sábado, 5 de janeiro de 2019

José Gil: "O passado está a ser engavetado, digitalizado e virtualizado"



José Gil: "O passado está a ser engavetado, digitalizado e virtualizado"

Populismo, ameaça de fascismo, perigo de extinção ou catástrofes ecológicas. Tudo o que estamos a viver ou aquilo a que estamos a assistir por todo o planeta é novo e não tem paralelo. Por isso, José Gil evita prever o futuro próximo da humanidade e justifica-o por não existir um paradigma com que se possa comparar o novo estágio das sociedades com o que foi até agora a história. «O imobilismo é apodrecimento», diz o filósofo português. Mas levanta a questão: «Que é que os professores vão ensinar?»

João Céu e Silva
04 Janeiro 2019 — 23:59

Afirmou recentemente que «tudo o que resulta das velhas verdades falhou». Está pessimista?
O que pretendia dizer é que há um discurso de valores e uma certa moral de um humanismo cristão e laico que propõe sempre um arsenal tradicional de categorias de direitos, de cidadania, de tolerância e de justiça. Ora, deve-se entender isso como um falhanço porque, em primeiro lugar, não se efetivaram. Realmente, não chegou o facto de se tornarem universais para que a realidade e a história conflitual se alterassem, além de que não fomos capazes de nos transformar suficientemente de modo a que a nossa sociedade se modificasse. Em segundo lugar, possivelmente, há um falhanço teórico, mas esse levar-nos-ia a muitos pensadores que fizeram crítica desses valores ainda antes de Nietzsche.

Não é estanho estarmos perante o momento mais «inteligente» da humanidade e não sermos capazes de pensar a nossa realidade de outra forma?
É o ser mais inteligente, sem dúvida, mas estamos aqui numa hierarquia de graus de inteligência e isso teria de ser mais bem examinado. Um peixe é mais inteligente do que nós no contexto natural. O que é um ser mais inteligente?

O que tem mais tecnologia e uma memória cultural do passado.
A nossa inteligência manifesta-se na técnica e na ciência e na articulação tecnológica entre as duas. No entanto, é também uma das razões que se podem apontar entre as maiores calamidades que aconteceram ao homem. Há teorias de filósofos que dizem que a técnica foi uma das causas maiores do mal humano e podemos ver, mesmo de forma superficial, que é muito real. Não esquecer que a técnica está também por detrás do Holocausto e dos campos de concentração alemães. Até o que fez Hiroxima e Nagasaki. Vivemos uma utilização sem limites da técnica e é esse uso, mesmo que a causa não esteja nela, que levou ao expoente máximo da exploração capitalista da nossa Terra e que poderá levar à nossa extinção. Basta isto para responder à pergunta. Aliás, não quero entrar no mito genésico que diz que é por querermos conhecer tudo que vem o mal, no entanto estamos num questionamento permanente sobre qualquer enigma. A técnica é neutra, mas tanto pode ser utilizada para o bem como para o mal. Outros dizem que não é neutra porque leva a uma análise cada vez mais profunda do que deveria ficar escondido e nesse sentido talvez a própria técnica não tenha limites mas uma vocação intrínseca de não parar.

Nos últimos meses, a palavra extinção tem estado muito presente. O homem não vai conseguir evitá-la?
Seria ingenuamente otimista da minha parte dizer que não é possível, mas tudo nos leva a crer que estamos cada vez mais perto de um perigo iminente. Tudo o diz, como é o caso dos relatórios científicos. Ou quando se leem os jornais e observa-se a destruição do permafrost, os degelos da Antártida num avanço extraordinário, os desequilíbrios ecológicos que levam a desequilíbrios funcionais da espécie humana - e não se vê um plano possível de sobrevivência. Porque implicaria a solução de muitos problemas que são políticos e que estão por resolver há muito. Basta ver como os tratados das cimeiras para o clima estão a ser violados cada vez mais. Quanto à presença frequente da palavra extinção em 2018, a minha vontade é de dizer que em 2019 será ainda mais. O que não quer dizer que também não pense: e se acontecesse qualquer coisa que travasse isto? Se houvesse uma catástrofe ecológica que, sem provocar a extinção, exigisse mais consciência ecológica mundial sobre o que não está feito.

Uma espécie de minidilúvio esclarecedor?
Estou a fazer especulação ao dizer isto, mas, segundo a probabilidade científica - que pode ser contrariada por um outro comportamento -, hoje caminhamos para um desastre final.

Thomas Piketty propôs há dias uma nova Europa capaz de lidar com crises de forma imediata. Mais uma utopia?
Parece-me que sim, não o vou afirmar dogmática ou definitivamente, tal como múltiplas outras que vão surgindo. Do que precisamos agora é de medidas que sejam eficazes e concretizadas imediatamente. Temos muitas propostas para acabar com o aumento de mais de um grau e meio no clima global, porque não são cumpridas? É contra isso que temos de ir. Estamos um pouco fartos de propostas de gabinete, sempre belas, pois os tempos são outros e vivemos numa urgência de evitar uma morte iminente. E não estou a dramatizar, porque é mesmo a nossa realidade.

Em 2017 tivemos fogos trágicos no país, mas houve a decisão política de não se repetirem em 2018 e quase não aconteceram. É uma questão de os políticos não estarem à altura das responsabilidades sociais?
Claro, as causas dessa negligência portuguesa são múltiplas e têm de ser bem analisadas. Vêm de muito longe - isto não é para dizer que este governo não poderia ter feito alguma coisa - e resultam da longa inércia fruto de muitas governações anteriores. Além de não dizer só respeito às elites, mas também à ausência de responsabilidades cívicas dos proprietários.

Sabe-se cada vez menos o que é a família, educar filhos o que é a beleza sem botox ou fazer amor sem ler revistas

Os movimentos sociais como o dos coletes amarelos, bem como o que acontece na Catalunha ou com o partido Vox, é um aviso aos políticos de que as estruturas políticas atuais podem deixar de ter utilidade?
Não se pode responder de forma definitiva, mas há muita probabilidade de que esta onda de um pré-populismo, até mesmo de um protofascismo de extrema-direita, irá continuar e que alastrará não só por toda a Europa mas para outros continentes - onde já existem viveiros para isso. Esta situação requer uma análise muito particular porque não podemos misturar tudo: o Vox não é da mesma natureza que os coletes amarelos, por exemplo. Estamos perante uma ameaça, a da eclosão e do alastramento do populismo, que numa segunda fase permitirá formações de poder violentamente autocráticas, a que poderemos chamar fascistas - mesmo que haja quem diga que o fascismo só foi no tempo do Mussolini, o que é completamente restritivo e errado.

O que aconteceu em França é um aviso?
Sim, até porque viu-se também que os próprios manifestantes não sabem o que os leva a protestar. Ouvimos o discurso de corresponsáveis aqui e ali, porque não existe uma única cabeça, e vemos que se desenvolve em vários planos de reivindicações corporativas, laborais, salariais, de direitos civis, etc. No entanto, é um movimento que não encontrou ainda a dimensão política nem, a um terceiro nível, aquilo a que poderíamos chamar um nível existencial. Este nível não laboral e não político é importante porque é o que os liga todos e lhes dá um sentido mesmo que obscuro, e é importante também porque é por aí que a extrema-direita e o seu populismo vai enxertar dimensões como a identitária, que estará em perigo. Esse terceiro nível existencial é extremamente importante porque nos vai fazer compreender como é que em Portugal pode nascer qualquer coisa como um populismo mesmo quando o país parece imune a esses movimentos.

A nossa identidade ainda não está firmada?
Diz-se que não, mas não estou certo e até há quem diga que Portugal sofre de uma superidentidade, que tem identidade a mais, portanto não creio que haja problemas de identidade. Temos sim de autoestima, como se diz agora, de gostarmos ou não de nós próprios. Saber se temos valor, se mais ou menos do que os outros, ou do fechamento sobre nós próprios. Sabermos quem somos e do que gostamos. No entanto, existe uma força portuguesa que nos dá uma coesão que, possivelmente, é particular, e a maioria dos outros países modernos europeus não tem.

Mas não descarta o aparecimento do populismo em Portugal?
Voltemos aos coletes amarelos. Não sabem exprimir essa crise existencial que se vive em França, têm umas intuições do segundo nível político e do primeiro laboral, daí dizerem que o discurso do presidente Macron é voltado para o passado e eles querem o futuro. O que é o futuro da França? Ora, o que se vê cada vez mais numa sociedade desenvolvida como a França - não em Portugal - é que as pessoas sabem cada vez menos o que é viver em família, como educar os filhos, o que é um padrão de beleza sem botox ou o que é fazer amor sem ler revistas de bons conselhos. É uma estupidez generalizada, pois estamos cada vez menos a reconhecer-nos em nós próprios e isso tem que ver com o nível existencial que está por detrás, daí dizer que é obscuro quando se ouvem os coletes amarelos nas suas declarações na televisão. É o desconhecimento desse futuro que vai ser aproveitado pelos populismos.

Até que ponto estaremos imunes?
A resposta generalizada será que sim, mas não se sabe exatamente apesar de os extremos do xadrez político estarem ocupados pelo Bloco de Esquerda, pelo PCP, pelo CDS, pelos sindicatos, ou seja, as reivindicações estão todas cobertas pelas estruturas institucionalizadas. Ora, o populismo nasce e floresce fora das instituições e contra elas, portanto terão de ser reivindicações que saem fora do discurso habitual dos sindicatos, dos partidos e do governo, para que qualquer coisa nasça, até porque se caracterizam por serem fenómenos que aparecem sem que saibamos como. O populismo atual vem rapidamente de uma cada vez maior sensibilização das classes médias baixas e não instruídas devido ao aumento do escrutínio dos media sobre as desigualdades ou a corrupção. Há um sentimento de injustiça que atravessa a sociedade e que faz que os políticos sejam cada vez menos reconhecidos e representativos, podendo observar-se uma onda latente de populismo possível na abstenção que é cada vez maior. Também pode acontecer, por exemplo, a propósito de uma exigência que não tem expressão política.

Pode dar um exemplo?
É fácil, basta pensar numa que seja intolerável no novo espaço público, o das redes sociais, como é o caso das mortes que estão a acontecer no país porque não houve cirurgias. Ou mortes psíquicas, que cada vez mais acontecem no corpo docente do ensino primário e secundário, em que os professores têm uma vida cada vez mais difícil. É intolerável que um português em cinco tenha perturbações psíquicas. Que povo é este? Suponhamos que tudo o que está nesse fundo da abstenção política emerge e ultrapassa os partidos políticos que não tiveram capacidade de fazer de certas situações uma reivindicação política que poderá provocar um movimento social do tipo coletes amarelos. Foi isso que aconteceu lá e poderá surgir aqui.

Será que a política de afetos do Presidente Marcelo é capaz de esvaziar qualquer aproveitamento desses?
Não consegue. Claro que vem entravar movimentos que podiam ser populistas mas não os esgota. Até porque o afeto do Presidente Marcelo não tem expressão política. Ele vem insuflar numa série de iniciativas políticas aquilo que falta na política em geral. Por exemplo, o que o primeiro-ministro e o governo foram incapazes de transmitir nos fogos, a empatia com as populações. Colmatou um desequilíbrio que poderia manifestar-se politicamente. Contudo, como o Presidente não tem expressão política clara e definida, pode haver uma série de movimentos que explorem situações desumanas que, de repente, tornam-se intoleráveis devido a uma extrema injustiça. Pode ser um caso único, como o de um doente que morre. Sabemos que isso existe, não é um mas milhares, porque não se verificam respostas adequadas nos serviços públicos.

Esse caso único aconteceu na Tunísia quando Bouazizi se imolou e foi o rastilho da Primavera Árabe.
E nós estamos, devido à globalização das tecnologias de informação e de comunicação, cada vez mais sujeitos a rastilhos que podem vir das Filipinas ou do Chile, coisa que seria impensável há 30 anos.

As novas tecnologias tornam possível o espaço público diferente, propício para dar expressão a injustiças

A falência económica da comunicação social e a forte emergência das redes sociais é uma combinação fatal?
Não é uma combinação, haverá um efeito que resulta de causas comuns, mas os efeitos são divergentes. Há um facto muito simples, é que até agora em países muitos pequenos e específicos, como o nosso, o espaço público era dominado pelos media e pela televisão, mas as novas tecnologias tornaram possível a criação de um outro espaço público muito particular, diferente e que se torna o terreno propício para dar expressão a uma injustiça: «Eu, cidadão anónimo, desprezado pelo sistema e pela injustiça das políticas, posso manifestar-me aqui.» Mesmo que isto signifique que o ignaro mais incongruente possa manifestar a ignorância com agressividade nesse espaço público. E este é um fenómeno novo para as elites.

Já se sentiu enganado pelas fake news?
Ou dizemos que as fake news existiram sempre porque a mentira e a máscara sempre aconteceram, ou dizemos que as fake news são uma coisa nova e um outro tipo de mentira. Se é para dizer que notícias supostamente verdadeiras se revelaram falsas, tal aconteceu a toda a gente. O que é uma fake new? É uma notícia que é produzida sem que haja critérios de verificabilidade da sua realidade porque eles foram abolidos. Mesmo que os haja, esses critérios deixaram de ter validade devido ao meio de fabricação das fake news, que provém de um meio populista onde não se pode analisar a falsidade sem se contextualizar numa relação de poder. Pode ter-se todas as provas que se quiser para demonstrar que é falso, mas o que Trump faz todos os dias, e sabe-se que não é verdade o que diz, vai ser absorvido pelo seu público sem os critérios de verificabilidade. É a potência carismática e a adesão ao líder que conta nas fake news.

Estamos perante uma ameaça, a do alastramento do populismo e de formações de poder autocráticas

Como vê o eclipse parcial da religião, dos questionamentos constantes sobre o papel do Papa e do escrutínio severo sobre a Igreja?
Parece-me que a religião católica até pode ser uma vítima, mas certamente todos os escândalos de pedofilia e de finança do Vaticano se ligam muito facilmente ao descrédito que se tem pelos políticos e à muita indiferença pela política. O descrédito pela instituição Igreja poderá levar a que o crente abandone a prática mesmo que não deixe de crer, mas não o faz passar da religião para o ateísmo.
Ouvimos falar muito do choque de civilizações e de religiões. São conceitos que têm desaparecido do debate atual. Porquê?
Essas teorias são formas de querer encarar ou dar inteligibilidade a fenómenos como o islamismo ou o fundamentalismo, depois verificou-se que não era bem assim. Hoje, pouca gente admite que haja um choque de civilizações, nem é isso que conta ou interessa, o que importa é que as civilizações estão a erodir-se cada vez mais.

O mesmo não se passa com o diálogo inter-religioso?
Porque também não é isso que está por detrás do fenómeno, não é um deus contra outro deus, antes situações com mais importância.

O passado mostrado pela arte e pela cultura tem vindo a ser suplantado pela preocupação com a situação financeira e económica. Os pilares da educação mudaram?
Não é só a questão económica, o que se passa é, repito, uma erosão de tudo o que é a tradição. O passado está a ser engavetado, digitalizado e virtualizado, e cada vez menos lhe atribuímos uma realidade com peso. O passado é cada vez mais uma imagem que se transforma numa coleção de imagens enquanto objetos de consumo, apesar de não informarem nem sedimentarem a nossa pessoa e cada vez menos os comportamentos sociais. Um aluno sabe cada vez menos sobre o passado, nem lhe interessa saber, e isso é terrível, pois há uma erosão que vem da transformação do valor da realidade do passado e da transmissão pela tecnologia que traduz tudo em imagem. Tudo isso é metabolizado e instrumentalizado pelo capitalismo, que só conta cada vez mais com o que gera uma mais-valia.

É um tempo em que Botticelli vale tanto como Madonna?
Acaba-se a nossa relação com o passado e a maneira de «fruir» e «consumir» a própria arte. A introdução maciça no mercado da arte do valor de troca como parte do juízo estético é recente e transformou completamente a valoração do objeto de arte.

Como é que se confronta pessoalmente com esta mudança de paradigmas?
Não acho que haja mudança de paradigma, porque tal não existe para o nosso presente. Estamos a mudar de paradigma sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar. Isto em tudo, como é o caso da educação para a cidadania. Havia antes uma educação para a transmissão e acumulação na área das humanidades, agora é o da cidadania. O que é que os professores vão ensinar? E como vão formar turmas tumultuosas. Isto é uma coisa ridícula, porque quando não se dão meios nem se preparam os professores para a cidadania não há formação possível: ou seja, não há paradigma, tanto mais que a questão da cidadania leva a ponderar questões totais na sociedade.

Gosta de uma frase de Kafka que dizia «desgraçado daquele que perdeu o poder de se transformar»...
...Sim, mas há transformações e transformações. Não estou a criticar todo o tipo de mudança nem a elogiar o imobilismo, pelo contrário, a capacidade de transformação de uma pessoa é a condição necessária e imprescindível para que possamos interrogar sempre e ir mais à frente na inovação e na descoberta, que é a nossa única possibilidade na vida. O imobilismo é apodrecimento.

Tinha 35 anos no 25 de Abril de 1974. Nessa época alguma vez imaginou como seria a sua vida?
É difícil responder porque não tenho projetos de vida. Nunca pensei vou viver de certo modo e em tal país; fui para um país, vi uma série de coisas e desenvencilhei-me como pude. Quanto a 1974, não tinha ideia do que ia viver, principalmente era uma situação nova, a da liberdade em Portugal, que desconhecia de todo.

Já escreveu que «qualquer coisa vem do caos». É o momento em que estamos a viver?
Pergunto: quantas vezes a palavra caos é empregada por dia nos jornais de todo o mundo? Não sei a resposta, mas será empregada milhares de vezes por dia. Seria muito importante aproximar-nos do caos com umas lentes que permitissem ver melhor o que é isso.

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