Eléctricos de Lisboa “genericamente, não cumprem sinalização
específica”, acusa engenheiro da Carris
Kátia Catulo
Texto
3 Janeiro, 2019
O relatório do acidente ocorrido, a 14 de Dezembro, atribui
culpas ao guarda-freio do eléctrico 25. Ao ler o documento, tornado público na
passada sexta-feira, percebe-se, porém, que as falhas do condutor poderão
afinal ser uma prática generalizada. “Os tripulantes, genericamente, não
cumprem a sinalização específica, circulando em alguns locais com velocidades
inadequadas”, admite um dos engenheiros da Carris, ouvido pela comissão de
inquérito ao acidente. Crítica que leva o Sindicato Nacional dos Motoristas a
acusar a empresa de ser “responsável moral” pelo sinistro, por não ter tomado
medidas preventivas. A Carris garante, todavia, que a segurança não está em
causa e que os acidentes se devem “à conjugação de várias falhas em cadeia e
não apenas devido ao incumprimento relativamente à sinalização específica.
A Carris deverá reforçar as recomendações de “cumprimento
rigoroso” da sinalização específica por parte dos guarda-freios dos eléctricos.
Em causa estão não só o desrespeito de sinalização em zonas de paragem
obrigatória como as “velocidades excessivas” de circulação, indica o relatório
ao acidente ocorrido com a linha 25, na Estrela, a 14 de Dezembro. As
conclusões da investigação, divulgadas na sexta-feira, 28 de Dezembro, são
peremptórias ao imputar responsabilidades ao condutor do veículo. Acusam-no de não
ter feito um adequado uso dos sistemas de travagem, mas também de não ter
imobilizado a carruagem num ponto onde a tal estaria obrigado. Mas, para além
da referência a este acidente – que causou 28 feridos -, o documento deixa
ainda pistas preocupantes sobre um muito provável incumprimento generalizado da
sinalização e a prática de “velocidade excessiva” pelos guarda-freios da
Carris.
Um cenário corroborado pelas três primeiras recomendações do
relatório, feitas pela Comissão de Investigação de Acidentes Graves (CIAG) da
empresa municipal, que vão no sentido de reforçar a necessidade de respeitar a
sinalização pelos condutores dos eléctricos – com implicações também no
cumprimento dos limites de velocidade, sobretudo em vias com grande declive, como
é o caso da Rua de São Domingos à Lapa, onde ocorreu o acidente com o 25. O
texto recomenda, antes de mais, a “emissão de aviso, por parte da Direcção de
Operações, relembrando a necessidade de cumprimento rigoroso, no Modo
Eléctrico, da sinalização específica, em particular no que concerne às paragens
obrigatórias de segurança”. E fala ainda no “reforço da mensagem” junto dos
guarda-freios, por parte dos inspectores em acompanhamentos de rotina, “para o
cumprimento rigoroso da sinalização”. Além disso, pede-se a realização de
inspecções de rotina para “identificar e agir, proactivamente, nos casos de
incumprimento”.
É preciso "reforçar a mensagem" de cumprimento das
regras junto dos guarda-freios, diz o relatório
Tais prescrições nascem não só da análise das circunstâncias
do acidente, mas também das considerações feitas por alguns dos técnicos da
empresa ouvidos pela comissão de investigação. De entre elas, destaca-se a de
um engenheiro da Carris – cujo nome aparece rasurado no documento, tal como o
de todos os outros inquiridos -, que esteve presente no local logo após o
acidente. O responsável diz ter a convicção que o despiste “só ocorre por
velocidade excessiva”. Mais grave, e de acordo com o relatado aos
investigadores: “Tem a opinião que os tripulantes, genericamente, não cumprem a
sinalização específica, circulando em alguns locais com velocidades
inadequadas, provocando desgastes acentuados nos pantógrafos dos veículos,
derivado das ‘pancadas’ que os mesmos sofrem”. O pantógrafo é o mecanismo
situado no topo da carroçaria do veículo que permite o contacto com a
catenária, garantindo assim a alimentação de energia eléctrica indispensável ao
seu funcionamento. Um outro funcionário da Carris, que esteve presente no local
do sinistro naquela altura, disse à CIAG que o mesmo “ficou a dever-se a
velocidade excessiva”.
As referidas recomendações nascem da análise dos factos
ocorridos no final da tarde de 14 de Dezembro, quando o eléctrico 576, que
fazia a ligação entre os Prazeres e a Praça da Figueira, na linha 25, não
conseguiu curvar à esquerda, para a Rua Garcia de Orta, no final de uma descida
descontrolada da inclinada Rua de São Domingos à Lapa. Segundo o relatório, o
veículo despistou-se e embateu num edifício, devido a uma sucessão de erros do
condutor. “O acidente é imputável ao desempenho do guarda-freio, que não actuou
devidamente o travão reostático, logo após o reinício da marcha na paragem
existente na parte mais inclinada da Rua de São Domingos à Lapa”, lê-se, antes
de se apontarem outras falhas ao funcionário. Entre elas conta-se o “ter
deixado o carro seguir sem actuação de qualquer freio durante algumas dezenas
de metros e, finalmente, por não ter efectuado a imobilização obrigatória,
imposta pela sinalização específica”.
Para além das
indicações relativas à revisão dos procedimentos de segurança, o relatório
recomenda ainda duas coisas. Uma delas passa pelo reforço da quantidade de
inspectores, “entre um a dois elementos”, para reduzir o rácio de guarda-freios
por inspector, “de forma a potenciar e a reforçar, quer a formação contínua dos
guarda-freios, quer a inspecção com maior frequência em locais classificados
como ‘perigosos’”. A última das recomendações é a referente à revisão do Manual
de Formação do Guarda-freio, “adicionando como se deve proceder na presença de
cada um dos sinais específicos e não apenas a apresentação do seu esquema
gráfico e designação”.
Confrontado por O
Corvo, na tarde desta quinta-feira (2 de Janeiro), com as recomendações e os
depoimentos inscritos no relatório, o Sindicato Nacional dos Motoristas (SNM)
emitiu um comunicado em que afirma que a Carris é “corresponsável pelo
acidente”. Referindo-se em concreto aos factos relatados pelo citado engenheiro
da empresa sobre o alegado desrespeito generalizado da sinalização pelos
guarda-freios, o sindicato acusa: “A Carris, ao não ter mandado instaurar um
inquérito sobre o eventual desrespeito pelos seus tripulantes e ao não ter
tomado medidas para reforçar aquilo que considerava ser uma deficiência,
tornou-se responsável moral pelo aludido acidente”. E faz a sua interpretação
das recomendações elaboradas pela CIAG: “O relatório conclui que a Carris
desinvestiu nos últimos anos na formação e no reforço da formação contínua e na
inspecção das vias e, por via disso, propõe o reforço do efectivo de
inspectores”.
Em declarações a O
Corvo, Manuel Oliveira, presidente da direcção do sindicato, não tem dúvidas:
“Se da parte de um técnico da Carris existe a suspeita de condutas negligentes,
o procedimento correcto é reportar essa suspeita a um nível hierárquico
superior. Como também se exigirá da empresa que se aja em conformidade, abrindo
um inquérito, apurando-se as causas e as responsabilidades”. O sindicalista
atribui boa parte das eventuais debilidades de segurança ao desinvestimento não
apenas por parte deste, como do anterior governo, bem como da Câmara Municipal
de Lisboa – dona da empresa desde 1 de Fevereiro de 2017. “O que aqui aconteceu
é que, com o desinvestimento no sector das empresas transportes
rodo-ferroviários, no geral, e na Carris em particular, houve uma
descapitalização da massa crítica e humana, que provocou uma saída de trabalhadores
com know how e consequentemente um rombo na formação continuada”, acusa.
Manuel Oliveira
afirma ainda que o caso poderá acabar nos tribunais. “Vou estar muito atento ao
processo disciplinar instaurado ao guarda-freio, porque não posso permitir que
a corda parta pelo lado mais fraco. Como também vou equacionar a hipótese de
avançar judicialmente contra a empresa. Neste momento, como não domino as
questões jurídicas, terei de ver se há matéria ou não para se avançar para uma
queixa por crime de difamação”.
Confrontada por O
Corvo com as dúvidas expostas no relatório, a empresa diz que as “recomendações
vão no sentido do que é já um procedimento na Carris”. Referindo-se ao reforço
dos números de inspectores aconselhado pela comissão de inquérito, fonte da
administração frisa que se trata de fortalecer uma componente “que é parte
fundamental do funcionamento da empresa e que monitoriza e assegura o
cumprimento das regras entre os motoristas e guarda-freios”. Rejeitando que
esteja em causa a segurança dos passageiros, a Carris salienta que “um
acidente, como o que aconteceu, deve-se à conjugação de várias falhas em cadeia
e não apenas devido ao incumprimento relativamente à sinalização específica”.
Sem comentários:
Enviar um comentário