Porto de Tradição reluz em 75 lojas, mas nem todas estão
livres de perigo
Rui Moreira entregou esta semana as placas do programa de
protecção a lojas históricas. Mas alguns senhorios não desistem de despejar os
comerciantes. O Buraquinho vai mesmo perder a sua cave. Confeitaria Serrana,
Moreira da Costa e Café Embaixador ainda tremem.
Mariana Correia Pinto 31 de Janeiro de 2019, 8:30
Apesar da protecção camarária, o restaurante O Buraquinho,
na Praça dos Poveiros, não deve resistir à ordem de saída NELSON GARRIDO
Sérgio Costa assistia à cerimónia de entrega das placas de
identificação do programa Porto de Tradição e comentava com a sócia Marta
Quitério como poderia ser “bonito” aquele momento, não fosse a amargura de
saber que de pouco lhes valerá a classificação da Câmara do Porto. O
restaurante O Buraquinho foi um dos 75 estabelecimentos agraciados na passada
segunda-feira com o “selo” do projecto camarário de protecção a lojas
históricas da cidade. Para os proprietários, no entanto, o auxílio parece ter
chegado tarde. Apesar do apoio do executivo de Rui Moreira, vários comerciantes
ainda vivem na corda bamba, enredados em batalhas judiciais ou sob pressão de
senhorios que não desistem dos seus planos de despejo.
Na cave do número 33 da Praça dos Poveiros, a angústia não
serenou. Segunda-feira “era suposto ser um dia feliz”. Mas para Sérgio Costa o
banquete teve sabor “agridoce”: o reconhecimento é bom, mas não deverá desfazer
o pesadelo de fechar portas ao fim de 92 anos de história. “O objectivo do
Porto de Tradição é manter os espaços nos locais onde estão e nós vamos mesmo
ter de sair.” A fragilidade advém do facto de a classificação de loja histórica
ser posterior à primeira carta de comunicação de cessação do contrato enviada
pelo senhorio. O Buraquinho teve fim anunciado para 2018. Contestou. No fim do
ano, viu o tribunal dar razão ao proprietário. Recorreu. A probabilidade de
reverter a decisão é, agora, “ínfima”, avalia Sérgio Costa. E, por isso, a
busca por um novo local já começou. O PÚBLICO questionou a câmara sobre o
número de processos de contestação ao seu programa e sobre quais as situações
em que a protecção camarária não chega, mas não obteve resposta.
Na melhor das hipóteses, Sérgio Costa conta continuar a
servir os petiscos portugueses na cave de pouco mais de 30 metros quadrados até
ao fim do ano. Desistir de vez não é um plano. Mas os preços das rendas têm-se
anunciado incomportáveis. E a mudança de geografia pode até implicar a perda da
placa da autarquia, se nessa nova morada não se incluírem alguns dos elementos
decorativos característicos que têm na Praça dos Poveiros. “Se houver uma
oportunidade mudamos. Mas não é possível recriar isto”, diz num timbre
nostálgico: “Nunca mais vai ser um Buraquinho.”
Os turistas descobriram o número 52 da Rua do Loureiro,
junto à estação de São Bento, há coisa de três anos. Nas páginas do The New
York Times, a Confeitaria Serrana, nascida em 1945, levou carimbo de paragem
obrigatória. Pela simpatia de Mónica Oliveira, pelas fartas bolas de Berlim,
pela beleza arquitectónica ao estilo Arte Nova, o tecto pintado por Acácio
Lino. Ali, a clientela habitual ainda é tratada pelo nome (e até dá uma ajuda a
levantar louça da mesa se for preciso), mas mistura-se com gente chegada de
todos os cantos do mundo, como atestam dois livros de honra deixados em cima do
balcão, cuja última mensagem foi escrita por duas amigas da Coreia do Sul.
Mónica Oliveira herdou o negócio dos pais. Mal a altura lhe
permitiu chegar à máquina de cafés, teria uns cinco anos, começou a ajudar na
confeitaria. E nunca mais quis parar. Por isso, quando, inesperadamente, uma
carta anunciou uma mudança de senhorio, ela inquietou-se. A par das aflições de
outros comerciantes e moradores, Mónica tinha-se precavido antes disso e
iniciado o processo de pedido de protecção do Porto de Tradição. Em Julho de
2018 conseguiu o certificado e adiou a ordem de saída com data de Outubro. Mas
continua a ter o fim de Abril como fim de linha, nova ordem de saída.
A placa cinzenta entregue por Rui Moreira e o vereador
Ricardo Valente já está no balcão da Serrana. “Estou-me a segurar a ela”, diz
Mónica enquanto acarinha o objecto. O proprietário do edifício - onde está
também a Casa Arcozelo e a Pensão Douro – é, desde 2017, o empresário Pedro
Pinto, dono da Livraria Lello. E à Câmara do Porto este já fez chegar uma
contestação do certificado dado à Serrana, que o impede, pelo menos para já, de
levar os seus planos para o edifício avante. Mónica Oliveira sabe estar numa
“luta desigual”. Mas, contra agonias e dias do avesso, não há dinheiro do mundo
que a convença a sair. É que, por ali, os protagonistas da história não são
apenas euros.
A “vida em suspenso” tornou-se narrativa dominante para
Miguel Carneiro e Susana Fernandes. Os proprietários da Moreira da Costa, a
mais antiga livraria da cidade, deixaram de comprar livros e bibliotecas quando
o proprietário do edifício onde está também o renovado hotel Infante Sagres
lhes comunicou a intenção de os “despejar”. A candidatura ao Porto de Tradição
surge depois disso, mal esse processo é aberto, uma vez que –
“inexplicavelmente”, nas palavras de Susana Fernandes - a livraria não integrou
a lista inicial do programam camarário, na altura com 37 estabelecimentos. A
Câmara do Porto acabaria mesmo por atribuir a chancela de histórica à Moreira
da Costa. E na cerimónia desta segunda-feira, Susana Fernandes alegrou-se por
sentir nos discursos do executivo de Moreira um tom de valorização dos
comerciantes que a dada altura lhe pareceu pouco convicto. Mas nem o apoio da
câmara serenou os ânimos com o senhorio. O também dono do hotel Yeatman, ainda
contesta essa classificação. E aguarda-se uma decisão do tribunal.
A mesma fortuna têm os proprietários do Café Embaixador,
inaugurado em 1957. Lino Perestrelo fala em dois processos a decorrer em
tribunal: um por causa do próprio contrato de arrendamento, outro pela
classificação camarária. “Isto mexe com o nosso dia-a-dia, andamos sempre
condicionados”, lamenta. À entrada do histórico café, a poucos passos dos
Aliados, a placa do Porto de Tradição já assume lugar cimeiro. Será suficiente
para a salvação?
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