(...) "Apesar de o entrevistado ter sido condenado e
cumprido pena de prisão por crimes de sequestro, detenção de arma proibida e
violência racial que culminou com homicídio, refere a ERC, é sabido que,
"cumprida a pena, extinguem-se todos os seus efeitos", sendo que de
acordo com a lei "nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de
quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".
Apesar desta conclusão o debate sobre os 'limites' da
Liberdade de Expressão continua ... OVOODOCORVO tem vindo a publicar vários
textos de Opinião que ilustram diversas perspectivas incluindo José Pacheco
Pereira, Helena Matos, José Miguel Tavares, Fernanda Câncio, André Lamas Leite
... Hoje em baixo, o texto de António Guerreiro com o polémico
titulo: "A impossível liberdade de expressão"
OVOODOCORVO
ERC iliba TVI no caso da entrevista de Mário Machado
Regulador da comunicação social lembra que de acordo com a
lei "nenhuma pena [de prisão] envolve como efeito necessário a perda de
quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".
LUSA 9 de Janeiro de 2019, 21:03
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC)
considerou nesta quarta-feira que a entrevista do líder de extrema-direita
Mário Machado à TVI não indicia a prática de qualquer contra-ordenação ou de
crime de violação da Constituição.
Na sequência das participações contra a TVI, relativamente à
entrevista de Mário Machado no programa "Você na TV" emitido no
passado dia 3, a ERC considera que "em termos estritamente
constitucionais, nada impedia a entrevista sob escrutínio".
A ERC recebeu "um conjunto de textos críticos"
sobre a entrevista, os quais "dividem-se nuclearmente em dois grupos:
participações apócrifas e comunicados ou cartas que, no limite, poderiam
veicular queixas formais", começa por explicar o regulador.
"Relativamente ao primeiro grupo, e seguindo até a
legislação processual penal em vigor, são de arquivar todos os textos não
subscritos, até pelo facto deles não se retirarem indícios da prática de
qualquer contra-ordenação ou de crime", refere a deliberação, datada desta
quarta-feira.
Sobre os "eventuais escritos, que podem consubstanciar
uma queixa", a ERC entende também que "dos mesmos não se extraem
factos que indiciam a prática de qualquer contra-ordenação ou de crime por
violação" da Constituição "ou de qualquer normativo em vigor".
Apesar de o entrevistado ter sido condenado e cumprido pena
de prisão por crimes de sequestro, detenção de arma proibida e violência racial
que culminou com homicídio, refere a ERC, é sabido que, "cumprida a pena,
extinguem-se todos os seus efeitos", sendo que de acordo com a lei
"nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos
civis, profissionais ou políticos".
A ERC refere que "o que foi afirmado pelo entrevistado
traduz a sua opinião, não indiciando 'prima facie' [à primeira vista] ilícito
de incitamento ao ódio ou à violência"
A impossível liberdade de expressão
ANTÓNIO GUERREIRO
11 de Janeiro de 2019, 10:00
Uma longa e inflamada discussão pública a propósito de uma
entrevista, na TVI, a um indivíduo sinistro, praticante e defensor da violência
racista cujo nome não me apetece pronunciar, mostrou com evidência que isso da
“liberdade de expressão” é uma questão muito complicada, submersa num excesso
de discursos, e requer uma sofisticada análise crítica. Podemos resumir de
maneira simplificada a discussão identificando duas posições antagónicas: de um
lado, estão aqueles a que podemos chamar os puristas ideólogos da liberdade de
expressão, para os quais esta tem uma razão em si mesma que não admite
constrangimentos. Mas, como foi fácil perceber, esta posição é muito facilmente
posta ao serviço de uma razão táctica, formulada nos temos de uma concepção
negativa que se traduz nos seguintes termos: “se não este, então também não
aquele”. E, nesta operação retórica onde se compara muitas vezes o
incomparável, é sempre fácil subentender uma falsa imparcialidade.
Um artigo muito citado, publicado na Boston Review e depois
incluído num livro de 1994, de um famoso professor de literatura inglesa numa
universidade dos Estados Unidos e cronista do New York Times, Stanley Fish, é
um contributo valioso para discutir esta questão. Esse texto intitula-se
There’s No Such Thing as Free Speech, and it’s a Good Thing, Too (o livro onde
ele foi republicado, juntamente com muitos outros, tem o mesmo título).
“A entrada em 2019
põe-nos irreversivelmente na contagem decrescente para a terceira década do
século XXI, a década dos anos vinte”
Paulo Rangel, in PÚBLICO, 8 de Janeiro
Esta frase, da família de muitas outras que Paulo Rangel nos
tem servido com o entusiasmo imoderado do grande tribuno, dotado de uma
elevação retórica ao serviço do mais sofisticado pensamento, é de uma
profundidade que deixa o leitor suspenso, na dúvida se está à altura de
transpor o abismo que o separa do artigo que tem esse incipit. Isto é muito
mais do que análise e comentário, é muito mais do que tarefa de historiador: é
uma grandiosa profecia. O profeta anuncia a chegada de algo improvável, um
acontecimento futuro que só um vidente pode prever (“a década dos anos vinte”).
E, no mesmo tom profético, diz-nos que o nosso tempo histórico só pode ser lido
como um countdown, até ao momento da realização da sua profecia: estamos
“irreversivelmente” — diz ele, que sabe muito bem que a História é um comboio
que caminha sobre carris, sempre para a frente — “a caminho dos (loucos) anos
vinte”. A profeta, profeta e meio: daqui declaro que a profecia de Paulo Rangel
fica a meio caminho: nós já estamos é a caminho de um outro século por vir e,
até, do fim dos tempos que não será o tempo dos fins.
Stanley Fish cita a Constituição americana que proclama, na
sua Primeira Emenda, a “freedom of speech”, como um valor e um direito que
nenhuma lei pode limitar. Aparentemente, a Primeira Emenda consagra de maneira
absoluta a liberdade de speech (palavra que não pode ser traduzida por
“expressão”). Para proteger a liberdade de speech é necessário encontrar
critérios de identificação desse “discurso” protegido, sem os quais, como
escreve Fish, não pode haver nenhuma lei que o proteja uma vez que ninguém sabe
ao certo a que corresponde a própria noção de speech. Por isso, aliás, é que o
Supremo Tribunal dos Estados Unidos incluiu na esfera de protecção da Primeira
Emenda formas de expressão que não relevam da palavra, enquanto que certas
palavras (as injúrias, por exemplo) não estão protegidas. Ora, Fish defende
precisamente uma regulação, um controle do discurso contra os puristas do “free
speech”, por razões coerentes com a sua concepção pragmática da linguagem, a
ideia de que é empiricamente falso que pronunciamos frases para solicitar, como
resposta, outras frases, elidindo que há uma acção inerente a essas frases.
Quando dizemos algo a outra pessoa, há aí uma intenção instrumental, estamos a
tentar fazer alguma coisa. Deste ponto de vista de uma pragmática da linguagem,
é então possível dizer que não existe tal coisa chamada “free speech”, na
medida em que não há um discurso que não tenha como razão algo mais que a sua
própria produção (e, neste ponto, conviria acrescentar: o que se passa com a palavra
literária?). Neste sentido, a ideia de free speech é não só uma impossibilidade
conceptual (ela só seria realizável na condição de se subtrair à significação),
mas também é indesejável (“... and it’s a good thing too”).
Mas Fish, explicitando o que quis dizer nesse artigo, vai
mais longe: aqueles que proferem discursos racistas não aceitam a designação de
racistas, não acordam de manhã e dizem para si mesmos: “Hoje vou proferir um
discurso racista”. O que eles dizem é: “Hoje, vou sair e dizer a verdade.” E é
porque os racistas não se pensam a si mesmos como racistas que o discurso de
ódio ou discurso racista não é um erro corrigível. Daí que, segundo Fish, a
resposta correcta a uma visão que é capaz de reivindicar a liberdade de
expressão para praticar as suas acções criminosas não consiste em tentar
curá-la ou fazer com que os seus seguidores se sentem a ler On Liberty, de John
Stuart Mill, como parecem advogar aqueles que caem no pressuposto universalista
liberal. A única maneira de combater o discurso de ódio racista é reconhecê-lo
como o discurso do inimigo — um discurso que precisa de ser eliminado porque
ele é, em si mesmo, uma acção. Com efeito, there’s no such thing as free
speech, and it’s a good thing.
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