OPINIÃO
Varíola-dos-macacos: um silêncio perigoso e moralista
Se o surto está neste momento instalado numa determinada
comunidade, essa comunidade tem de estar especialmente alerta.
João Miguel
Tavares
31 de Maio de
2022, 0:35
Quando os
primeiros casos de varíola-dos-macacos surgiram em Portugal, o presidente da
Sociedade Portuguesa de Virologia deu uma entrevista ao site da CNN Portugal a
explicar o que se estava a passar – e acabou esturricado num incêndio de redes
sociais. Vítor Duque declarou que a doença se estava a transmitir “através de
contactos íntimos, neste momento entre homens”, e acrescentou: “Pode ser o
início de uma epidemia entre os homossexuais que eventualmente se pode alastrar
a toda a população.”
Note-se que logo
após essas declarações o artigo da CNN acrescentava esta frase, que cito
integralmente: “O virologista sublinha, no entanto, que o vírus pode atingir
qualquer pessoa – homem ou mulher, com qualquer orientação sexual –, mas que,
com os dados que há neste momento, tudo indica que tenha tido uma porta de
entrada naquela comunidade, e que está a desenvolver-se.” Ninguém quis saber
disso. Palavras proibidas haviam sido proferidas, e o pavlovismo woke já estava
a salivar.
Associações LGBT
revoltaram-se; partidos apelaram “contra a estigmatização das pessoas LGBTQIA”;
o secretário de Estado Lacerda Sales repetiu o velho mantra “é uma doença de
comportamentos de risco e não de grupos de risco”; o Polígrafo poligrafou
“Varíola-dos-macacos afecta especialmente homossexuais? A resposta é não”,
ainda que seja óbvio para todos que a varíola-dos-macacos está neste momento a
afectar especialmente homossexuais masculinos; e o presidente da Sociedade
Portuguesa de Virologia, coitado, foi tratado de analfabeto para baixo, quando
não de funesto homofóbico.
Em lado algum se explica esse estranhíssimo fenómeno de
uma doença que não é exclusiva de homens ter, até agora, infectado apenas homens
em Portugal
Pelo caminho, o
mundo embarcou numa das suas actividades favoritas dos últimos tempos, sempre
que estão em causa doenças, comportamentos e grupos historicamente
discriminados: enxertou à martelada o combate ao preconceito no campo da saúde
pública, borrifando-se para a ciência, para a lógica, para a sensatez e, já
agora, para um jornalismo informativo, e não de causas.
Desde que o tema
da varíola-dos-macacos surgiu, o PÚBLICO tem acompanhado o assunto de perto, e
ainda há dias noticiou que Portugal é já o país com maior número de casos por
milhão de habitantes em todo o mundo. Mas a cada notícia que surge sobre o
tema, actualiza-se o número de infectados – 96, neste momento –, informa-se que
são todos homens, acrescenta-se que “esta não é, no entanto, uma doença
exclusiva de homens”, mas em lado algum – repito: em lado algum – se explica
esse estranhíssimo fenómeno de uma doença que não é exclusiva de homens ter,
até agora, infectado apenas homens em Portugal.
Significa isso
que a doença é exclusivamente masculina? Não. Só que o surto parece ter tido
origem na comunidade gay e bissexual que frequentou um festival nas Ilhas
Canárias, uma sauna em Madrid e outros lugares de encontro gay pela Europa
fora. Donde, se o surto está neste momento instalado numa determinada
comunidade, essa comunidade tem de estar especialmente alerta – porque o risco
de infecção é realmente maior.
Esconder este
facto com medo da propagação da homofobia é um duplo absurdo. 1) É um absurdo
porque o silêncio coloca em perigo os homens que frequentam os espaços que
neste momento são mais propícios à propagação da doença. 2) É um absurdo porque
o único problema que existe com a promiscuidade sexual é de saúde pública, e
não de moral pública – e o silêncio envergonhado confunde uma com a outra. Os
gays saíram do armário para agora enfiarmos as doenças lá dentro? Não,
obrigado.
O autor é colunista do PÚBLICO
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