OPINIÃO
Os perigos das mordaças politicamente correctas
É pouco inteligente pensar que proibindo Mário Machado de ir
à TV se luta contra a extrema-direita. Ela existe e estou seguro que está
devidamente vigiada.
ANDRÉ LAMAS LEITE
7 de Janeiro de 2019, 15:02
https://www.publico.pt/2019/01/07/sociedade/opiniao/perigos-mordacas-politicamente-correctas-1856897
O tema está na ordem do dia e pretendo modestamente
colaborar para a sua reflexão, trazendo a minha perspectiva que, jurídica por
formação, é necessariamente política, atendendo à natureza do objecto. Devo, por
isso, para ser transparente, afirmar que ideologicamente me situo no que é apelidado
de “centro-esquerda” (a “social-democracia” no sentido originário do termo e
com as características que admiro nos países nórdicos) e que abomino as
concepções autoritárias, ditatoriais (de direita ou de esquerda), fascistas e
racistas. Amo também as liberdades fundamentais vertidas na Constituição e nos
textos internacionais que nos vinculam e não tenho receio algum de ser
“politicamente incorrecto”. Não recebo qualquer contrapartida monetária pelo
que escrevo no PÚBLICO, o que faço com o maior gosto.
Obviamente que o assunto é a análise jurídico-política da
entrevista a Mário Machado, no âmbito da rubrica Diga de sua (in)justiça, que
tem por autor Bruno Caetano e é emitida no programa da TVI Você na TV,
apresentado por Manuel Luís Goucha e Maria Cerqueira Gomes. Vou passar à
frente, mas registando-o, que está em curso uma “guerra de audiências” entre
este programa e um concorrente, na SIC, com estreia hoje, dirigido pela
ex-colega de Goucha, Cristina Ferreira. É evidente que não foi inocente o
convite a Machado e que isso se inseriu numa técnica de boosting das
audiências.
Vivemos num Estado de Direito democrático em que a liberdade
de expressão e de informação são esteios essenciais (artigos 37.º e 38.º da
CRP). É verdade também que – embora de modo discutível, mas com o que concordo
– a nossa Lei Fundamental, certamente para evitar que se repita a longa noite
do salazarismo/marcelismo, proíbe a existência de organizações de qualquer tipo
que perfilhem ideologia racista ou fascista (art. 46.º, n.º 4). Por isso, o
Tribunal Constitucional (TC) – órgão de soberania competente – não pode admitir
a constituição de partidos com esta ideologia (cf. art. 8.º da Lei Orgânica n.º
2/2003, de 22/8, que reproduz o comando constitucional: “[n]ão são consentidos
partidos políticos armados nem de tipo militar, militarizados ou paramilitares,
nem partidos racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.”). A existência do
actual PNR (Partido Nacional Renovador) só é possível porque os seus estatutos
e declaração de princípios ou programa político submetidos àquele Tribunal não
o defendem (art. 15.º, n.º 2 da referida Lei), ao menos de modo expresso, bem
como o próprio símbolo, muito próximo do facho, foi convertido numa tocha.
A decisão do TC foi inteligente e juridicamente inatacável.
Como dizemos em Direito, “o que não está nos autos, não está no mundo”, sendo
exacto que os Conselheiros do TC são gente avisada: é claro, pela actividade política
concreta do partido, que o PNR defende ideais fascistas e racistas, embora fazendo-o
de modo que não implica a prática de crimes e de jeito velado, pelo que se pode
afirmar que, ao menos formalmente, a CRP não é violada. E se se admite que o
status quo permaneça, é porque se sabe que, assim, os inimigos da democracia
estão enquadrados, manifestam as suas ideias dentro do quadro normativo
existente, esvaziando-se uma proibição radical, mas que seria pouco
inteligente. Como diz o nosso Povo, “o fruto proibido é o mais apetecido”.
Bem sei que a comparação é muito diversa, mas sendo Portugal
uma República e esta forma de governo constituindo um dos limites materiais à
revisão constitucional, não existe – e bem – o PPM (Partido Popular
Monárquico)? Uma racionalidade instrumental-estratégica (que não é a minha,
pois defendo valores, logo, uma racionalidade axiológica) justifica este tipo
de posicionamento dos órgãos do Estado, desde logo na admissão, porque não
proibida por lei, de manifestações dos movimentos de extrema-direita.
Ora, a liberdade de expressão tem, sem dúvida, limites. Se
ouvirmos o programa em causa e não nos limitarmos ao diz-que-disse, o convidado
expôs os seus pontos de vista, com algum contraditório por parte dos
apresentadores – nomeadamente a última pergunta que Goucha lhe colocou sobre a
sua orientação sexual foi bastante directa. É óbvio que Machado respondeu de
jeito politicamente correcto. É óbvio também que a circunstância reclamaria
maior contraditório, nomeadamente por especialistas de História ou Direito, p.
ex. E aí, andou mal a TVI, assim como ao apresentar-se Machado como defensor,
apenas, de “ideias polémicas”. É certo que o próprio se referiu às condenações
transitadas em julgado de que foi alvo, embora o caso de Alcindo Monteiro
devesse ter sido colocado com toda a frontalidade.
Não foi cometido qualquer dos crimes de discriminação, de
incitamento ao ódio ou à violência, bastando para tal compulsar o Código Penal.
Foram expendidas posições das quais discordo totalmente, mas que têm a
virtualidade de provocar o debate. E em democracia, tudo se pode discutir,
desde que isso não constitua a prática de delitos ou o incumprimento de normas
administrativas que regulamentam, neste caso, a televisão. Mesmo estas
consideradas, não vislumbro vulneração, mas admito que a minha especialidade é
o Direito Penal. Daí que me pareceu inusitada a comparação do ministro da
Defesa (porquê ele?) que, por rectas contas, deu um relevo a Mário Machado que
este de todo merece.
Devemos ser objectivos e frios na análise de episódios como
este. A CRP e as leis, em minha perspectiva, não foram violadas, pelo que não
antevejo qualquer condenação nesta sede.
Se acho que o tema é interessante e que devia ser levado à
televisão? O tema não me interessa minimamente e não quero nunca para o meu
país ou para outros (veja-se o que escrevi aqui no PÚBLICO sobre Bolsonaro) uma
ditadura ou regime autoritário, repito, de direita ou de esquerda.
Se devia passar na TV? Isso já se prende com critérios
editoriais que, não sendo violadas as leis, cabem na liberdade de informação,
em especial num canal privado. Se me incomoda que pessoas como Machado,
Quintino Aires e outros em que o programa em causa é pródigo tenham tempo de
antena, de tal modo que se pode dizer que a TVI, em regra, vem adoptando uma
linha de sensacionalismo nas notícias sobre crimes e de apelo a movimentos de
“lei e ordem”? Sim, incomoda. Por isso não vejo, a não ser quando surgem
episódios destes que profissionalmente me interessam. E o que é a CMTV e o
Correio da Manhã? Mais uma vez, a TVI está a enveredar pelo sensacionalismo pé-de-chinelo.
Mas isto é novidade para alguém? Não vejam, então. Se não houver audiência, por
certo programas destes desaparecem. Mas há, pelo desejo de voyeurismo e porque
o “crime está na moda” e apela aos sentimentos mais básicos dos cidadãos.
Educação e cultura, portanto. Explicação do sistema de justiça, porque funciona
assim e não de outro modo.
O que me parece pouco inteligente é pensar que proibindo
Machado de ir à TV se luta contra a extrema-direita. Ela existe e estou seguro
que os serviços competentes da República a têm devidamente vigiada. Somos –
felizmente – uma quase ilha numa Europa que deriva perigosamente para estes
movimentos nacionalistas, intolerantes, racistas, xenófobos e a História
tem-nos ensinado onde isto conduz. Mas não é varrendo o lixo para debaixo do
tapete que ele desaparece. Não. É enfrentando-o, discutindo-o. Em todo o lado,
a começar pelas escolas. É valorizar a História, criar uma disciplina obrigatória
de “Noções Gerais de Direito” em que este e outros temas sejam abordados. A
informação, a cultura, os exemplos históricos, a argumentação convincente são
os instrumentos dos democratas que rejeitam liminarmente o racismo e o
fascismo. A mordaça na boca, não. Esse é o instrumento daqueles contra cujas
ideias eu e, creio, a generalidade dos meus concidadãos, queremos lutar até ao
nosso último suspiro.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
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