EDITORIAL
Selvajaria imobiliária
O dinamismo do mercado imobiliário trouxe reabilitação
urbana e económica a muitos bairros históricos. Mas não pode ser a selva.
Andreia Sanches
29 de Maio de
2022, 6:30
https://www.publico.pt/2022/05/29/opiniao/editorial/selvajaria-imobiliaria-2008032
Há, desde 2019,
uma lei que proíbe os proprietários de fazerem aquilo a que nos últimos anos se
vulgarizou chamar “bullying imobiliário” e que o diploma define como “assédio
no arrendamento”. Estamos a falar de um leque alargado de situações, umas mais
subtis, outras nada subtis, que podem tornar a vida de um inquilino um inferno.
As notícias de
arrendatários pressionados a sair, muitas vezes depois de os prédios onde vivem
serem comprados por fundos sem rosto, tornaram-se relativamente comuns,
sobretudo em Lisboa e Porto. Há casos em que subitamente o abastecimento de
água ou de electricidade é cortado; em que se exigem valores de rendas
incomportáveis; em que se iniciam obras nas partes comuns do prédio que põem em
causa a saúde de quem lá vive; em que os degraus de escadas aparecem partidos
para garantir que os inquilinos mais idosos têm dificuldade em aceder às casas
onde vivem… Se estão mal, mudem-se.
E há depois o
extremo, como o caso do empresário condenado por mandar atear fogo a um prédio
no Porto, porque não conseguia convencer uma mulher de 80 anos e os seus três
filhos a saírem do último apartamento que faltava esvaziar. Uma pessoa morreu.
A expressão “bullying
imobiliário” entrou no léxico de um negócio que foi ganhando pujança com os
incentivos ao alojamento turístico, os “vistos gold” e a popularidade junto de
mercados estrangeiros de um país seguro, com bom clima e uma média de preços
dos imóveis que, tendo disparado, se mantém abaixo da registada noutras cidades
europeias.
O dinamismo do
mercado imobiliário trouxe reabilitação urbana e económica a muitos bairros
históricos. Mas não pode ser a selva. Políticas de habitação que garantam que
as cidades têm lugar para os seus moradores têm de ser aprofundadas, mas a
reportagem no P2 deste domingo sobre o calvário de Maria, que tem quase 80
anos, faz-nos reflectir, sobretudo, sobre a situação dos mais pobres e dos mais
velhos neste puzzle.
A lei prevê
alguma protecção, evitando que possam ser alvo de subidas incomportáveis das
rendas. Mas histórias como a de Maria mostram bem a vulnerabilidade destas
pessoas. Uma idosa que viveu metade da vida numa casa é confrontada com a
exigência de dois mil euros por mês mais juros até que se decida a abandoná-la;
passa anos a penar de tribunal em tribunal, até a Justiça lhe dar razão; no
fim, continua a não conseguir viver dignamente e em paz a sua velhice no seu
disputado 5.º andar de Lisboa, apesar de o Supremo Tribunal de Justiça já lhe
ter dito que tem direito a lá morar.
Nenhuma lei
garante sensibilidade e bom senso a quem vive destes negócios.
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