Como branquear um nazi na TV(I)
Ao contrário do que muita gente pensa e defende, ser racista
não é crime. Ser nazi também não. Nem ser mentiroso. Tão-pouco dar tempo de
antena a um nazi mentiroso. Não será sequer ilegal. É só repugnante.
Fernanda Câncio
05 Janeiro 2019 — 06:16
Quinta-feira foi um grande dia para Mário Machado. Esteve em
dois programas da TVI, um de entretenimento - o de Manuel Luís Goucha - e outro
de alegada informação (SOS24), e correu-lhe muito bem. Na página de Facebook do
seu movimento, escrevia-se: "Objectivo n.º 1 - Atingido! "Chegar às
pessoas!'".
Porque, como deveria ser óbvio, o simples facto de convidar
um nazi condenado a uma infinidade de anos de prisão - em 2012, as penas
consecutivas somavam mais de 19, que resultaram num cúmulo jurídico de dez -,
na sua maioria por crimes violentos, para o sofá de um programa de
entretenimento, entre uma rubrica que ensina a fazer pastéis e outra em que se
impinge vendas aos idosos, é uma forma de o embalar como pessoa
"normal", aceitável, até "simpática". Machado sabe isso,
claro. Dá para acreditar que Goucha e a TVI não saibam?
Aliás, como ninguém convida um nazi criminoso para um
programa destes para dizer: "Caros telespectadores, aqui temos este
grandessíssimo nazi criminoso para ficarem cheios de nojo dele e de nós por o
termos trazido", Machado foi apresentado, no programa como no Facebook de
Goucha - que depois apagou o post, supõe-se que pela enxurrada de críticas (a
liberdade de expressão é muito boa, mas) -, como um mero "autor de
declarações polémicas." Transformando um criminoso que professa uma
ideologia violenta numa pessoa "controversa", que pode e deve, como
aliás defende Goucha, ser "contraditada com argumentos": "Ele
tem os dele e nós temos os nossos."
Por irresponsabilidade, soberba e ingenuidade, Goucha caiu
na armadilha de achar que poderia fazer um brilharete "desmontando"
Machado sem sequer saber quem tinha na frente.
Essa é a armadilha em que o apresentador, por
irresponsabilidade, soberba e ingenuidade, caiu: a de achar que poderia fazer
um brilharete "desmontando" Machado sem sequer saber quem tem na
frente, e portanto induzindo os seus espectadores no mesmo erro. É certo que o
convidado foi questionado sobre os seus crimes. Mas quem o fez, apresentando-se
como "repórter", limitou-se a ouvi-lo afirmar que tinha sido preso
preventivamente - e injustamente - em 1995 por suspeitas de envolvimento na
morte do português negro Alcindo Monteiro, assassinado à pancada por um grupo
de skinheads no 10 de Junho desse ano, e que fora solto em 1997 por ser
"absolvido". Deixou-o queixar-se: "É um fardo que carrego,
pesadíssimo para mim e a minha família."
Pobre Mário Machado. De facto não foi condenado por essa
morte; foi condenado em 1997, pelo Supremo - no mesmo processo em que outros
membros do grupo foram condenados pelo homicídio qualificado de Alcindo -, a
dois anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico, por fazer parte desse
gangue que foi ao centro de Lisboa com o objetivo de agredir negros e pela
autoria material de cinco dessas agressões, duas delas resultando em
traumatismos cranianos. Estaria a espancar outros negros quando os amigos
mataram Alcindo.
"Denota completa ausência de arrependimento",
escreveu o tribunal em 1997. 23 anos depois, Machado apresenta-se como vítima
da justiça e repete as mentiras de 1995: que se tratou de "um confronto
entre nacionalistas e africanos", quando se provou que foram, armados de
soqueiras, tacos e botas de ponta de aço, à caça de negros para agredir.
"Denota completa ausência de arrependimento",
lê-se no acórdão. Ausência de arrependimento evidente 23 anos depois ao
apresentar-se como vítima do "falhanço da nossa justiça" e repetir a
mentira que o grupo apresentou desde o primeiro momento: que se tratou de
"um confronto entre nacionalistas e africanos no Bairro Alto",
quando, deu-se como provado, Machado e amigos iam armados com soqueiras, tacos
e botas de ponta de aço à caça de negros para agredir, querendo "com essa
atuação, integrada nos objetivos do grupo de skins, contribuir para a expulsão
de Portugal daquele grupo racial."
Nada disso Goucha ou o seu "repórter" souberam ou
quiseram evidenciar. Como os escritos racistas e nazis muito mais recentes de
Machado, as fotos a fazer a saudação nazi, as tatuagens nazis, a informação
sobre as suas condenações, a última das quais, a sete anos e dois meses por
roubo, sequestro, coação e posse ilegal de arma, é de 2010 - esteve preso até
2017, quando saiu em condicional. É de resto tal a profusão e a gravidade das
condenações que talvez nem o próprio se lembre de todas, quanto mais Goucha.
Daí que tenha podido dar-se ao desplante de se dizer "a primeira pessoa em
Portugal a ser presa dois anos e nove meses por um texto escrito na
internet", coisa que, comentou, "no tempo de Salazar não aconteceu a
ninguém" - referindo-se à condenação, em 2016, por uma carta escrita em
2014 a partir da prisão, na qual afiançava a uma mulher, que acusava de o ter
"tramado", que se não lhe pagasse 30 mil euros iria ser morta "à
frente dos teus filhos", e "encomendava" agressões a outras
pessoas.
Após tal performance no programa de Goucha, Machado seguiu
para o inominável SOS24 , onde debitou a sua cartilha racista e odienta,
falando de "africanos", "portugueses brancos" e "da
nossa cultura" (para quem precise de um desenho: portugueses são brancos,
os não brancos não são portugueses) e afirmando que "hoje em dia o racismo
vem sobretudo dos negros contra os próprios brancos, (...) desses grupos de
marginais que espalham o terror nas nossas cidades, que perseguem os nossos
miúdos nas escolas, que violam as raparigas sempre que têm uma oportunidade,
porque o fazem movidos por ódio racial". Também aí, ninguém lhe pediu que
apresentasse provas do que disse, ninguém o contraditou com o mínimo de
eficácia.
A TVI quis dar "respeitabilidade" e
"seriedade" a um criminoso cúmplice de assassinos permitindo-lhe
intoxicar milhões com as suas mentiras. E tanto que o conseguiu que está tudo,
para variar, a falar de "liberdade de expressão". Parabéns a todos.
Não sei se Machado e a TVI violaram alguma lei; não sei se
faz sentido "resolver" isto com queixas à ERC, alimentando a sua
estratégia de vitimização. Não se trata, para mim, de o impedir de ser o nazi e
o racista repelente que é e de defender essas "ideias" - direito que
lhe reconheço, desde que sem apelar à violência (se bem que ser nazi sem apelar
à violência seja difícil); sequer de querer impedir alguém de o entrevistar.
Trata-se de tornar claro o que a TVI fez: branqueou uma carreira de duas
décadas de crime (no programa de Goucha) para a seguir dar tempo de antena, no
SOS24, ao discurso de ódio que enforma essas duas décadas de crimes. Quis dar
"respeitabilidade" e "seriedade" a um criminoso cúmplice de
assassinos permitindo-lhe intoxicar milhões com as suas mentiras. E tanto que o
conseguiu que está tudo, para variar, a falar de "liberdade de
expressão". Parabéns a todos.
Os caça-fantasmas
Helena Matos
6/1/2019
Portugal não tem fascistas que cheguem para encher uma
pequena praça ou até a Rua da Betesga mas tem cada vez mais dependentes do
fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos caça-fantasmas
A reacção à ida de Mário Machado ao programa de Manuel Luís
Goucha veio lembrar-nos o óbvio: o fim da censura prévia em Abril de 1974 não
encerrou de modo algum, em Portugal, o capítulo do controlo das ideias e das
opiniões. Entre nós, tudo é censurável desde que essa censura seja feita em
nome do anti-fascismo. Daí que, sem nos alongarmos muito, a lista de tudo
aquilo que em determinado momento foi arredado do écran em nome do combate ao
fascismo se assemelhe a uma programação de fim-de-semana: o fado foi fascista,
o Festival da Canção idem e até a decisão da RTP, em 1976, de exibir a “Aldeia
da Roupa Branca” e o “Pátio das Cantigas” motivou sérios receios de regresso ao
fascismo. Debater a Reforma Agrária era dar a mão ao fascismo. Informar
simplesmente que os retornados existiam foi durante vários meses sinónimo de
fascismo, racismo e colonialismo…
Portugal, ironia das ironias, não tem fascistas que cheguem
para encher uma pequena praça ou até a Rua da Betesga mas tem cada vez mais
dependentes do fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos caça-fantasmas.
Sem a capa do anti-fascismo revelar-se-ia o que de facto são: uns querem ser
ditadores, outros servi-los. Para uns o anti-fascismo remete-os para um passado
que os preserva de se confrontarem com aquilo em que se transformaram no
presente. Para outros, o anti-fascismo é uma táctica de exercício de poder. E
para outros, de ideais tão ou mais ditatoriais que os do fascismo propriamente
dito, o anti-fascismo é uma peça na sua estratégia de controlo sobre as
sociedades, independentemente dos votos que obtiveram e vierem a obter. Por
isso, todos os dias, várias vezes por dia, todos eles, por necessidade e
interesse, aí andam à caça de fascistas, vasculhando fascistas, inventado
fascistas, combatendo fascistas. E para o caso tanto dá que Mário Machado se
diga ou não fascista, ou saiba sequer o que foi o fascismo, que já agora,
acrescente-se, não é sinónimo de salazarismo. O espantalho do fascismo
grosseiramente confundido com salazarismo, tornou-se a saída ideológica de
emergência para um regime que depois do discurso sobre a “longa noite” e da
riqueza que havia de vir da CEE ficou sem outro projecto para Portugal que não
seja o do desenrascanço imediato frequentemente na sua versão mais grotesca.
Os mais vulgares são os antifascistas por escape ou transferência.
São aqueles que quanto mais dobram a espinha, perante o comportamento anómalo
dos chefes, candidatos a chefes, líderes que se dizem animais ferozes e outros
espécimes do poder pós-74, mais se fixam na figura de Salazar. Precisam de
Salazar e das histórias sobre a estupidez dos censores do Estado Novo para não
se confrontarem com o que agora calam. Vivem como se tivessem engolido o lápis
outrora azul mas que nos meandros do seu corpo passou a vermelho. O
anti-fascismo é neles uma necessidade algures entre a ética e a oftalmologia:
enquanto falam de Salazar, de cada vez que procuram criar empatia pronunciando
“salazarento”, evitam confrontar-se com o seu rosto no espelho e sobretudo
evitam pronunciar-se sobre o pântano, no sentido guterriano do termo, em que a
sua falta de coragem e alguma avidez transformaram o regime democrático.
Depois temos os anti-fascistas por táctica: roubam-se armas
em quartéis, a Lei de Programação Militar vai ser discutida em menos de uma
hora no parlamento e sobre o que se pronuncia o ministro da Defesa? Sobre o
programa de Manuel Luís Goucha! O ministro João Gomes Cravinho até achou por
bem no país que viveu os incêndios de 2017 – aqueles em que o governo de que
faz parte teve um desempenho miserável – comparar o convite a Mário Machado por
parte da TVI com a atitude “de quem ateia incêndios pelo prazer de ver a
labaredas”. Tocante, não foi?
É precisamente esta ausência de memória e de senso, que
quase nos faz acreditar que estamos num mundo de absurdos, uma das característica
do anti-fascismo táctico: arma-se um escândalo porque Mário Machado, defensor
de ideais não democráticos pelos quais os portugueses mostram um enorme
desinteresse, vai a um programa televisivo, mas mal se ouve uma palavra contras
decisões autoritárias do Governo que agora, por exemplo, pressiona OCDE a mudar
capítulo sobre corrupção (tão fofinhos os títulos que dizem estar Governo e
OCDE “às turras” por causa da corrupção, como se tudo não passasse de uma
birrinha infantil). Muito menos se sussurra uma ligeira perplexidade pelo facto
de o mesmo governo ter recusado os nomes seleccionados pela Comissão de
Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CRESAP) para o cargo
de Director-Geral da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, com
o argumento expresso em despacho da secretária de Estado da Administração
Pública, Fátima Fonseca, de que entre os não indicados pela CRESAP fora
identificado “um candidato com um perfil mais compatível com as orientações
estratégicas definidas”. Que interessante. E
já agora o “candidato com um perfil mais compatível” foi identificado
por quem? Pela CRESAP não, certamente, que não o seleccionou. Terá sido pela
secretária de Estado da Administração Pública, Fátima Fonseca? Em conclusão, ou
os preteridos no concurso conseguem que alguém acuse de fascismo o “candidato
com um perfil mais compatível com as orientações estratégicas definidas” ou
nada feito! Mas sejamos realistas: o que é a opacidade em torno da escolha do
futuro director-geral da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público
ao pé da selecção dos convidados para o programa de Manuel Luís Goucha?! Nada!
Nadinha. (Aliás o problema de Mário Machado não são as tolices que diz mas tão
só o facto de as suas tolices não se enquadrarem nas “orientações estratégicas definidas”.)
Por fim, mas não por último, temos os anti-fascistas por
estratégia. Gente que usa a expressão anti-fascista como um colete à prova de
perguntas. Muitos deles, a maior parte, mostra uma extraordinária simpatia
pelos autoritarismos marxistas. A sua estratégia é simples: impõem o seu poder
através da diabolização da divergência. Por isso eles não debatem, em vez disso
adjectivam e compõem um mundo pejado de fascistas, racistas, homofóbicos
(conhecendo o que esta gente disse e fez nesta matéria é caso para rir e chorar
ao mesmo tempo), machistas… Discordar deles implica ser passado automaticamente
para o paradigma do odioso do momento.
Podia pensar-se que anos e anos de democracia nos tinham
libertado do fascismo. Nada mais falso. Cada vez mais o fascismo – enquanto
espantalho – se torna indispensável. Não duvido que o número de fascistas vai
crescer exponencialmente nos próximos tempos. Não porque o senhor Mário Machado
obtenha mais votos mas sim porque, numa irrefutável prova de que Deus escreve
direito por linhas tortas, o PS terá maioria absoluta nas próximas eleições e
portanto os estalinistas, trotsquistas e maoistas de cujo apoio o PS agora
depende, vão dedicar-se a recuperar os votos perdidos. Como? Combatendo o fascismo.
O do governo, naturalmente.
PS. Em Portugal,
passam pelas televisões, rádios e jornais vários acusados, suspeitos e
condenados por crimes de violência, terrorismo, sequestro. O Sindicato dos
Jornalistas não se manifesta contra, nem aliás deveria fazê-lo. Que o faça a
propósito de Mário Machado é o viés habitual. Mas ideologia à parte sempre
podia o SJ aproveitar para tirar algo de proveitoso deste caso. Como? Mostrando
a muitos jornalistas como Manuel Luís Goucha se prepara para as entrevistas que
faz e como de facto conhece os livros de que fala. Preparação essa que falta a
inúmeros jornalistas.
A liberdade de expressão é uma coisa muito incómoda
Acho absurda a polémica muito maison, ou seja, muito redes
sociais, sobre a entrevista de Goucha a Mário Machado.
José Pacheco Pereira
5 de Janeiro de 2019, 7:17
Lá vou pela enésima vez dizer que o verdadeiro sentido da
liberdade de expressão não é para as opiniões de que gosto ou com que concordo,
é para aquelas de que discordo, que penso serem ofensivas e que me podem ser
repulsivas. É esse direito que defendo quando defendo a liberdade de expressão,
o resto é demasiado cómodo. Numa altura em que o tribalismo cresce e as pessoas
só ouvem e vêem o que gostam lá pelos lados da sua tribo, vendo-se sempre ao espelho
que nunca lhes responde como o da Rainha Má, convém lembrar este princípio
básico da liberdade e da democracia.
É por isso que acho absurda a polémica muito maison, ou
seja, muito redes sociais, sobre a entrevista de Goucha a Mário Machado,
skinhead, culpado de crimes, preso várias vezes, homem violento e com ideias de
extrema-direita, que faz parte de um movimento nacionalista radical e que acha
que Salazar faz muita falta ao país.
E depois? Convivo muito melhor com este tipo de defesa de
Salazar, declarativo, simplista, rudimentar, ignorante do que foi Salazar e o
Estado Novo, ou se calhar demasiado sabedor e saudosista do que ele fez, do que
com o branqueamento sofisticado dos nossos “brandos costumes”, com comparações
absurdas do número de mortos, que por singular coincidência não incluem nunca
os mortos da guerra colonial, ou elaborações entre o totalitarismo e o
autoritarismo que, também por singular coincidência, desculpam o autoritarismo
em nome das maldades do totalitarismo. Claro que Estaline matou muito mais
gente do que Salazar e a sua ditadura (Hitler também), mas a comparação é
falseada à cabeça, porque não tem sentido histórico nem político.
Voltemos à entrevista de Goucha a Mário Machado. Goucha não
denunciou os crimes de Machado e classificou as suas ideias brandamente de
“polémicas”, mas fez-lhe uma das perguntas mais certas que se lhe poderia fazer
confrontando-o com a sua circunstância pessoal, dele Goucha, de viver há muitos
anos com um homem com quem é casado e queria saber se isso incomodava Mário
Machado. E este respondeu-lhe surpreendentemente bem. Isto redime a entrevista
e é muito mais significativo do que o salazarismo póstumo.
Claro que as ideias de Mário Machado são “perigosas”, como
são as dos milhares de comentadores pelas redes sociais adentro que têm
saudades de Salazar e de outras coisas piores. Mas são “perigosas” porque são
suplementares ao ascenso populista que se verifica na sociedade portuguesa, em
que o nacionalismo e o saudosismo da ditadura são muito menos importantes do
que muitas outras coisas novas, recentes, modernas e que nasceram da degradação
interior da democracia, não do salazarismo morto e enterrado. Podem ter a
certeza que um “novo Salazar” se aparecer será muito mais desempoeirado nos
costumes, mais yuppie, menos beato, menos, muito menos temeroso do capitalismo,
e não terá medo da exposição televisiva, bem pelo contrário.
Acresce que as ideias podem ser “perigosas”, mas ele tem
toda a legitimidade para as defender e nós para o rebater e contrariar. No caso
da entrevista, nem sequer se colocam os crimes que a Constituição prevê, e eu
sempre considerei essa parte da Constituição, que criminaliza opiniões,
realmente afrontosa da liberdade de expressão. Mas não há qualquer matéria de
crime no que ele disse e não se pode confundir as críticas que se podem fazer à
condução da entrevista com a ilegitimidade de a fazer e de ouvir Mário Machado.
Por isso, vejo como igualmente “perigoso” o apelo à censura
do SOS Racismo e do Sindicato dos Jornalistas, assim como a vontade de usar a
ERC para policiar a liberdade de expressão. Do mesmo modo, embora as
declarações do ministro da Defesa — que não se sabe bem porquê entendeu
pronunciar-se sobre o assunto — sejam uma matéria de opinião, com o mesmo
estatuto das de Mário Machado, contêm uma análise errada do “perigo”
comunicacional.
Ele acusou de piromania a estação televisiva, dizendo que procederam
como “quem ateia incêndios pelo prazer de ver as labaredas”. Ora mil vezes mais
perigoso do que ouvir Mário Machado a dizer umas enormidades sobre Salazar é
ouvir e ver uma televisão cada vez mais tablóide de manhã à noite tratar da
sociedade, do crime, da corrupção, da “ordem” de uma forma que é uma verdadeira
incitação antidemocrática, ao colocar a dialéctica social e política como sendo
“nós”, o povo, a verdade, a voz impoluta, as vítimas, e do outro lado “eles”,
os políticos, o “sistema”, o “regime”.
E aqui, quando se escava um pouco, mesmo muito pouco,
percebe-se que não é sequer uma melhor democracia que se deseja, mas uma outra
forma de “ordem”, directa, sem mediações, taumatúrgica, assente de facto num
grupo com “coletes amarelos”, ou num homem justiceiro, impoluto, azorrague dos
corruptos, seja um juiz, seja um comentador do crime, seja um manipulador de um
qualquer reality show, seja um político salvífico que fale a linguagem punitiva
do populismo moderno. Há vários, há vários na televisão, mas nenhum é o Mário
Machado. Isso, sim, é propaganda eficaz do salazarismo.
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