Os caça-fantasmas
Helena Matos
6/1/2019, 0:06
Portugal não tem fascistas que cheguem para encher uma
pequena praça ou até a Rua da Betesga mas tem cada vez mais dependentes do
fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos caça-fantasmas
A reacção à ida de Mário Machado ao programa de Manuel Luís
Goucha veio lembrar-nos o óbvio: o fim da censura prévia em Abril de 1974 não
encerrou de modo algum, em Portugal, o capítulo do controlo das ideias e das
opiniões. Entre nós, tudo é censurável desde que essa censura seja feita em
nome do anti-fascismo. Daí que, sem nos alongarmos muito, a lista de tudo
aquilo que em determinado momento foi arredado do écran em nome do combate ao
fascismo se assemelhe a uma programação de fim-de-semana: o fado foi fascista,
o Festival da Canção idem e até a decisão da RTP, em 1976, de exibir a “Aldeia
da Roupa Branca” e o “Pátio das Cantigas” motivou sérios receios de regresso ao
fascismo. Debater a Reforma Agrária era dar a mão ao fascismo. Informar
simplesmente que os retornados existiam foi durante vários meses sinónimo de
fascismo, racismo e colonialismo…
Portugal, ironia das ironias, não tem fascistas que cheguem
para encher uma pequena praça ou até a Rua da Betesga mas tem cada vez mais
dependentes do fascismo. São eles os caça-fascistas, a versão lusa dos
caça-fantasmas. Sem a capa do anti-fascismo revelar-se-ia o que de facto são:
uns querem ser ditadores, outros servi-los. Para uns o anti-fascismo remete-os
para um passado que os preserva de se confrontarem com aquilo em que se
transformaram no presente. Para outros, o anti-fascismo é uma táctica de
exercício de poder. E para outros, de ideais tão ou mais ditatoriais que os do
fascismo propriamente dito, o anti-fascismo é uma peça na sua estratégia de
controlo sobre as sociedades, independentemente dos votos que obtiveram e
vierem a obter. Por isso, todos os dias, várias vezes por dia, todos eles, por
necessidade e interesse, aí andam à caça de fascistas, vasculhando fascistas,
inventado fascistas, combatendo fascistas. E para o caso tanto dá que Mário Machado
se diga ou não fascista, ou saiba sequer o que foi o fascismo, que já agora,
acrescente-se, não é sinónimo de salazarismo. O espantalho do fascismo
grosseiramente confundido com salazarismo, tornou-se a saída ideológica de
emergência para um regime que depois do discurso sobre a “longa noite” e da
riqueza que havia de vir da CEE ficou sem outro projecto para Portugal que não
seja o do desenrascanço imediato frequentemente na sua versão mais grotesca.
Os mais vulgares são os antifascistas por escape ou
transferência. São aqueles que quanto mais dobram a espinha, perante o
comportamento anómalo dos chefes, candidatos a chefes, líderes que se dizem
animais ferozes e outros espécimes do poder pós-74, mais se fixam na figura de
Salazar. Precisam de Salazar e das histórias sobre a estupidez dos censores do
Estado Novo para não se confrontarem com o que agora calam. Vivem como se
tivessem engolido o lápis outrora azul mas que nos meandros do seu corpo passou
a vermelho. O anti-fascismo é neles uma necessidade algures entre a ética e a
oftalmologia: enquanto falam de Salazar, de cada vez que procuram criar empatia
pronunciando “salazarento”, evitam confrontar-se com o seu rosto no espelho e
sobretudo evitam pronunciar-se sobre o pântano, no sentido guterriano do termo,
em que a sua falta de coragem e alguma avidez transformaram o regime
democrático.
Depois temos os anti-fascistas por táctica: roubam-se armas
em quartéis, a Lei de Programação Militar vai ser discutida em menos de uma
hora no parlamento e sobre o que se pronuncia o ministro da Defesa? Sobre o
programa de Manuel Luís Goucha! O ministro João Gomes Cravinho até achou por
bem no país que viveu os incêndios de 2016 – aqueles em que o governo de que
faz parte teve um desempenho miserável – comparar o convite a Mário Machado por
parte da TVI com a atitude “de quem ateia incêndios pelo prazer de ver a
labaredas”. Tocante, não foi?
É precisamente esta ausência de memória e de senso, que
quase nos faz acreditar que estamos num mundo de absurdos, uma das característica
do anti-fascismo táctico: arma-se um escândalo porque Mário Machado, defensor
de ideais não democráticos pelos quais os portugueses mostram um enorme
desinteresse, vai a um programa televisivo, mas mal se ouve uma palavra contras
decisões autoritárias do Governo que agora, por exemplo, pressiona OCDE a mudar
capítulo sobre corrupção (tão fofinhos os títulos que dizem estar Governo e
OCDE “às turras” por causa da corrupção, como se tudo não passasse de uma
birrinha infantil). Muito menos se sussurra uma ligeira perplexidade pelo facto
de o mesmo governo ter recusado os nomes seleccionados pela Comissão de
Recrutamento e Selecção para a Administração Pública (CRESAP) para o cargo
de Director-Geral da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, com
o argumento expresso em despacho da secretária de Estado da Administração
Pública, Fátima Fonseca, de que entre os não indicados pela CRESAP fora
identificado “um candidato com um perfil mais compatível com as orientações
estratégicas definidas”. Que interessante. E
já agora o “candidato com um perfil mais compatível” foi identificado
por quem? Pela CRESAP não, certamente, que não o seleccionou. Terá sido pela
secretária de Estado da Administração Pública, Fátima Fonseca? Em conclusão, ou
os preteridos no concurso conseguem que alguém acuse de fascismo o “candidato
com um perfil mais compatível com as orientações estratégicas definidas” ou
nada feito! Mas sejamos realistas: o que é a opacidade em torno da escolha do
futuro director-geral da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público
ao pé da selecção dos convidados para o programa de Manuel Luís Goucha?! Nada!
Nadinha. (Aliás o problema de Mário Machado não são as tolices que diz mas tão
só o facto de as suas tolices não se enquadrarem nas “orientações estratégicas definidas”.)
Por fim, mas não por último, temos os anti-fascistas por
estratégia. Gente que usa a expressão anti-fascista como um colete à prova de
perguntas. Muitos deles, a maior parte, mostra uma extraordinária simpatia
pelos autoritarismos marxistas. A sua estratégia é simples: impõem o seu poder
através da diabolização da divergência. Por isso eles não debatem, em vez disso
adjectivam e compõem um mundo pejado de fascistas, racistas, homofóbicos
(conhecendo o que esta gente disse e fez nesta matéria é caso para rir e chorar
ao mesmo tempo), machistas… Discordar deles implica ser passado automaticamente
para o paradigma do odioso do momento.
Podia pensar-se que anos e anos de democracia nos tinham
libertado do fascismo. Nada mais falso. Cada vez mais o fascismo – enquanto
espantalho – se torna indispensável. Não duvido que o número de fascistas vai
crescer exponencialmente nos próximos tempos. Não porque o senhor Mário Machado
obtenha mais votos mas sim porque, numa irrefutável prova de que Deus escreve
direito por linhas tortas, o PS terá maioria absoluta nas próximas eleições e
portanto os estalinistas, trotsquistas e maoistas de cujo apoio o PS agora
depende, vão dedicar-se a recuperar os votos perdidos. Como? Combatendo o
fascismo. O do governo, naturalmente.
PS. Em Portugal,
passam pelas televisões, rádios e jornais vários acusados, suspeitos e
condenados por crimes de violência, terrorismo, sequestro. O Sindicato dos
Jornalistas não se manifesta contra, nem aliás deveria fazê-lo. Que o faça a
propósito de Mário Machado é o viés habitual. Mas ideologia à parte sempre
podia o SJ aproveitar para tirar algo de proveitoso deste caso. Como? Mostrando
a muitos jornalistas como Manuel Luís Goucha se prepara para as entrevistas que
faz e como de facto conhece os livros de que fala. Preparação essa que falta a
inúmeros jornalistas.
Liberdade de expressão com chancela criminal
As bestas do extremismo andam por aí e será trágico
fechar-lhes os olhos; mas trazê-los para a primeira ordem de prioridades e
dar-lhes a representatividade que não têm pode não ser tragédia menor.
6 de Janeiro de 2019, 6:20
O problema principal da entrevista de Mário Machado à TVI é
o próprio Mário Machado e o que Mário Machado pensa, o que acredita ou o que
propõe é apenas um arrazoado de ideias daninhas que cabem nos limites da
estupidez humana. É por isso que o que merece ser discutido em primeiro lugar
nessa entrevista é o facto de alguém se ter lembrado de um homem com aquele
passado criminal para dizer o que quer que seja às pessoas deste país. Se a
liberdade de expressão existe para podermos ouvir o que nos incomoda ou ofende,
como muito bem lembrou José Pacheco Pereira na edição de ontem, a liberdade de
escolha de uma televisão existe para separar opiniões qualificadas de
bestialidades, para destrinçar as virtudes republicanas dos comportamentos
criminosos, para distinguir pessoas de bem de arruaceiros. Se a comunicação
social tem protecção constitucional é para alguma coisa.
Ao ceder os seus ecrãs a Mário Machado, a TVI ultrapassou o
risco vermelho que nos mostra o limite da tolerância em relação ao pluralismo e
à liberdade de opiniões. Mário Machado tem direito à saudade do salazarismo e,
desde que se abstenha de fazer a apologia da violência ou da violação da lei,
pode defender a sua sinistra opinião. Mas uma televisão que professa a
responsabilidade de informar e os princípios que dão forma a uma sociedade
aberta e democrática não lhe deve dar palco a pretexto da liberdade de
expressão para que possa amplificar o seu reles exemplo. E muito menos sem ter
o cuidado de expor com toda a crueza o género de pessoa que é, o tipo de crimes
que o levou à cadeia e o género de ideário extremista que propõe.
O que terá levado um profissional respeitado de uma estação
cuja área editorial é liderada por um dos melhores jornalistas do país a
cometer esta barbaridade é todo um outro programa. A verdade é que, face à
inexistência de um perigo extremista imediato em Portugal, alguns jornalistas e
políticos parecem empenhar-se para que apareça. A cobertura do dito movimento
dos coletes amarelos, os avisos solenes e repetidos do Presidente sobre um
populismo radical que permanece ainda em estado larvar, a chamada para Mário
Machado reiterar os seus ideais fascizantes, tudo parece indiciar a construção
de uma profecia destinada a cumprir-se por si própria. Sim, as bestas do
extremismo andam por aí e será trágico fechar-lhes os olhos; mas trazê-los para
a primeira ordem de prioridades e dar-lhes a representatividade que não têm
pode não ser tragédia menor.
Sem comentários:
Enviar um comentário