sábado, 21 de janeiro de 2017

O mundo (ainda) não sabe o que esperar de Donald Trump


O mundo (ainda) não sabe o que esperar de Donald Trump
A Europa enfrenta a sua prova de vida. Xi Jinping prepara-se para ocupar o espaço que ficar vazio. Putin esfrega as mãos de contente.

20 de Janeiro de 2017, 6:30

Há oito anos, milhões e milhões de pessoas assistiam em directo à tomada de posse do primeiro Presidente afro-americano da História dos Estados Unidos, no termo de uma campanha que fez dele uma estrela internacional. Depois de George W. Bush, o mundo contemplava uma América de novo luminosa e um Presidente capaz de alimentar a esperança entre “os homens de boa vontade”, na expressão perfeita de Pierre Hassner. Hoje, porventura os mesmos milhões olharão para a tomada de posse do homem mais poderoso do mundo com perplexidade e preocupação. Mas será, indubitavelmente, em Berlim, Paris ou em Bruxelas, em Pequim e Nova Deli, em Havana ou em Varsóvia, no Cairo ou em Teerão que o seu discurso inaugural será acompanhado com a maior atenção. Não foi sequer preciso que entrasse na Casa Branca para que o mundo se visse subitamente confrontado com uma visão do papel da América que rompe abruptamente com a política externa americana desde o fim da II Guerra.

Trump prometeu rasgar o legado dos seus antecessores em quase todos os domínios da esfera internacional. Dos acordos de comércio livre às alterações climáticas, passando pelas relações com as grandes potências mundiais ou com os seus aliados mais próximos. Deixou um rasto de imprevisibilidade que é o pior que pode acontecer à ordem internacional quando ele vem da única superpotência.

O grande timoneiro
Feliz ou infeliz coincidência, tivemos na última terça-feira o retrato pouco animador do que pode ser esse mundo. Em Davos, a maior delegação chinesa de sempre, liderada pelo Presidente Xi Jinping, conseguiu marcar da forma mais inesperada o evento anual que reúne as elites mundiais para tirar o pulso à economia e às grandes tendências políticas dominantes. Xi fez o discurso que marcará este encontro. Apresentou-se como o grande paladino do comércio livre, elogiou a cooperação entre os EUA e a China, que souberam resistir “à chuva e ao vento”, prometeu que não faria uma guerra cambial desvalorizando o renminbi. Deixou um bom conselho aos que defendem o proteccionismo: no fim, ninguém vence, apenas há perdedores. Politicamente, o seu discurso, mesmo que surpreendente, indica que a China não tenciona perder a oportunidade aberta por uma eventual retirada dos Estados Unidos da cena internacional, para preencher o vazio. Trump fez-lhe o favor de anunciar que rasgará a Parceria Transpacífica de livre comércio, que Obama negociou com os países da Ásia-Pacífico, menos a China.

As suas palavras estão, obviamente, muito longe da realidade. Xi concentrou nas suas mãos mais poder do que algum dos seus antecessores, à excepção de Mao. Prometeu seguir um novo modelo de desenvolvimento económico mais apostado no crescimento do consumo interno do que nas exportações. Sabe que as fragilidades da economia chinesa o obrigam a tentar por todos os meios uma “aterragem suave” para uma nova era de crescimento que já não será de dois dígitos. O seu interesse pela globalização é fácil de explicar. Foi ela que permitiu à China desenvolver a sua economia ao ponto de conseguir retirar mais de 400 milhões da pobreza e criar uma classe média com um notável poder de compra. Sabe que a legitimidade do Partido Comunista Chinês depende da melhoria de vida das pessoas. A “ascensão pacífica” que marcou os anos de Deng até recentemente, subordinando tudo ao crescimento, deu lugar a uma “ascensão menos pacífica”, através da qual a China quer reivindicar um papel muito mais activo na condução das grandes questões internacionais. O Monde chamava-lhe ontem o “Grande Timoneiro do comércio livre”.

Putin e as prostitutas
Ao mesmo tempo que Xi surpreendia o mundo com a sua linguagem poética (é típica do discurso chinês), em Moscovo, Vladimir Putin dava uma conferência de imprensa para desvalorizar o relatório secreto segundo o qual Moscovo tem na sua posse formas de chantagear o próximo Presidente americano. Quem é que acredita que “Trump chegou a Moscovo e foi logo a correr encontrar-se com prostitutas russas?”. “É um homem adulto e, para além disso, durante muitos anos organizou concursos de beleza, socializando com as mais belas mulheres do mundo”. No mínimo, um discurso surreal sobre um Presidente americano.

Putin foi o grande vencedor das eleições americanas. Não apenas porque está praticamente confirmada a sua “intervenção” na campanha eleitoral através de pirataria informática, mas porque encontrou no novo Presidente um parceiro que parece estar disposto a iniciar com ele uma nova relação de cooperação, deixando para trás os anos em que Obama e Merkel o obrigaram a pagar o preço da anexação da Crimeia. Outros Presidentes antes dele aproximaram-se de Putin. Bush chegou mesmo a dizer que o tinha olhado nos olhos e visto uma boa alma. Obama tentou o reset logo em 2009 e presidiu a uma cimeira da NATO (em Lisboa) destinada a pôr definitivamente cobro à Guerra Fria. O que Trump propõe é muito diferente. É uma parceria económica e política que passa por cima da Europa e dos seus principais aliados, sem qualquer preocupação com a sorte daqueles que o Presidente russo ameaça directamente. Admitindo que há uma ideia política que preside a esta simpatia, ela será fazer da Rússia um aliado e da China o inimigo principal.

No Pacífico, tudo de novo
Trump conseguiu num segundo pôr em causa a política americana sobre o reconhecimento de uma só China, com um telefonema para a Presidente de Taiwan que enfureceu Pequim. Xi mostrou em Davos que vê a sua eleição também como uma oportunidade. Obama via na China o maior desafio estratégico que o seu país e o mundo enfrentam no longo prazo. Tratou de assegurar aos seus aliados regionais que continuaria a ser um “potência asiática”, com a sua presença militar no Pacífico. Reforçou a cooperação militar com o Japão e continuou a garantir a segurança da Coreia do Sul perante a crescente ameaça nuclear de Pyongyang. Tudo isto, que as autoridades chinesas viram como uma tentativa de impedir a sua afirmação internacional, não o impediu de manter a porta aberta à cooperação com Pequim, que teve o seu momento alto na Cimeira do Clima em Paris. Trump avisou os aliados regionais que tinham de se preocupar mais com a sua própria segurança. Incitou-os a construírem a sua própria bomba nuclear. Os pequenos países que rodeiam a China pelo Leste, do Vietname à Tailândia, passando por Singapura, temem a sua crescente presença militar e a sua nova agressividade. Sem os Estados Unidos não teriam outro caminho senão estender-lhe a mão. Também eles esperam ansiosamente ouvir Trump dizer ao que vem. Os analistas não acreditam numa retirada. Philip Golub, professor da universidade americana de Paris, diz ao Monde que os EUA são “uma potência do Pacífico desse o século XIX e sobretudo depois da II Guerra”. “Têm na região interesses estratégicos de primeiríssima importância”, diz o académico francês. Uma retirada nesta altura, “quando a China se afirma como grande potência” seria um desastre.

Mas a ruptura mais violenta pode estar reservada para a Europa. Durante 60 anos, a aliança transatlântica foi crucial para as democracias europeias. Os dois lados partilhavam os mesmos valores e, em boa medida, os mesmos interesses. A Aliança Atlântica garantiu a segurança europeia durante a Guerra Fria e continuou a fazê-lo depois. Sobreviveu a todas as crises que podiam ter afectado a sua coesão. Depois da Guerra Fria, Trump não é o primeiro Presidente a querer que os europeus paguem mais pela sua própria segurança. Mas, mais do que isso, a América funcionou como uma “potência europeia”, apoiando a integração e garantindo ao longo dos anos que nenhum país se sentisse ameaçado por outro. Mergulhada numa crise existencial de uma dimensão inédita, a Europa enfrenta nas piores condições a sua derradeira “prova de vida”. Trump põe tudo em causa. A NATO, que considera obsoleta, a unidade europeia na qual não vê qualquer sentido, os automóveis alemães que, alegadamente, enchem as ruas de Nova Iorque. De uma penada, o novo Presidente põe em causa “os dois pilares da estratégia americana nos últimos 70 anos, a União Europeia e a NATO”, escreve Josef Joffe no Guardian. É muito para digerir.

Na entrevista que deu ao Times e ao Bild no passado fim-de-semana, Trump elogiou o "Brexit" e disse esperar que outros países lhe sigam os passos. Nunca, mas nunca, os europeus ouviram tal coisa de um Presidente americano. O seu discurso visa particularmente a Alemanha. “Olhem para a União Europeia e vêem a Alemanha. Basicamente, é um instrumento da Alemanha.” Classificou de “erro catastrófico” a política de abertura aos refugiados. Arnaud Leparmentier escreve no Monde que o Presidente “atiça o mesmo vento mau dos populistas de todas as origens, Le Pen, Farage e consortes - a germanofobia”.

O seu entendimento com Putin deixará Merkel em maior dificuldade para manter a frente unida contra a Rússia, que Obama ajudava a suportar. Os Bálticos ficarão mais expostos. Putin pode cair mais depressa na tentação de uma nova aventura bélica. Trump diz que a Aliança é obsoleta porque “não está a tratar devidamente do terrorismo”. Alguns governos europeus, incluindo a Alemanha, insistem em que chegou o momento de a Europa investir a sério na sua própria defesa. Não será fácil, num clima em que a desunião perdura sobre o destino da própria Europa. A retirada do Reino Unido é particularmente nociva neste domínio. François Hollande está de saída e na corrida ao Eliseu estão políticos de direita e de esquerda que vivem bem com uma aproximação à Rússia e um distanciamento da América, retomando a velha linha gaullista. Aos amigos de Putin somam-se agora os amigos de Trump. Dificilmente a Europa vencerá este desafio.


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