terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O PSD ameaça tornar-se uma “geringonça”


O PSD ameaça tornar-se uma “geringonça”

O chumbo anunciado da TSU justifica-se não tanto pela substância da medida mas mais como uma reacção emocional ao desprezo do Governo. O que faz do PSD um partido volátil, em equilíbrio precário, sem coerência nem memória. Outra “geringonça”.

Manuel Carvalho
18 de Janeiro de 2017, 6:29

O PSD não precisou de fazer alianças contranatura para se transformar por iniciativa própria numa outra “geringonça”. A reacção do partido à redução da Taxa Social Única (TSU) é um monumento à volatilidade política, uma homenagem à incoerência programática, um apagamento da memória, uma vénia ao oportunismo, uma submissão à vertigem do equilíbrio instável, que ora o leva a ser quem é, ora o move a procurar identidades alternativas que lhe permitam dizer “eu existo”. A apresentação de tecnicalidades pertinentes ou as farpas justas que o PSD tem lançado a um Governo estranhamente em paz com os aliados que lhe estragam os planos e cinicamente em guerra com o principal partido da oposição não iludem o essencial: a credibilidade e a coerência do partido ficaram em causa com o anunciado chumbo à descida da TSU. O PSD regressou ao passado e tornou-se um partido de humores. Por estes dias mostra-se irritadiço, instável, nervoso, agressivo, sem desígnio, projecto ou identidade programática perceptíveis, capaz de dar cabo da Concertação Social mais por birra do que por divergência substancial. Razão tem Marques Mendes: este é o maior erro de Passos desde que está na oposição.

Vamos por partes, começando onde se deve começar: no aumento do salário mínimo. Num mundo ideal, como o que propõe o PSD, o aumento de 37 euros deveria obedecer aos critérios de uma economia sã – a produtividade, a inflação e o crescimento. Mas Portugal vive uma situação de emergência. O salário mínimo vale hoje proporcionalmente menos do que em 1974. A pobreza atinge um em cada dez trabalhadores. Haver uma política voluntarista para o salário mínimo é um acto banal de um Governo de esquerda. Difícil era levá-lo à prática em concordância com os patrões. É aqui que entra a redução da TSU. Não era a primeira vez que a TSU era chamada a financiar o aumento do salário mínimo. E desta vez o patronato será responsável pelo aumento de 30 euros, cabendo sete euros ao decréscimo de 1,25% da TSU. Há neste acordo um certo artificialismo? Há. Há um risco para a Segurança Social já de si debilitada? Sem dúvida. Mas há nos seus termos um bem precioso: uma política activa em favor dos trabalhadores mais pobres, feita pelo consenso entre os patrões e uma parte dos sindicatos.

Como seria de esperar, o Bloco, o PCP, os Verdes e a CGTP mantiveram a sua coerência e estão contra o acordo. Para eles, o mundo é brutalmente simples: trabalhar é um direito e pagar salários é um dever dos patrões imune a conjunturas ou às condições da tesouraria. O Governo ficou a flutuar com a vitória conseguida na “feira de gado” da Concertação Social e, sabendo da hostilidade da sua base de apoio, esperava que o PSD lhe desse a mão na hora “H”. Uma atitude que revela arrogância e desprezo. E torna cruelmente nítida a inconsistência de uma solução política que obriga o Governo a governar por metade, por expedientes, caso a caso, sem margem para opções de fundo em matérias sensíveis como a política económica ou de rendimentos.

Apesar desta triste realidade, o PS tinha razão em alimentar expectativas em relação ao apoio do PSD. O PSD é o inventor da fórmula. O PSD já a aplicou em 2014 e absteve-se de chumbar uma descida da TSU de 0,75% este ano. O PSD chegou a pedir que o corte na taxa agora decidido fosse aplicado às instituições de solidariedade social, o que foi aceite pelo Governo. O PSD é o partido que mais se bateu pela Concertação Social. O PSD é o partido que mais sensibilidade tem manifestado em relação às necessidades do tecido económico. Esperava-se pois que Passos barafustasse, que exigisse alterações no Parlamento, que denunciasse o voluntarismo da política do Governo. Mas não se esperava que pudesse ferir de morte o acordo. Porque em causa não está uma divergência programática. Como Paulo Rangel bem reconhece, “não está em causa – ao invés do que muitos já discorreram com estrondo – a questão substantiva do acordo”. O que está em causa é uma irritação, uma reacção emocional ao desprezo com que o PS encarou o papel do PSD neste drama. Muito pouco para fazer cair um acordo feito em sede da Concertação Social.

Passos talvez consiga animar os seus incondicionais ou reunir o rebanho tresmalhado – caso de José Eduardo Martins. Mas vai ser-lhe difícil explicar a comunhão com a esquerda da esquerda, defender-se das críticas dos empresários, sindicatos ou instituições do sector social que lhe são próximos ou responder aos barões do partido que depressa se insurgiram contra tamanha heresia. Se Passos tivesse dito que o acordo devia ser melhorado, criando travões para que as empresas não abusem dos salários mínimos ou procurando alternativas para proteger a Segurança Social, teria marcado pontos. Agora, dizer que o partido chumba a TSU porque não está para ser “bombeiro da geringonça”, como o disse Luís Montenegro, é regressar ao tempo da politiquice barata na qual o interesse partidário sobrelevava o interesse geral do país. É, como escreveu Silva Peneda, um acto de “puro tacticismo político, no qual nem o património passado do partido nem o interesse da economia nacional estiveram presentes”.

Ligado ao Bloco e ao PCP, o PSD integra-se agora numa aliança espúria que serve apenas para provar que a política portuguesa se tornou ela própria uma interminável “geringonça” em que a previsibilidade é inexistente, a lógica improvável e os programas relativos. Não sabemos como irá acabar esta história. Talvez António Costa invente uma solução inesperada, sabidos que são os seus talentos para tirar coelhos da cartola. Talvez o episódio mostre que nem os seus poderes mágicos bastam para alimentar uma coligação tão natural como um cocktail de água com azeite. Os danos estão à vista e as suas consequências inevitáveis. O Governo recebeu um cartão amarelo que pode inverter o ascendente na agenda que até agora teve sobre o Bloco, os Verdes e o PCP, os partidos que, no meio da algazarra, são os únicos que parecem saber o que querem. O CDS espera, matreiro, para ver como acaba a confusão, e tenderá a jogar com o baralho que tiver mais trunfos.

E o PSD? O PSD tenderá a ser visto como o promotor do desconcerto social, o idiota útil do Bloco e do PCP numa guerra contra os patrões, como um partido que esgotou a sua paciência para ser oposição, que não olha a meios para deitar o Governo abaixo. Nem que para isso tenha de rasgar alguns dos seus mais preciosos pergaminhos. Os da proximidade ao mundo da economia privada. Ou os que sustentam a importância de acordos na Concertação Social para evitar que o país fragilizado se esfrangalhe ainda mais.


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