CGD e o palácio de Berardo (com Goucha lá dentro)
Miguel Pinheiro
30/1/2019,
Oito dias depois de ser conhecida a auditoria à Caixa,
Berardo, um dos grandes devedores do banco, mostrou um dos seus palácios a
Manuel Luís Goucha. Como sabem todos os patriotas, Portugal é assim.
1. Esta segunda-feira, Manuel Luís Goucha teve um convidado
especialíssimo no programa da manhã da TVI. Escassos oito dias depois de ser
divulgada uma versão preliminar de uma auditoria à CGD onde se relatavam, com
deprimentes detalhes, os negócios mais ruinosos para o banco do Estado, o
apresentador do “Você na TV” abraçou, elogiou e entrevistou (por esta ordem) um
dos maiores devedores da Caixa — o incontornável Joe Berardo.
À entrada de um palácio onde um dos filhos de D. João I, o
Mestre de Aviz, fez a sua “casa de campo”, Manuel Luís Goucha olhou para a
câmara e perguntou, sem vestígio de ironia: “500 anos depois, quer saber quem é
o dono disto tudo?”.
O “dono daquilo tudo” abriu a porta com um sorriso (houve
muitos sorrisos) e um cachecol Carolina Herrera à volta do pescoço. Sem
incómodo por tamanha exposição, o “comendador” Berardo, conhecido mundialmente
pelo seu desmesurado amor às artes, mostrou alguns dos seus quadros, mostrou um
contador alemão e mostrou o seu jardim ao estilo Renascimento italiano. Como
brinde para os telespectadores, que estavam transidos no sofá, filosofou —
insistindo que “nada nos pertence”, o que deve ter provocado suspiros nos
contribuintes que estavam frente à televisão — e ouviu Goucha elogiar o seu
“jeito para a comédia”.
Quase não houve referências a dinheiro, até porque não se
comentam esses assuntos em público. Por exemplo: quando o entrevistador
sussurrou que ter um palácio “obriga a muitos custos”, o entrevistado
contrapôs, desligado desses problemas menores, que “também dá muito prazer”. No
final, porém, Manuel Luís Goucha ergueu um copo de vinho e não resistiu a
brindar “a todo este pujante património”. E a Caixa Geral de Depósitos? Bem,
sobre esse “pujante património”, naturalmente, Joe Berardo não falou. Como
sabem todos os patriotas, Portugal é assim.
2. No caso do bairro da Jamaica, os factos deixaram de
interessar. De um lado, ninguém quer saber se houve excesso de uso da força: a
farda abençoa e exonera. Do outro lado, ninguém quer saber se houve agressão: a
classe social ou a cor da pele ungem e absolvem. Sendo assim, percebe-se: no
meio de tanta santidade política, de tanta justa indignação e de tanta vontade
de combate, os tristes factos só atrapalham.
Logo de início, Joana Mortágua viu no vídeo aquilo que ele
não mostrava e escreveu: “São 4 minutos de violência policial”. Na realidade,
não são. Até podemos vir a concluir que aqueles quatro minutos mostram, em
alguns momentos, uma “violência policial” excessiva, mas para já não há
qualquer dúvida de que não mostram apenas isso. Numa análise segundo a segundo
(como aquela que o Observador fez), vê-se um suspeito a resistir à detenção e
vários familiares a tentar impedir que a PSP o leve — e vê-se ainda três
pessoas a atacarem a polícia.
Já António Costa e Nuno Magalhães viram o vídeo mas na
realidade sentiam que não precisavam de o ver. No parlamento, o
primeiro-ministro foi preocupantemente taxativo: “O nosso lado é sempre o lado
das forças de segurança”. Em entrevista ao Observador, o líder parlamentar do
CDS foi absolutamente assertivo: “Não falhamos à polícia e não temos dúvida de
que lado devemos estar”. Na realidade, o vídeo da atuação da polícia no Jamaica
aconselharia, a um e a outro, prudência e recato até a investigação ao que se
passou ter terminado.
Se um habitante de um bairro da periferia de Lisboa violar a
lei, deve ser punido. Se um polícia violar a lei, deve ser punido. Se os dois
violarem a lei, um a seguir ao outro, devem ambos ser punidos. Já sei: dizer
isto, que deriva do equilíbrio e do bom senso, parece hoje em dia uma
excentricidade. São ideias antigas, a que falta a “modernidade” que excita e
comove. Mas são ideias que unem uma comunidade e a perpetuam: o Estado de
direito, a Justiça cega, a igualdade de todos perante a lei — fracos e fortes,
para o bem e para o mal. Quando perdermos isso, perdemos tudo.
3. Marcelo Rebelo de Sousa teve uma epifania. Aliás: teve
mais uma epifania. Em 2012, quando hesitava sobre uma candidatura a Belém,
confessou: “Há de haver um momento em que a Providência, que é sábia, me há de
dar o sinal”. Presume-se que terá dado. Agora, em 2019, quando dizia oscilar
entre tentar continuar em Belém ou não, chegou novamente um sinal divino.
Depois da confirmação de que as Jornadas Mundiais da Juventude serão em
Portugal, o Presidente confessou uma “grande vontade” de se recandidatar, caso
não haja “ninguém em melhores condições para receber o Papa”. Longe de mim
querer usar esta coluna para, imitando o Presidente, misturar religião com
política, mas não há outra forma de escrever isto: Deus nos ajude.
Recordando este artigo de 2009 …
OVOODOCORVO
Banca salva Berardo da falência
27.01.2009 às 20h40
Berardo conseguiu com três bancos um acordo muito favorável,
mas negociação com Santander ficou de fora.
ANABELA C. CAMPOS, NICOLAU SANTOS E ISABEL VICENTE
Joe Berardo acabou por conseguir um acordo muito favorável
na negociação do reforço das garantias do empréstimo de cerca de mil milhões de
euros que o investidor fez junto dos bancos para comprar acções do BCP, no
decurso da guerra de poder que a instituição viveu em 2007 e onde foi uma das
vozes mais activas.
De fora deste acordo ficou, porém, o Santander Totta, um dos
quatro bancos que concederam empréstimos a Berardo para comprar acções do BCP,
que hoje valem em Bolsa pouco mais de €190 milhões. Apesar de o montante ser de
dimensão pouco significativa, o Santander não concordou com os activos que
estavam a ser entregues como garantia. Por isso, as negociações acabaram por
ser fechadas apenas com a Caixa, BCP e BES, onde está o grosso dos empréstimos,
que venciam este mês, obrigando o investidor a reforçar as garantias e
colaterais. A CGD e o BCP terão emprestado cada um cerca de €400 milhões, e o
BES um montante inferior a 200 milhões.
PROLONGAR EMPRÉSTIMO
Ao que o Expresso apurou, o investidor - quarto maior
accionista do BCP, com uma participação de 6,2% - conseguiu não só prolongar o
prazo dos empréstimos como congelar o pagamento de juros por mais quatro ou
cinco anos. O objectivo é dar espaço para que os mercados de capitais melhorem
e a economia comece a recuperar.
Não terão, no entanto, ficado por aqui as vantagens
acolhidas pelo mais mediático investidor do mercado português. Berardo entregou
como garantia 75% da Colecção Berardo - um acervo de 862 obras de arte moderna
e contemporânea avaliado em €316 milhões em 2007 - mas terá conseguido que
ficasse de fora a Quinta da Bacalhôa, que produz vinho com aquela marca. E
acabou por entregar apenas como colaterais activos detidos em Portugal,
deixando de fora investimentos no exterior, nomeadamente no Canadá.
BERARDO COM RISCO SISTÉMICO
É na prática um excelente acordo, já que Berardo investiu
mil milhões em acções do BCP, que agora valem pouco mais de €190 milhões. Ou
seja, o investidor regista neste momento uma menos-valia potencial de €800
milhões. Um valor considerável, que obriga os bancos que fizeram os empréstimos
a tratar o assunto com pinças, já que não chegar a acordo com Joe Berardo
implicaria aprovisionar o montante da dívida e isso teria impacto nas contas
das instituições.
Desconhece-se que montante da dívida contraída por Berardo
terá sido paga desde que os empréstimos foram feitos, ou a nova data de
pagamento dos mesmos. Sabe-se apenas que inicialmente os empréstimos tinham
como garantia essencialmente as acções do BCP, muitas delas compradas no auge
da guerra de poder no banco, quando as cotações do título andavam à volta dos
quatro euros. Hoje valem menos de 80 cêntimos.
O Expresso não conseguiu confirmar junto de Joe Berardo a
informação sobre o reforços das garantias e a renegociação das condições do
empréstimo, uma vez que o investidor se encontrava ausente do país.
Na opinião do advogado de Joe Berardo, as condições da
renegociação são satisfatórias para todos. "A renegociação dos empréstimos
aos bancos para compra de acções estão fechadas e o resultado é satisfatório
para todas as partes envolvidas", afirmou André Luiz Gomes. O comendador,
adianta, "não fugiu às suas responsabilidades e reforçou as garantias
prestadas". Quanto aos novos colaterais dados como garantia e às condições
de pagamento, afirmou: "Não vou confirmar os activos que foram dados como
garantia, mas as negociações decorreram em bons termos". Acabou, no
entanto, por dizer que "o prazo acordado foi considerado razoável para as
partes envolvidas".
PERDAS NA ZON
A derrocada dos mercados atinge outros investimentos de
Berardo. Apesar de ter recebido acções da ZON na sequência da cisão da
operadora face à PT, Berardo comprou alguns títulos e a verdade é que face à
cotação do final de 2007 a participação de 5,6% apresentará perdas potenciais
de €95 milhões.
Entretanto, em entrevista ao "Público", o
investidor defendeu a retirada da ZON da bolsa, argumentando que o facto de a
empresa estar cotada representa uma desvalorização para os accionistas.
Mostrou-se ainda disponível para viabilizar a entrada de capital angolano na
ZON.
Apesar de ter dado como colateral para garantir as dívidas à
banca 75% da sociedade que gere a sua colecção de arte, Joe Berardo está longe
de ter deixado os bancos confortáveis.
Na verdade, o que está em causa é uma dívida que ronda os
mil milhões de euros, garantida com acções que neste momento valem cerca de 190
milhões. Por seu lado, a colecção de arte foi avaliada em 316 milhões de euros
em Abril de 2008, pela leiloeira Christie's. Ora 75% daquele valor são 237
milhões que, juntamente com o valor das acções, perfaz 427 milhões. Contudo,
perante os montantes em causa, a última coisa que os bancos envolvidos (CGD,
BCP e BES) desejavam era executar um cliente como Berardo - porque isso teria
de ser reflectido de imediato nos seus balanços, registando as respectivas
menos-valias. Como disse um banqueiro, Berardo passou a representar um risco
para o sistema financeiro.
Por isso, era imperioso evitar a sua falência.
ZON
Controla 5,6% da empresa de cabo liderada por Rodrigo Costa
e esta semana disse ao "Público" que vê com bons olhos a fusão desta
com a Sonaecom. Afirma ainda que a ZON e a Sonaecom "andam a falar há mais
de um ano"
Vinhos
Joe Berardo controla a Bacalhôa Vinhos, a Caves Aliança e
33% da Sogrape
Semapa
O empresário madeirense detém cerca de 15% da Semapa,
através da Sodim. Começou por comprar, em 2004, 8,7% da Cimpor à Seclipar,
empresa da família Queirós Pereira, accionista maioritário da Semapa e da
Sodim. Dois anos depois vende esta posição a Manuel Fino, accionista do BCP,
que no centro da luta de poder travada no banco fundado por Jardim Gonçalves se
manteve a seu lado
Sonae
Tem 2,67% na Sonae SGPS. O que o fez investir na empresa de
Belmiro de Azevedo, em Fevereiro de 2006, foi acreditar que a empresa é bem
gerida. Comprou 2,49% de uma só vez mas acabou por não se aventurar muito mais.
Em vez disso, acabou por reforçar no BCP
EMT
Na Empresa Madeirense de Tabacos, um dos primeiros negócios
de Berardo em Portugal, Hotel Savoy e Papelaria Fernandes, onde detém 20%, são
outros dos investimentos
Texto publicado na edição do Expresso de 24 de Janeiro de
2009
Se os deputados quiserem, haverá culpados na CGD
Helena Garrido
O relatório de auditoria à CGD tem de dar aos deputados
informação para identificarem os responsáveis pelo que se fez ao banco público,
e estes devem punir gestores e grandes devedores que não pagam.
A Caixa pediu ao auditor Ernst & Young apara “expurgar”
o relatório de auditoria de informação protegida pelo segredo bancário, como se
pode ler no Eco. O que significa isso? Quando o Presidente da República anuncia
que vai promulgar, sem problemas, o diploma que autoriza o acesso a dados,
cobertos por sigilo bancário, dos bancos tiverem sido apoiados pelo Estado,
parece uma contradição “expurgar” informação de uma auditoria que vai permitir
ao Parlamento identificar os responsáveis pelos negócios ruinosos em que a
Caixa se envolveu.
O “expurgo” não pode ser uma espécie de “detergente lava
mais branco” para impedir que mais uma comissão parlamentar de inquérito, a
terceira sobre a Caixa, obtenha resultados.
Esta nova comissão parlamentar de inquérito tem de voltar a ser aquilo a
que nos habituou em casos anteriores, nomeadamente com o BES. E até tem de ser
coerente com a coragem que existiu no Parlamento ao aprovar um diploma que, na
prática, nos diz que o sigilo bancário não é sacrossanto.
Os deputados, se quiserem, podem ir mais longe do que a
simples responsabilização política dos gestores. Podem actuar junto de grandes
devedores que não pagam à Caixa mas também a outros bancos – como o Novo Banco
ou mesmo ao BCP – quando é até público que o poderiam fazer. Um exemplo
escandaloso (perdoem-me a classificação) é o de Joe Berardo. Como nos conta
Miguel Pinheiro, Berardo dá-se ao luxo de mostrar, no programa de Manuel Luís
Goucha na TVI, o seu palácio. Paralelamente há três bancos, a CGD, o BES/Novo
Banco e o BCP que estão com uma perda da ordem dos 900 milhões de euros por
empréstimos concedidos a Joe Berardo que não conseguem cobrar.
A carta que Ana Gomes escreveu à Comissão Europeia sobre a
CGD, mas também sobre o Novo Banco – que nos vai continuar a exigir dinheiro –,
é uma boa fonte de inspiração de medidas que os deputados podem adoptar para
que se faça o mínimo de justiça. Estudar a possibilidade de impedir o acesso a
fundos comunitários por parte de grandes devedores que deixaram por pagar os
seus créditos é uma hipótese que merecia ser avaliada.
Além disso, os deputados podem, se quiserem, instar o
Governo a dar meios ao Ministério Público para acelerar as investigações do
caso da CGD assim como do Novo Banco, onde este ano vai ser necessário injectar
mais dinheiro. Como nos diz Luís Rosa, a maior parte dos crimes não prescreveu.
Mas, se não existirem meios, vão prescrever ou pelo menos vão permitir que os
advogados levantem dúvidas sobre prazos – e sabemos como a nossa legislação o
permite -, acabando por não se fazer justiça.
Era desejável que os deputados se esquecessem, uma vez que
fosse, da suas diferenças e interesses de curto prazo, de gestão do seu
eleitorado, e se focassem em identificar os responsáveis, doa a quem doer. E,
neste grupo, assume especial relevância o PS, que tem aqui uma oportunidade de
ouro para mostrar que não tolera, entre os seus, quem comete irregularidades.
Com a informação disponível neste momento já é possível
concluir que o período que gerou mais perdas para a CGD foi o que vai de 2005 a
2007, quando Carlos Santos Ferreira era presidente do banco e Armando Vara e
Francisco Bandeira faziam parte da sua equipa. No relatório e contas de 2016
conclui-se que 39,5% das perdas apuradas nesse ano (imparidades) vieram de
financiamentos concedidos entre 2005 e 2007.
É nesse período que se inicia o processo da Artlant com a
espanhola La Seda; é nesses anos que se financia Vale do Lobo; é nesses anos
que se concedem empréstimos que envolvem indirectamente a CGD na guerra pelo
controlo do BCP e é nesse tempo que se dá crédito para controlar a Cimpor.
Quando Carlos Santos Ferreira passa para o BCP, a administração seguinte da
CGD, liderada por Fernando Faria de Oliveira e que vai até 2010, gera
igualmente perdas significativas (23,6% dos 5,6 mil milhões de euros de perdas
apuradas em 2016), mas já estamos perante erros por omissão, por não decidir
acabar com alguns projectos.
Um dos argumentos mais utilizado é o da crise – foi a crise
a responsável dessas perdas, dizem alguns dos envolvidos. Essa foi, aliás, a
principal linha de argumentação de Armando Vara quando foi à anterior comissão
parlamentar de inquérito à CGD. Claro que há projectos que foram arrastados
pela crise, que se não fosse a crise poderiam ter tido sucesso. Mas boa parte
dos que estão na linha da frente das perdas da CGD seriam sempre um erro. E
para se perceber isso é preciso ir ao fundo do projecto, nomeadamente no caso
da Artlant, de Vale do Lobo e do financiamento para transformar homens que não
quiseram arriscar o seu dinheiro em banqueiros ou empresários.
Se os deputados quiserem, conseguem separar os projectos que
foram vítimas da crise – e, por isso, não se pode responsabilizar nem os
gestores nem os devedores – e aqueles em que o financiamento foi ditado por
outros objectivos que não os de financiar um investimento que foi devidamente
analisado e considerado rentável.
É preciso juntar todas as peças do puzzle. Agarrar nos
financiamentos que mais perdas geraram – e não chegam a meia dúzia – e
reconstruir o processo de decisão assim como as ligações a outros bancos,
nomeadamente ao Grupo Espírito Santo. Por essa via, se os deputados quiserem,
conseguem perceber quais foram as irregularidades e quem foram os responsáveis.
Não vale é a pena considerar que foram todos responsáveis porque isso não é
verdade. Na era da troika, especialmente nos anos de 2011 e 2012, pouco ou nada
se podia fazer que não fosse evitar o colapso da Caixa e dos outros bancos
assim como a implosão das empresas do Estado. É preciso recordar que o
empréstimo da troika “esqueceu-se” de contabilizar o financiamento necessário
para as empresas públicas.
Mas a CGD tem de colaborar também. A administração da Caixa
não se pode escudar no segredo bancário impedindo assim que se identifiquem os
responsáveis por aquilo que se fez no banco público. E os deputados não devem
atirar as culpas uns aos outros de tal forma que fazendo de todos responsáveis,
ninguém é responsabilizado.
Sem comentários:
Enviar um comentário