ou das habituais
competições triangulares, dominam as competições quadrangulares. Em muitos
casos, os candidatos não se retiram em nome da clareza ou das
incompatibilidades, o que se vai reflectir em baixas votações dos vencedores, o
que se arrisca a enfraquecer a legitimidade dos presidentes das regiões.
Os partidos de
Macron (que não se envolveu na campanha) e de Le Pen foram os mais penalizados
na primeira volta. Sofrem os efeitos da deficiente implantação regional. Resta
saber se será apenas isso. Le Pen, que recuou nove pontos em relação a 2015,
“está em pânico”, diz a imprensa, temendo o impacto sobre a presidencial, onde
a direita clássica lhe vai disputar a primazia.
Sylvain Courage,
chefe de redacção do L’Obs, sublinha o engano das sondagens e pergunta se
poderemos confiar nos estudos de opinião que colocam Le Pen à frente na
primeira volta das presidenciais. “Outrora subestimado nas sondagens de
intenções de voto, estará agora sobrevalorizado o sufrágio lepenista?”
Para “salvar os
móveis” Le Pen precisa de conquistar uma região, a Paca (Provença-Alpes-Côte
d’Azur), onde o seu aliado Thierry Mariani ficou em primeiro lugar mas é
ameaçado pelo candidato do LREM, Renaud Muselier, apoiado por Os Republicanos e
beneficiando da desistência dos ecologistas. As sondagens apontam para um
resultado 50-50… Se o duelo da Île-de-France ainda assume a forma de confronto
esquerda-direita, o da Paca significa uma barragem anti-Le Pen.
A direita
tradicional foi quem melhor resistiu à abstenção. Estas regionais servirão
também para aferir a força relativa dos seus três potenciais candidatos às
presidenciais: Laurent Wauquiez, ex-líder de Os Republicanos, Xavier Bertrand e
Valérie Pécresse, que abandonaram o partido após a eleição de Wauquiez que,
entretanto, acabou por se demitir. Como vai a direita designar um candidato, agora
que desistiu de fazer primárias? Para lá do resto, os três potenciais
aspirantes ao Eliseu representam linhas políticas divergentes.
Outra incógnita:
vão os ecologistas dirigir alguma região? Quanto à esquerda, as perspectivas
não são brilhantes. Estas interrogações são, de certa forma, a “espuma das
regionais”. O principal é aquilo a que alguns chamaram “um desastre cívico” ou
“um cisma entre a classe política e os franceses.” Outra questão, com reflexo
em 2022, é averiguar se o retrocesso da extrema-direita foi um acidente ou é
uma tendência de fundo.
tp.ocilbup@sednanrefaj
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