Lapa está “descaracterizada” e nela constroem-se
empreendimentos de luxo “à toa”, criticam moradores
Sofia Cristino
Texto
9 Janeiro, 2019
As transformações urbanísticas e arquitectónicas em curso na
Lapa, na freguesia da Estrela, não agradam à maioria dos habitantes desta zona
nobre da cidade. Muitos dizem que os novos prédios são “horríveis” e consideram
“desajustados” os materiais utilizados face ao restante edificado do bairro.
Aos imóveis antigos têm sido acrescentados andares, numa zona conhecida por
casas com menos de três pisos, e abertas garagens, assim os desvirtuando. Há
mesmo palacetes onde as intervenções incluem a utilização de inox e de zinco. O
grupo cívico Fórum Cidadania Lx diz mesmo que estamos a assistir à “morte
arquitectónica de um dos bairros mais carismáticos de Lisboa” e que “o coração
da Lapa está completamente descaracterizado”. Há quem não veja, porém, nenhum
problema nas alterações. “Não vamos mimetizar uma cidade de há 200 ou 300
anos”, diz o arquitecto Paulo Serôdio, que considera mesmo que a maior parte do
bairro da Lapa não tem valor patrimonial, à excepção de alguns palacetes.
O bairro da Lapa, escondido por trás da Basílica da Estrela,
à semelhança do resto da cidade, não escapou ao olhar atento dos investidores
imobiliários e está a sofrer profundas transformações. Muitos prédios estão a
ser reabilitados, alguns para darem lugar a condomínios de luxo e a Alojamento
Local (AL), e outros foram demolidos, tal o estado de degradação em que se
encontravam há décadas. Das construções pombalinas, caracterizadoras do bairro
do século XVIII, já não existe praticamente nada. Quem lá vive apoia a
requalificação dos imóveis, mas não da forma como esta está a ser feita. “Estão
a descaracterizar tudo. Não sou contra a reabilitação dos edifícios, alguns
estavam a cair, mas têm de manter alguns aspectos da traça antiga, para não
destoar tanto. Quem está a construir aqui pensa apenas em dinheiro”, critica
Fernanda Braga, 62 anos, a viver naquela zona nobre da cidade há seis décadas.
As reclamações percebem-se assim que se entra no bairro,
onde o ruído do eléctrico 25 é abafado pelo barulho ensurdecedor das máquinas
de construção civil. A actividade de construção e de reabilitação de edifícios
é agora tão grande que se tornou comum habitantes e turistas cruzarem-se com
operários da construção civil. A passagem de um carrinho de bebé assume-se, por
isso, como uma quebra na monotonia de um bairro em recessão demográfica. “Perdi
muitos vizinhos e pessoas que conhecia de vista, nos últimos anos, e é uma
pena. Os bairros populares são feitos de pessoas e, assim, da forma como estão,
deixam de o ser. Se reabilitassem e mantivessem os moradores, apoiava a
requalificação. Mas não é o que fazem”, diz Gonçalo Lobato, 29 anos. O
residente lamenta passear com o filho recém-nascido com o som de fundo das
obras, tal como todas as transformações do bairro que escolheu para viver há
quatro anos. “Não concordo nada com o que está a acontecer, há prédios novos
que não têm nada a ver com a essência da Lapa, são construções horríveis”,
critica.
Nos últimos anos, o tecido empresarial da zona também
estagnou. Na Rua Buenos Aires, em tempos cheia de vida, só uma pastelaria salta
à vista por ser dos poucos estabelecimentos ali abertos. O espaço ganhou o
prémio de melhor pastel de natal, em 2011, mas o galardão, contudo, não trouxe
mais gente ao estabelecimento. “Esta rua era muito dinâmica, mas fechou tudo,
empresas e até pólos universitários. O bairro está a ficar deserto por causa do
aumento dos negócios imobiliários e, consequentemente, do valor das rendas.
Perdi muitos clientes. Conheço ex-moradores que também foram embora por causa
do barulho das obras e, outros, pela falta de estacionamento”, conta o funcionário
da pastelaria, Valter Marques, 39 anos.
Apesar da zona estar
a ser repovoada, os novos moradores, maioritariamente franceses, não frequentam
aquele estabelecimento. “Entram na garagem e não se vêem mais, não vêm ao café.
Houve uma fase que, quase todos os dias, imobiliárias vinham aqui entregar
cartões e panfletos das suas empresas, e agora percebo”, conta. O funcionário
da pastelaria Cristal critica ainda os projectos imobiliários aprovados para o
bairro, onde trabalha há quase duas décadas. “Construíram uns caixotes em betão
e fachadas, em folhas de alumínio, horríveis. Em Alfama, também houve mudanças,
mas foram mais suaves. Estamos saturados disto”, diz.
Pedro Cassiano Neves,
presidente da Associação de Moradores da Lapa, percorreu o bairro todo e diz
que não há um quarteirão que não esteja a ser reabilitado. “Nos últimos cinco
anos, com toda esta pressão imobiliária, tem sido um descalabro, parece que
vale tudo. Não há nenhuma rua que escape a estes projectos horrorosos, seja uma
casa nobre ou uma mais popular. Com o aumento da construção, com mais pisos, os
novos edifícios começam a ficar todos alinhados, e agrava-se o problema das
vistas, que já há em toda a cidade”, critica. Mas há quem seja ainda mais
severo nos reparos às transformações do bairro por muitos considera como de
elite.
Miguel de Sepúlveda
Velloso, membro do Fórum Cidadania Lx e ex-morador, critica os planos
arquitectónicos para aquela parte da cidade e diz mesmo que a Câmara Municipal
de Lisboa (CML) se tem demitido “totalmente” do seu papel de fiscalização, ao
licenciar projectos que descaracterizam o bairro. “A Lapa é um bairro histórico
e, aparentemente, não há nenhum plano de pormenor. Há ruas que estavam muito
bem preservadas e estão a ser invadidas por uma série de construções. Está tudo
feito ao ‘deus-dará’. Em Lisboa, infelizmente, não tem havido um critério
coerente da direcção urbanística. Não sei se existe uma violação clara do Plano
Director Municipal (PDM), mas há, de certeza, irregularidades”, acusa.
No passado dia 30 de
Dezembro, o Fórum Cidadania Lx criticou os projectos arquitectónicos em
desenvolvimento no bairro da Lapa, e acusou o gabinete do vereador do
Urbanismo, Manuel Salgado, de ser responsável pela “morte arquitectónica de um
dos bairros mais carismáticos de Lisboa”. “Assiste-se ao império do mau gosto.
Acaba-se com tudo, prédios populares a que se acrescentam andares, em que se
abrem bocas de garagem, palacetes absolutamente desvirtuados com inox e
marquises, prédios construídos de raiz, com ar de morgues, e zinco por todo o
lado”, criticam os membros do movimento cívico. A Lapa é “um bairro que deveria
ser preservado” e “todos os projectos de urbanismo deveriam ser passados no
crivo da mais-valia para o espaço”, lê-se ainda na publicação.
Paulo Ferrero, fundador do Fórum Cidadania Lx, em
declarações a O Corvo, diz que o que se passa na Lapa não é muito diferente do
que acontece um pouco por toda a cidade, mas, neste bairro, o ritmo das
construções novas aumentou em muito pouco tempo. “Há poucos anos, este bairro
era mais ou menos homogéneo. Nos últimos tempos, os prédios são vendidos e
comprados por promotores imobiliários, que os transformam radicalmente. Não há
uma relação de proporcionalidade e a harmonia arquitectónica e urbanística que
existia aqui está a desaparecer”, observa. Alguns exemplos do que não tem sido
bem feito, enumera, são “as alterações de fachadas, com aberturas de vãos para
garagens, as ampliações completamente desmedidas e as cores berrantes das
fachadas”. “Esta zona da cidade caracterizava-se por prédios relativamente
baixos, muitos deles palacetes, com um ou dois andares, e logradouros. Agora,
estão a ampliá-los”, diz.
O estado devoluto de
muitos imóveis e o “desleixo” de algumas entidades públicas com o património
arquitectónico da cidade são outras das críticas apontadas por Ferrero. “O
coração da Lapa está completamente descaracterizado. A pouca construção
pombalina que ainda existe está em ruínas e a Câmara de Lisboa não intima os
proprietários a fazerem obras. Qualquer dia, já não há nada”, lamenta. O membro
do Fórum Cidadania Lx critica ainda a forma como muitos projectos urbanísticos
têm sido aprovados. “A maior parte dos projectos novos são de arquitectos
conhecidos e são sempre os mesmos. Há prédios que não estão registados na Carta
Municipal do Património Edificado porque a câmara não quis saber. A Direcção
Geral do Património Cultural (DGPC) não se pronuncia porque o bairro não é uma
zona classificada. E a Lapa devia ter sido classificada, no seu conjunto, como
Património de Interesse Público, há muito tempo”, considera.
Alguns arquitectos
têm, porém, uma visão bem diferente. O arquitecto Paulo Serôdio, autor de
diversos projectos urbanísticos na cidade, como a reabilitação da Alameda do
Beato, acredita que os dois tipos de construção – do século XVIII e mais
contemporânea – podem conviver de uma forma harmoniosa. “A cidade é feita de
camadas e de tempos e é requalificada constantemente. Não vamos mimetizar uma
cidade de há 200 ou 300 anos, somos cidadãos do nosso tempo. As pessoas têm um
défice de formação nas áreas da arquitectura e do urbanismo, é necessário
informá-las e educá-las”, afirma. O arquitecto considera ainda que o bairro da
Lapa não tem valor patrimonial, à excepção de alguns palacetes. “A maior parte
dos edifícios de habitação do bairro da Lapa não têm valor patrimonial, era a
construção corrente da altura. Não é a Baixa nem o Chiado, não tem nada de
extraordinário”, desvaloriza.
Paulo Serôdio, que
apresenta o seu trabalho sobretudo através do ateliê Orgânica Arquitectura,
elogia ainda a dinâmica de reabilitação de prédios a que a cidade tem
assistido. “As intervenções que têm sido feitas nos edifícios, em Lisboa, são
qualificadas e justificam-se, porque são de arquitectos conceituados. Para uma
zona ser considerada património, tem de haver qualquer coisa que o justifique
que não seja só a memória ou a vontade das pessoas, senão qualquer coisa com
mais de dez anos passa a ser património porque tem esse tempo, não podemos ser
avessos à mudança”, afirma.
Miguel Judas,
ex-membro dos órgãos directivos da Ordem dos Arquitectos, comunga da mesma
opinião. “Percebo que as pessoas tentem manter um imaginário da cidade, mas não
tem muito de genuíno. A cidade nunca foi homogénea, nem nunca será. A Lapa tem
vários modelos de cidade lá dentro, e acho que podem conviver perfeitamente”,
considera. O arquitecto diz que se tem desenvolvido alguma aversão às
intervenções, no espaço público, na cidade. “Lisboa tem um registo do século
XIX, e início do século XX, de mudanças muito radicais, como a demolição da
Praça da Figueira. Na altura, eram bem vistas. Mas, hoje, olha-se para a
mudança como algo mau por natureza, parece que tudo o que se faz é um
mamarracho. Lisboa também não foi reconstruída após o terramoto como estava
antes”, afirma. Miguel Judas também critica alguns aspectos do Plano Director
Municipal. “O PDM tem restrições abusivas, mas felizmente há possibilidade de
fazer planos de pormenor e de salvaguarda. Fazer essas rectificações também se
torna moroso e, por vezes, servem mais para gerar conflitos do que para
garantir a qualidade da obra”, considera.
O arquitecto diz ainda que existe “uma espécie de
‘fachadismo’ que não faz sentido”. “Mantemos uma fachada que não tem nada a ver
e transformamos tudo o resto? Não é fácil. Não há nenhuma transformação da
cidade que seja inteiramente neutra, implica sempre algum risco, mas a dinâmica
da cidade também é feita dessa tensão”, diz. A “neutralidade das intervenções”,
ou seja, “a forma como as novas construções coabitam com as pré-existentes”,
explica ainda, é muito discutida entre os arquitectos, sendo difícil chegar-se
a consensos. “Não temos uma caracterização assim tão homogénea, há zonas em que
há conjuntos mais homogéneos e, outras, em que são tão variados, que é difícil
encontrar uma lógica de construção. É sempre um jogo arriscado isto de
transformar a cidade, mas é um risco que tem de se correr”, acrescenta.
O presidente da Junta
de Freguesia da Estrela, Luís Newton (PSD), em declarações a O Corvo, também
enaltece a renovação do bairro que administra, mas reprova a descaracterização
de alguns edifícios. “O fenómeno da requalificação tem sido muito positivo, porque
havia muitos edifícios num estado avançado de degradação, que passaram a ter
gente. Um bairro não tem de ter uma imagem do século XV até ao fim da sua vida.
Mais importante que o próprio urbanismo é o tecido humano, esse é que cria a
história dos bairros. Estilos arquitectónicos vão e vêm”, considera. Por outro
lado, o aumento da construção de novos prédios traz consequências. “Há
alterações profundas do ponto de visto da traça arquitectónica, porém, que
estão a descaracterizar algumas ruas. Assistimos a uma dupla descaracterização
do bairro: a urbanística e uma outra, daquilo que é a utilização futura do
edificado”, diz.
O autarca
social-democrata refere-se aos regimes de aluguer temporários, que, segundo
Newton, contribuem para que “o tecido residencial de longa duração vá
desaparecendo”. “Quando o Alojamento Local é contido, pode ser interessante,
mas, quando transformarmos um quarteirão inteiro do bairro numa zona meramente
de aluguer de curta duração, estamos a descaracterizar aquilo que era a identidade
do bairro. E o objectivo de inserção dos visitantes da cidade numa realidade da
população local fica logo pervertido, porque não mora lá ninguém”, avalia. O
presidente da Junta de Freguesia da Estrela sublinha que, nos últimos anos,
houve um “incremento significativo” de residentes estrangeiros, principalmente
franceses. “Houve um despovoamento, entre 2002 e 2016, gradual e consecutivo. A
partir de 2017, assistimos a uma aparente estagnação, continuamos a perder
pessoas, mas têm vindo outras”, informa.
Newton propõe, por
isso, o aumento de responsabilidades das juntas de freguesia nesta matéria.
“Infelizmente, não temos quaisquer competências, nem sequer consultivas, quando
é licenciada uma construção no bairro. As juntas de freguesia não podem emitir
qualquer tipo de parecer, no âmbito das intervenções do ponto de vista
urbanístico, e acham que deviam fazê-lo. A análise de contextualização
histórico-urbanística, importante para o avanço de uma obra, também deveria
começar nas instituições de proximidade local, porque são aquelas que têm maior
apetência para serem os grandes proponentes do desenvolvimento e da entidade
locais”, conclui.
O Corvo enviou
questões aos arquitectos Frederico Valsassina e Manuel Aires Mateus,
responsáveis por projectos arquitectónicos na Lapa, mas até ao momento da
publicação deste artigo não obteve resposta. O Corvo falou ainda com a
arquitecta Inês Lobo, com obras concluídas neste bairro, em conjunto com o
arquitecto Paulo Mendes da Rocha, mas a arquitecta recusou-se a responder às
questões colocadas por O Corvo, por considerar que estas temáticas devem ser
apenas discutidas dentro da classe profissional dos arquitectos, que garante
“reflectir muito sobre os problemas da cidade”. “A qualidade da arquitectura deve
ser discutida entre os pares”, afirma.
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