sábado, 21 de janeiro de 2017

Donald Trump inaugura a era da “América primeiro” / Europa deve preparar-se para “uma caminhada violenta”



Donald Trump inaugura a era da “América primeiro”
Mais do que orientações políticas concretas, o que se tentava encontrar no primeiro discurso do novo Presidente era a sua interpretação do seu papel e de como pretende desempenhá-lo. Foi radical, polarizador, provocador.

Rita Siza
RITA SIZA 21 de Janeiro de 2017, 0:55

Está desfeito o mistério: o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, será como foi o candidato presidencial Donald Trump, um homem agressivo, radical, polarizador e provocador, que não tem medo de usar palavras carregadas de simbolismo – como patriotismo, força, orgulho e destino – para proclamar que “de hoje em diante vai ser sempre a América primeiro”.

Num dos discursos de tomada de posse com o tom mais autoritários e isolacionista de que há memória, o novo ocupante da Casa Branca enunciou a “nova visão que vai governar o país” e atravessar as relações internacionais, “a partir de agora”, e que é a da “América primeiro” e acima de tudo o resto; a América que “brilha como um exemplo a ser seguido por todos”, que nada teme porque está “protegida por Deus” e cuja grandeza a torna “totalmente imparável”.

Depois de uma campanha eleitoral virulenta, que abriu uma profunda fractura no país, esperavam-se de Donald Trump palavras conciliatórias, que servissem para aproximar, sossegar e inspirar os norte-americanos. Em 2009, um optimista Obama proclamara “o fim das queixas, falsas promessas, recriminações e dogmas desgastados que durante tanto tempo estrangularam a política” para superar as divisões e unir o país. Trump manteve-se fiel ao seu guião de dividir para reinar.

No seu discurso inaugural, o Presidente dos Estados Unidos falou exclusivamente para os seus apoiantes: “os esquecidos” que ninguém ouvia e que foram até Washington em grande número para assistir à sua tomada de posse (e os restantes que seguiram a cerimónia pela televisão”. “Agora toda a gente vos ouve. Este é o vosso dia e esta é a vossa celebração. E este, os Estados Unidos da América, é o vosso país”, declarou, apontando a multidão predominantemente branca, mantida afastada por barreiras policiais de uma outra multidão, notoriamente mais diversa, de manifestantes.

O 45.º Presidente dos EUA fez questão de se anunciar como o primogénito de uma nova era política, onde o poder já não está concentrado nas instituições de Washington mas distribuído e pulverizado pelo país. “A cerimónia de hoje tem um significado muito especial, não porque estamos apenas a transferir o poder de uma Administração para outra, ou de um partido para outro, mas porque estamos a transferir o poder de Washington e a devolvê-lo ao povo”, observou.

Mais do que orientações políticas concretas, o que se tentava descortinar no discurso de Donald Trump era a sua interpretação do papel do Presidente e como pretende desempenhá-lo. Desde a confirmação dos resultados eleitorais de 8 de Novembro que se esperava uma “mudança” em Trump, que deixaria de ser o candidato que instigava a tensão e divisão para se transformar no Presidente de todos os norte-americanos, representante e símbolo maior de uma das democracias mais consolidadas e comandante do Exército mais poderoso do mundo. Trump desmentiu essas expectativas do princípio ao fim do seu discurso – parte do qual foi uma repetição dos slogans populistas e nacionalistas da sua campanha – remetendo sucessivamente para o seu manifesto político, e escusando-se a estender o tradicional ramo de oliveira aos seus adversários políticos e aos milhões de eleitores que não votaram nele.

Aliás, recusou sequer reconhecer a presença na cerimónia da sua rival eleitoral, Hillary Clinton, que recebeu cerca de três milhões de votos mais do que ele próprio (e se apresentou vestida de branco, em homenagem à luta do movimento sufragista que conquistou o direito ao voto para as mulheres norte-americanas). Iludiu ainda as razões que justificaram o boicote de dezenas de membros eleitos do Partido Democrata que recusaram comparecer no Capitólio por causa do racismo do Presidente – e também dos milhares que protestaram pelas ruas da capital, em defesa dos direitos das mulheres ou das minorias de muçulmanos, hispânicos, LGBT, ecologistas, artistas e até jornalistas.

Não foi só a oposição democrata que o Presidente desafiou. Empossado com a mais baixa taxa de aprovação da História, Donald Trump não se esforçou por lançar as bases de uma colaboração mais estreita com os legisladores do Congresso, incluindo a maioria do partido que o elegeu, o republicano. O seu discurso nada teve de conservador: foi revolucionário na denúncia do sistema que “soube proteger-se a si em vez de proteger os cidadãos”, e dos políticos que prosperaram e “recolheram as recompensas do governo enquanto o povo pagou os custos”. “Nunca mais aceitaremos políticos que passam o tempo a queixar-se mas nunca fazem nada. Acabou o tempo da conversa fiada, chegou a hora da acção”, advertiu, prometendo atender “às exigências justas e razoáveis do público honesto e honrado”.

Donald Trump deixou ainda para trás, na escadaria do Capitólio, a habitual cordialidade que une os membros do restrito clube dos antigos presidentes dos Estados Unidos e se manifesta em todos os momentos de solenidade institucional. Perante o seu antecessor Barack Obama, e também George W. Bush, Bill Clinton e Jimmy Carter, pintou um retrato devastador do país que herdou, referindo-se às vítimas de uma “carnificina” americana: a pobreza que aprisiona mães e crianças, o crime e a droga que roubam vidas, as fábricas transformadas em túmulos na paisagem.

O primeiro acto do Presidente Trump: criou o dia nacional do patriotismo
O discurso de Trump na íntegra: “De hoje em diante, uma nova visão vai governar a nossa terra”
Isso é o passado, a partir de agora só olhamos para o futuro”, sublinhou, anunciando “como um decreto” a sua visão de um país que que será outra vez grandioso. “A América vai voltar a ganhar outra vez, a ganhar como nunca ganhou antes. Vamos ter de volta os nossos postos de trabalho, as nossas fronteiras, a nossa riqueza e os nossos sonhos”, prometeu – insistindo que todas as suas decisões servirão para beneficiar “os trabalhadores americanos e as famílias americanas”.


Quando ainda estava a escrever o rascunho do discurso, Trump confessou que estava a inspirar-se em John Kennedy, mas essa influência acabou por perder-se no texto. O Presidente não perdeu muito tempo a olhar para o resto do mundo, mas prometeu aplicar o mesmo princípio – de que os interesses dos EUA estão à frente de tudo – nas relações internacionais. A sua convicção é de que cabe naturalmente à América um papel de liderança, mas desviando-se da linha de Roosevelt ou Reagan, explicou que só pretende assumir esse exercício para “erradicar completamente o terrorismo islâmico da face da Terra”. De resto, disse que os EUA procurarão “a amizade e boa vontade das nações do mundo". "Sem precisar de impor o nosso modo de vida, que brilhará como um exemplo para os outros seguirem”.


Europa deve preparar-se para “uma caminhada violenta”
Vice-chanceler alemão ouviu a Trump “um tom altamente nacionalista”.
Sofia Lorena

SOFIA LORENA 20 de Janeiro de 2017, 21:42

Houve poucas reacções internacionais ao discurso de tomada de posse de Donald Trump que fossem para lá das felicitações da praxe. A principal excepção chegou de Berlim, onde o vice de Angela Merkel e líder dos sociais-democratas alemães ficou preocupado com o “tom altamente nacionalista” da intervenção do novo Presidente dos Estados Unidos e ficou preocupado com as promessas proteccionistas do líder que repete “América primeiro”.

“Penso que temos de nos preparara para uma caminhada violenta”, disse Sigmar Gabriel, horas depois da cerimónia no Capitólio. Questionado pelo jornalista da televisão ZDF sobre a possibilidade de Trump deixar cair algumas suas promessas, como a imposição de impostos muito altos a carros importados do México, Gabriel disse acreditar que “ele está a falar extremamente a sério”.

As intenções proteccionistas de Trump assustam por várias vias, incluindo a possibilidade de abrir uma guerra comercial com a China que possa prejudicar a economia global. “Se os EUA entrassem em guerra comercial com a China e com toda a Ásia, então nós, enquanto europeus e alemães, seremos parceiros justos”, afirmou. “A Europa e a Alemanha precisam de uma estratégia definida em relação à Ásia e à China e teremos novas oportunidades”, defende Gabriel. A conclusão do político alemão é que “os europeus devem unir-se na defesa dos seus interesses”.

Da Ásia apenas uma reacção, vinda de Taiwan, um território que a China não reconhece como autónomo – e a propósito do qual Trump já alimentou uma polémica, ao atender um telefonema de felicitações da sua líder depois de ter sido eleito. “A democracia é o que une Taiwan e os EUA. Estou impaciente para reforçar a nossa amizade e parceria”, afirmou a Presidente taiwanesa, Tsai Ing-wen.

O vizinho em cuja fronteira Trump planeia construir um muro para travar a imigração foi outros dos que não ficaram calados no dia da tomada de posse. Depois de lhe dar os parabéns pelo juramento, Enrique Peña Nieto disse a Trump que gostaria de o ver fortalecer os laços entre os dois países, numa "responsabilidade partilhada" mas avisou-o que "a soberania, os interesses nacionais do México e a protecção dos mexicanos" é que são fundamentais para si.

Do Vaticano veio a promessa do Papa de que rezará pelo novo líder americano e vai orar para que “as suas decisões sejam guiadas pelos ricos valores espirituais e éticos ricos que fazem a história do povo americano”, pedindo a Trump que lidere um país “preocupado em cuidar dos pobres, dos excluídos e dos necessitados que, como Lázaro, se detêm à nossa porta”, numa formulação que Francisco parece ter escolhido para incluir os refugiados a quem Trump quer fechar a fronteira.

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