domingo, 15 de janeiro de 2017

José António Cerejo: “Não deve haver relações privilegiadas entre jornalistas e poderes. Mas há”


José António Cerejo: “Não deve haver relações privilegiadas entre jornalistas e poderes. Mas há”
Carolina Branco (Media Lab - U.Nova), Foto: Zita Moura (Media Lab – Universidade de Coimbra)

Está reformado desde junho mas, nas suas palavras, continua a ser jornalista. Durante quase 30 anos, José António Cerejo foi grande repórter no jornal “Público”. É conhecido pelo trabalho na área da investigação, na qual tratou casos como o do Freeport e escândalos na política. Veio ao segundo dia do 4º Congresso dos Jornalistas e não saiu sem nos dar uma entrevista.

Porque é que decidiu reformar-se?
Estava muito cansado e faltava-me paciência. Sentia cada vez mais dificuldades em seguir os ritmos que o tempo presente impõe. Esses ritmos tinham-se tornado, para mim pesados. Não é que exigissem que seguisse a velocidade a que se tem de trabalhar, hoje em dia, nas redações. Não me exigiam porque, bem sabiam, eu fazia outro tipo de trabalho que não era compatível a esse ritmo. Mas eu próprio não me sentia bem a ter tempo para fazer as minhas coisas e ver os meus camaradas da redação, sobretudo os mais novos, a ganharem misérias e a trabalharem loucamente a toda a hora. E, com os meus 1800 euros líquidos, que recebia no jornal, fazia-me impressão.

Havia ainda outra coisa. Foi um fenómeno que entretanto foi esbatido mas, durante muitos anos, fazer o trabalho que eu fazia criava dificuldades, até de relacionamento, entre mim e a hierarquia do jornal. Esses trabalhos, embora gostassem de os publicar, tentavam publicar depois de os tentar expurgar ou levar-me a expurgá-los de aspetos que eles tinham o direito de não partilhar e de não aceitar mas que, para mim, eram muitas vezes sentidos como formas de condicionamento. Aconteceu-me muitas vezes, com todas as direções que o “Público” teve, desde o princípio mas, sobretudo, nos últimos 15 anos de redação. Muitas vezes tive que discutir demasiado coisas que para mim não justificavam a discussão e o cansaço. Tive fricções porque em determinadas matérias [as hierarquias] diziam que não estava suficientemente fundamentado, mas para mim estava.

Seria medo?

Sim, medo de assumir as chatices que dava a publicação de certas coisas. Nos últimos dois anos, no Público, fui ganhando uma margem de manobra. Fazia umas sugestões mas não me estava a massacrar como me aconteceu com coisas que eu sabia que por vezes eram motivadas por fatores como a proximidade entre as hierarquias e determinadas entidades ou pessoas que eram visadas em coisas que eu escrevia. O que também é humano.

Eu percebo bem que houvesse pessoas que tivessem uma relação privilegiada. Eu acho que não deve haver relações privilegiadas entre os jornalistas e estes poderes mas há essa tradição. É algo que, para mim, é muito mau no jornalismo português que é a excessiva proximidade que os jornalistas têm com os poderes todos. As pessoas muitas vezes justificam esse tipo de aproximação com a necessidade de estar próximo de fontes de informação importantes. Eu percebo, mas não justifica que se vá além do necessário. Por exemplo, os políticos têm de dar a informação porque têm a obrigação institucional e constitucional. Os jornalistas não têm de andar sempre atrás deles para nos dizerem as coisas que, por obrigação legal, têm de serem ditas. Às vezes, são documentos que deveriam estar publicados que são de natureza pública.


Zita Moura (Media Lab - Universidade de Coimbra)
Acha que esse tipo de relacionamentos pode ser um obstáculo ao jornalismo de investigação?
Eu acho que é um obstáculo a todo o tipo de jornalismo. Muitas vezes, os jornalistas que cultivam este tipo de proximidade com este tipo de fontes de informação pública, involuntariamente, acabam por ser instrumentalizados por eles e manipulados. Eles dizem aquilo que querem, ainda por cima sem darem a cara. Contam as coisas da forma que querem, quando querem e o jornalista, na maior parte das vezes, nesse tipo de situações não tem – às vezes tem, mas não a exerce – a possibilidade de verificar o que aquela pessoa está a dizer. O tipo está a dar uma versão que é a que lhe interessa a ele e à facção dele, daquela organização, sob anonimato, e os jornalistas ficam gratos ao homem que lhes disse aquelas coisas. Se calhar, no dia seguinte, vão almoçar com ele porque até é um gajo porreiro. É um problema sério.

Quais são, então, os obstáculos específicos do jornalismo de investigação?
O primeiro obstáculo é o desinteresse neste tipo de jornalismo – eu não gosto de usar o termo “jornalismo de investigação” porque todo o jornalismo implica investigação. Este jornalismo não é interessante para as empresas de comunicação social, apesar de muitas vezes as hierarquias dizerem que é óptimo e que precisamos de fazer mais disso. Na verdade, nos tempos atuais, essas hierarquias estão empedradas por estruturas acionistas, estão cada vez mais concentradas, mais ligadas ao poder económico. Este tipo de trabalho, quando publicado, suscita muitas vezes problemas das mais variadas ordens. Desde pessoais, entre o meio que publica a história e a pessoa que não queria que a história fosse publicada. E, por vezes, essa pessoa é a tal com quem vamos almoçar.

Este tipo de trabalhos acarreta, por vezes, problemas institucionais. Um partido que fica zangado e que depois não quer falar nem com aqueles com quem se almoça porque o jornal publicou coisas que lhe foram desagradáveis. Podia falar do Mário Soares ou ao João Soares sobre os quais escrevi coisas que devem ter sido desagradáveis para eles. Em retaliação das coisas que eu publicava, muitas vezes com dificuldade, fecharam praticamente as portas, durante anos a outros colegas meus do “Público”. Não só a mim. Não falavam, não queriam falar. O “Público” não. Não davam entrevistas. Mesmo fora da área política. Vê-se muito no futebol, por exemplo. Esses tipos recusam os jornalistas daquele jornal nas conferências de imprensa, no campo de futebol, não atendem os telefones.

Depois há problemas associados a estes que são os processos judiciais, os pedidos de indemnização. Aliás, tenho um processo pendente em tribunal em que há uma pessoa que pede 500 mil euros ao jornal. Esse valor, contabilisticamente, é uma chatice para o jornal.

Este trabalho custa dinheiro e mais dinheiro custaria se fosse feito em condições, se os jornalistas que o fazem tivessem apoios a nível de consultadoria jurídica, financeira e noutras áreas quando se está a tratar de assuntos mais especializados.

Tem alguns artigos arrumados na gaveta? Ou seja, alguma coisa que quis dizer e não conseguiu?
Não. Publiquei muita coisa com alterações propostas e de algum modo impostas pelas direções, que eu não queria que tivessem sido introduzidas mas que eu aceitei por achar que mesmo assim valia a pena publicar. Tenho muitas coisas publicadas envergonhadamente numa página recôndita para que ninguém desse por isso. Tenho histórias publicadas parcialmente, porque foi decidido que ocupava muito espaço quando muitas vezes o motivo não era a falta de espaço. Tenho histórias de trabalhos que foram abafados no meio de outros. A direção arranjava embrulhos muito grandes com trabalhos complementares supostamente do mesmo tipo.

Acha que alguma vez vai conseguir desligar-se do jornalismo?

Do jornalismo prático, acho que sim. Para dizer a verdade, não sei. Quando me reformei, a minha ideia era “não vou fazer mais nada, não quero mais nada com os jornais e com os jornalistas, não quero mais nada com a profissão”. Mas não sei responder.

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