terça-feira, 31 de maio de 2022

Varíola-dos-macacos: um silêncio perigoso e moralista

 



OPINIÃO

Varíola-dos-macacos: um silêncio perigoso e moralista

 

Se o surto está neste momento instalado numa determinada comunidade, essa comunidade tem de estar especialmente alerta.

 

João Miguel Tavares

31 de Maio de 2022, 0:35

https://www.publico.pt/2022/05/31/opiniao/opiniao/varioladosmacacos-silencio-perigoso-moralista-2008277

 

Quando os primeiros casos de varíola-dos-macacos surgiram em Portugal, o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia deu uma entrevista ao site da CNN Portugal a explicar o que se estava a passar – e acabou esturricado num incêndio de redes sociais. Vítor Duque declarou que a doença se estava a transmitir “através de contactos íntimos, neste momento entre homens”, e acrescentou: “Pode ser o início de uma epidemia entre os homossexuais que eventualmente se pode alastrar a toda a população.”

 

Note-se que logo após essas declarações o artigo da CNN acrescentava esta frase, que cito integralmente: “O virologista sublinha, no entanto, que o vírus pode atingir qualquer pessoa – homem ou mulher, com qualquer orientação sexual –, mas que, com os dados que há neste momento, tudo indica que tenha tido uma porta de entrada naquela comunidade, e que está a desenvolver-se.” Ninguém quis saber disso. Palavras proibidas haviam sido proferidas, e o pavlovismo woke já estava a salivar.

 

Associações LGBT revoltaram-se; partidos apelaram “contra a estigmatização das pessoas LGBTQIA”; o secretário de Estado Lacerda Sales repetiu o velho mantra “é uma doença de comportamentos de risco e não de grupos de risco”; o Polígrafo poligrafou “Varíola-dos-macacos afecta especialmente homossexuais? A resposta é não”, ainda que seja óbvio para todos que a varíola-dos-macacos está neste momento a afectar especialmente homossexuais masculinos; e o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia, coitado, foi tratado de analfabeto para baixo, quando não de funesto homofóbico.

 

Em lado algum se explica esse estranhíssimo fenómeno de uma doença que não é exclusiva de homens ter, até agora, infectado apenas homens em Portugal

 

Pelo caminho, o mundo embarcou numa das suas actividades favoritas dos últimos tempos, sempre que estão em causa doenças, comportamentos e grupos historicamente discriminados: enxertou à martelada o combate ao preconceito no campo da saúde pública, borrifando-se para a ciência, para a lógica, para a sensatez e, já agora, para um jornalismo informativo, e não de causas.

 

Desde que o tema da varíola-dos-macacos surgiu, o PÚBLICO tem acompanhado o assunto de perto, e ainda há dias noticiou que Portugal é já o país com maior número de casos por milhão de habitantes em todo o mundo. Mas a cada notícia que surge sobre o tema, actualiza-se o número de infectados – 96, neste momento –, informa-se que são todos homens, acrescenta-se que “esta não é, no entanto, uma doença exclusiva de homens”, mas em lado algum – repito: em lado algum – se explica esse estranhíssimo fenómeno de uma doença que não é exclusiva de homens ter, até agora, infectado apenas homens em Portugal.

 

Significa isso que a doença é exclusivamente masculina? Não. Só que o surto parece ter tido origem na comunidade gay e bissexual que frequentou um festival nas Ilhas Canárias, uma sauna em Madrid e outros lugares de encontro gay pela Europa fora. Donde, se o surto está neste momento instalado numa determinada comunidade, essa comunidade tem de estar especialmente alerta – porque o risco de infecção é realmente maior.

 

Esconder este facto com medo da propagação da homofobia é um duplo absurdo. 1) É um absurdo porque o silêncio coloca em perigo os homens que frequentam os espaços que neste momento são mais propícios à propagação da doença. 2) É um absurdo porque o único problema que existe com a promiscuidade sexual é de saúde pública, e não de moral pública – e o silêncio envergonhado confunde uma com a outra. Os gays saíram do armário para agora enfiarmos as doenças lá dentro? Não, obrigado.

 

O autor é colunista do PÚBLICO

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