Imagem de OVOODOCORVO |
A tempestade perfeita
O que há de dramático nesta crise profunda é a coincidência
entre a versão eurocéptica dominante nos dois grandes partidos britânicos.
Teresa de Sousa
17 de Janeiro de 2019, 7:03
1. Com a votação de terça-feira no Parlamento britânico, o
Reino Unido mergulhou ainda mais fundo numa crise de identidade para a qual só
dificilmente se pode imaginar um fim que lhe devolva o estatuto europeu e
internacional que ainda mantém. A pergunta recorrente é: como foi isto
possível? A resposta talvez só possa ser encontrada em torno da palavra Europa
e na rara coincidência temporal nos dois grandes partidos - Tory e Labour – de
fortes correntes eurocépticas pouco disponíveis para apresentar uma alternativa
clara a um abandono da União, cujo sentido político e estratégico se perdeu ao
longo dos últimos dois anos.
2. Depois da II Guerra, perdido o Império e confrontado com
um mundo bipolar definido pelo confronto entre duas superpotências, o Reino
Unido passou as duas décadas seguintes a tentar encontrar o seu novo lugar no
mundo, que deixara de ser na primeira fila - entre o estatuto de parceiro menor
do novo Império Americano ou ser parte integrante de uma nova Europa
democrática que iniciava o seu processo de integração.
Winston Churchill foi o primeiro a apontar esse caminho no
seu discurso do Congresso da Haia, em 1948. Com uma particularidade: os
“Estados Unidos da Europa” que defendeu seriam uma receita apenas continental.
Churchill era um homem do Império que acreditava no destino particular dos
povos anglo-saxónicos. E o seu país acabava de salvar a Europa de si própria
pela segunda vez em trinta anos. A “relação especial” com os EUA marcou as
décadas posteriores à guerra e nem a adesão tardia à então Comunidade Europeia
(só concretizada em 1973) alguma vez a pôs em causa.
Margaret Thatcher, eleita em 1979, alimentou uma cultura de
desconfiança de Bruxelas, mas nunca lhe passou pela cabeça abandonar a
Comunidade. Queria modificá-la por dentro ao gosto britânico
Quando Tony Blair, o mais europeísta dos líderes britânicos,
teve de escolher entre os dois lados do Atlântico, não hesitou, mesmo que o
tivesse feito também “em nome da Europa”. O Labour, que refundou em 1994, teve
de esperar pelo final dos anos 80 e sofrer três pesadas derrotas eleitorais
para afastar da liderança a sua facção eurocéptica: contra a Europa, mas
também, ao contrário dos conservadores, contra a aliança transatlântica.
3. Foram os tories, pela mão de Edward Heath (1965-75), que
lideraram o processo de adesão à Comunidade. Foi o seu sucessor em Downing
Street, o trabalhista Harold Wilson, quem colocou a adesão a referendo (1976)
na tentativa de resolver a crise interna do Labour em torno da questão
europeia. A adesão foi ratificada por uma ampla maioria.
Margaret Thatcher, eleita em 1979, alimentou uma cultura de
desconfiança em relação a Bruxelas, mas nunca lhe passou pela cabeça abandonar
a Comunidade. Queria modificá-la por dentro ao gosto britânico, acentuando a
sua dimensão económica e rejeitando qualquer veleidade de integração política.
As suas “brigas” com Bruxelas ficaram famosas. Mas o seu
célebre discurso de Bruges (1983) não tinha nada de antieuropeu. Foi já o seu
sucessor, John Major, quem renovou o compromisso britânico com a construção
europeia ao negociar o Tratado de Maastricht, o grande salto em frente que
pretendia ser a resposta à implosão do comunismo e ao fim da ordem de Ialta e
que incluía o euro.
Os trabalhistas continuaram por mais algum tempo manietados
por um programa radical, anticapitalista, antimilitarista, antieuropeu e
anti-NATO, defendendo o desarmamento unilateral, incluindo a capacidade nuclear
britânica. Ontem, em Westminster, Michael Gove, membro do Governo de May,
recordou impiedosamente, ponto por ponto, esta velha tradição do Labour da qual
Jeremy Corbyn é o herdeiro, ainda que devidamente adaptada às novas
circunstâncias de um partido onde prevalece uma forte corrente pró-europeia.
Só o corte radical operado por Tony Blair em 1994 abriu as
portas do poder ao “novo” partido, resolvendo a questão a favor da Europa,
quando se voltava a acentuar a clivagem entre os conservadores. “O lugar do
Reino Unido é no coração da Europa”, disse Blair
Mas só o corte radical operado por Tony Blair em 1994 abriu
finalmente as portas do poder ao “novo” partido. A questão europeia foi
resolvida a favor da Europa, precisamente quando a Europa voltava a acentuar a
clivagem entre os conservadores. “O lugar do Reino Unido é no coração da
Europa”.
Entretanto, na oposição, os conservadores iam “enterrando”
seus líderes, de eleição em eleição, remoendo a velha questão europeia sem lhe
dar um rumo no qual os britânicos pudessem confiar. Sucederam William Hague,
Ian Duncan Smith e Michael Howard.
David Cameron cortou com o passado, como Blair tinha cortado
em 1994, oferecendo uma visão mais moderna da vida e do mundo e clarificando a
questão europeia. Os conservadores regressam ao poder em 2010. A pertença à
União nunca esteve em causa. Mas a tentativa de aplacar a revolta dos eurocépticos
do seu partido, oferecendo-lhe o isco do referendo, acabou por ser a sua
“morte”.
David Cameron cortou com o passado, como Blair tinha cortado
em 1994, oferecendo uma visão mais moderna da vida, ao fazer regressar os
conservadores ao poder em 2010. Mas a tentativa de aplacar a revolta dos
eurocépticos do seu partido, oferecendo-lhe o isco do referendo, foi a sua
“morte”.
Ontem à porta de sua casa, quando se preparava para a
corrida matinal, disse aos jornalistas: “Obviamente que lamento que tivéssemos
perdido o referendo. Lamento-o profundamente. Liderei a campanha para ficarmos
na União Europeia.” Theresa May, que lhe sucedeu com a missão de negociar a
saída, acabou por incorrer no mesmo erro: ao querer aplacar a ala antieuropeia
dos tories com as suas “linhas vermelhas”, acabou enredada nelas. E não aplacou
ninguém, como se viu na terça-feira.
4. Para Jeremy Corbyn, aproxima-se a passos largos o momento
da clarificação. A pressão para que defenda um novo referendo aumenta todos os
dias. Novas eleições obrigá-lo-iam a clarificar o que faria de diferente. O que
há, pois, de dramático nesta crise profunda é a coincidência entre a versão
eurocéptica dominante nos dois grandes partidos. A condição para uma tempestade
perfeita. Como disse Anna Soubry, conservadora pró-europeia, "a politica
britânica vive na era dos extremismos".
Sem comentários:
Enviar um comentário