segunda-feira, 30 de maio de 2022

Madrid está a 30 anos de Lisboa em alta velocidade

 


COMBOIOS

Madrid está a 30 anos de Lisboa em alta velocidade

 

Há três décadas, Espanha inaugurou os primeiros 471 quilómetros daquela que é hoje a maior rede de alta velocidade ferroviária na Europa. Mas a aposta no “comboio do futuro” levou ao fecho de partes da rede convencional. E deixou lições para Portugal, quando estamos a dias da inauguração do primeiro troço de alta velocidade na linha Madrid-Badajoz (que um dia seguirá para Lisboa) e na década em que deveremos ver surgir os primeiros quilómetros de alta velocidade em território português.

 


Carlos Cipriano e Ruben Martins

29 de Maio de 2022, 7:47

https://www.publico.pt/2022/05/29/economia/noticia/madrid-30-anos-lisboa-alta-velocidade-2007688?fbclid=IwAR02a_Iq0uAYGetzPiJEo4Qnoz6jTxFnhDRIMkd2TZcQ0Bxpf4wDgOlHECM

 

Quando o comboio chegou pela primeira vez aos 250 quilómetros por hora entre Madrid e Sevilha já “as vacas pareciam porcos”, assim descreveu o jornalista Ignacio Carrión no diário El País a sensação de deslizar sobre carris a velocidades nunca vistas na Península Ibérica. Tudo parecia novo naquela primeira viagem comercial de um comboio do AVE, sigla para Alta Velocidad Española operada pela Renfe. Era Abril de 1992 e a Exposição Universal de Sevilha tinha acabado de ser inaugurada.

 

Na cabina telefónica do comboio, instalada na carruagem-bar, formavam-se filas de passageiros ansiosos por partilhar com a família que estavam a viajar à velocidade de 300 km/h. Havia televisões nas carruagens, uma sala de reuniões e auriculares para os passageiros. Isto num país que nas décadas anteriores tinha assistido à transição de passageiros do comboio para o automóvel, à boleia da modernização da rede de estradas e do acesso facilitado ao crédito automóvel. Nada de muito diferente do que se observava também em Portugal, em anos marcados pelo fecho de quilómetros de vias férreas e um forte investimento na rede de auto-estradas.

 

Para convencer os espanhóis da fiabilidade da alta velocidade ferroviária, a Renfe implementou uma política de devolução total do valor do bilhete caso o comboio se atrasasse mais do que cinco minutos face ao horário previsto — política que se manteve até 2016. Mas que tinha um truque: os comboios não andavam na sua velocidade máxima, os horários estavam feitos de forma a recuperar eventuais atrasos e era fácil manter a pontualidade. Por isso a operadora conseguiu uma taxa de pontualidade de fazer inveja a qualquer operador ferroviário: 92,7% dos serviços do AVE chegavam dentro do horário previsto.

 

“A Europa a norte e o AVE para sul”

Nem tudo foram rosas. Córdoba — a única cidade do mundo com quatro sítios Património da Humanidade da UNESCO — ganhou em 1992 uma estação de um comboio de alta velocidade, mas perdeu o maior palácio conhecido do Império Romano. A pressa em cumprir prazos já de si apertados fez com que a obra ferroviária fosse prioritária em relação à preservação do património arqueológico e as máquinas avançaram quando nem tudo estava catalogado.

 

A urgência em fazer a linha explica também por que esta foi feita em bitola europeia. Sem comboios homologados para circular a 300 km/h em linhas de bitola ibérica, os espanhóis tiveram de importar do país mais avançado nesta tecnologia — a França — praticamente tudo. O TGV francês já estava certificado e foi mais rápido pô-lo a circular numa linha de 471 quilómetros entre Madrid e Sevilha. Uma linha que, devido à diferença de bitola, foi durante vários anos uma “ilha” na geografia ferroviária espanhola.

 

A escolha da Andaluzia como destino da primeira ligação também gerou polémica. A frase “a Europa a norte e o AVE vai para sul” ficou na memória nacional de uma Espanha que só seis anos antes tinha entrada na então Comunidade Económica Europeia.

 

Há poucos meses, no popular programa de televisão Salvados, do canal La Sexta, o actual presidente da Câmara de Vigo, Abel Caballero, explicou a opção por Sevilha em detrimento de Barcelona. O mito é que a preferência pela capital andaluza em detrimento da ligação à capital catalã — que nesse ano acolhia os Jogos Olímpicos de Verão — se deveu à origem sevilhana do próprio presidente de Governo, Felipe González, e do seu vice-primeiro ministro, Alfonso Guerra. “Em parte sim, é verdade”, admitiu Caballero, “mas sobretudo pela Expo’92 e por um modelo de desenvolvimento — foi a primeira vez que uma das grandes obras foi para uma zona menos desenvolvida, pois se assim não fosse a alta velocidade ficava fora de Sevilha por décadas”.

 

Entre 1985 e 1988, Caballero foi ministro dos Transportes, Turismo e Comunicações do Governo socialista de Felipe González, executivo que deu o aval à mega obra que deveria estar pronta a tempo da abertura da Exposição. “Também dizia que o AVE chegava à Galiza em 1993 e só chegou no final do ano passado [Dezembro de 2021]” — questionou o jornalista Fernando González. “Porque deixei de ser ministro, senão chegava. Quem está nos cargos importa muito!”, respondeu.

 

Depois de terminada a Expo’92 surgiu o medo de que não existissem passageiros que justificassem a linha e o futuro crescimento da rede, mas hoje os números mostram que o comboio conseguiu dizimar o avião nas ligações entre a capital andaluza e Madrid. O AVE transporta em média 3,5 milhões de passageiros ao ano. Os aviões que fazem o trajecto Madrid-Sevilha lidam agora praticamente só com passageiros de voos de ligação.

 

Ainda assim, os investimentos milionários na alta velocidade — que totalizaram 57 mil milhões de euros desde 1992 — iniciaram um ciclo de desinvestimento nas linhas convencionais que levaram à redução de serviço ou mesmo encerramento de centenas de estações em locais que hoje pertencem à Espanha que se esvaziou.

 

Na alta velocidade o futuro parece mais promissor. São já 3728 os quilómetros operacionais, com 70% da população espanhola a ter uma estação de alta velocidade na sua localidade.

 

Liberalização reduziu preços entre Madrid e Barcelona

Com uma tal rede de infra-estruturas, a Espanha é também um laboratório vivo para a experiência da liberalização do transporte ferroviário de passageiros. É certo que a França já recebe há anos o ICE alemão, tal como o TGV francês também vai à Alemanha (e à Suíça), mas graças a uma parceria entre a SNCF e a DB. Para se falar de concorrência a sério no mercado da alta velocidade é preciso ir a Itália e à Espanha.

 

A Ouigo, empresa do grupo SNCF, entrou em Espanha em Maio de 2021, na linha Madrid – Barcelona e com preços mais baixos do que a Renfe. Segundo Hélène Valenzuela, da Ouigo España, num texto publicado na revista Via Libre de Abril passado, “os preços reduziram-se desde então em 50%” e, no primeiro ano de funcionamento em Espanha, a Ouigo transportou dois milhões de passageiros com uma taxa média de ocupação de 97%, um sucesso que lhe permite adiantar que em breve os seus comboios vão ligar Madrid a Valência, Albacete e Alicante.

 

O aumento da procura não resultou só de uma transferência de passageiros vindos da Renfe (que respondeu à concorrência francesa com o lançamento de um serviço low cost designado Avlo), mas de um incremento do próprio mercado. Valenzuela diz que “a alta velocidade ganhou quota de mercado em relação ao avião e regista níveis de utilização superiores à pré-pandemia”.

 

Sem querer atacar directamente o seu maior concorrente, a directora-geral da Ouigo prefere acentuar as vantagens da alta velocidade: “Considerar o comboio como a primeira opção de transporte, sempre que seja possível, beneficiará o meio ambiente, a segurança e a economia.” E exemplifica: “Cada viagem num comboio de alta velocidade contamina, em média, 80 vezes menos que um avião e 50 vezes menos que um automóvel.”

 

Apesar de a liberalização ter reduzido o preço das viagens entre Madrid e Barcelona, os utilizadores da Renfe noutros percursos sem concorrência e que não fazem parte das ligações com compensação do Estado por cumprimento de serviço público queixam-se de que os preços das viagens aumentaram muito nos últimos meses.

 

A entrada da Ouigo foi assinalada pela Renfe, ao nível do marketing, com alguma picardia. A empresa espanhola, inspirou-se na série Guerra dos Tronos, da HBO, e publicou um anúncio onde dizia: “Querida concorrência, depois de 80 anos a transportar os nossos, não poderíamos estar mais bem preparados. Que comece o Jogo dos Comboios!” No mesmo dia, a Ouigo responde com um vídeo onde se vê um octogenário a jogar basquetebol sozinho: “Querida concorrência, entendemos que jogar sozinho pode ser uma coisa muito aborrecida. Estamos encantados por ir a jogo.”

 

Espanha, em vez dos 15.000 quilómetros de vias férreas actuais, podia ter uma rede de 40.000 quilómetros de linhas bem dotadas com tecnologia moderna, em via dupla, electrificadas, mistas (para passageiros e mercadorias) e com o ERTMS instalado

José Luiz Ordoñez, porta-voz da Coordinadora Estatal por el Ferrocarril Público, Social y Sostenible

 

Aguarda-se como vai ser recebido por quem já está no terreno, perdão, nos carris, o terceiro operador que em Novembro começará a utilizar a linha Madrid – Barcelona: a Iryo, uma empresa italiana que também vai a jogo em Espanha e que apoia a execução da linha de alta velocidade para Lisboa, mostrando interesse em operar a ligação no futuro.

 

O seu presidente, Carlos Bertomeu, escreve na Via Libre que quer atrair 8 milhões de passageiros por ano. E enquanto os franceses usaram uma parte da sua frota de TGV para a operação espanhola, os italianos anunciam uma aposta forte: “Realizámos um investimento de mil milhões de euros para fabricar do zero uma frota de 20 comboios ETR 1000 que são os mais rápidos, sustentáveis e silenciosos da Europa, e desenvolvemos uma plataforma IT para oferecer uma experiência de viagem 100% digital.”

 

Mas o CEO da Iryo também tem alguns recados para o Governo espanhol. Quer uma descida da taxa de uso (portagem ferroviária) para permitir “um aumento do tráfego e do uso da infra-estrutura, actualmente subutilizada”, tendo em conta que “em Itália, quando em 2015 e 2016 o regulador aproveitou a liberalização para reduzir a taxa de uso para metade, conseguiu-se duplicar o tráfego”.

 

Num horizonte mais largo, também há portugueses interessados em Espanha. A B-Rail, empresa do grupo Barraqueiro que, por enquanto, ainda só existe no papel, não esconde que depois de iniciar as suas operações em Portugal, pretende viajar também para o mercado espanhol. A empresa adiou o início da sua entrada ao serviço para quando, pelo menos, uma parte da linha de alta velocidade portuguesa estiver construída, e pensa comprar material com eixos telescópicos (que permitem circular nos dois tipos de bitola) para poder utilizar as linhas de alta velocidade espanholas.

 

Certo é que, por enquanto, ainda não há um quilómetro que seja de rede em Portugal, que, juntamente com a Extremadura espanhola, está à parte da rede que vai somando quilómetros na Europa. Do lado de lá da fronteira, na rural Extremadura, a luta por um tren digno é uma constante agravada pelas sucessivas promessas incumpridas de um rol de políticos: 2002 [Aznar], 2004 [Zapatero], 2005 [Rodríguez Ibarra], 2007 [María de la Vega], 2008 [Rajoy], 2009 [José Blanco], 2013 [Ana Pastor], 2015 [Manuel Soria], 2017 [Íñigo de la Serna], 2018 [Pedro Sánchez]. Todos eles disseram que o comboio era inevitável metendo datas incumpridas no calendário. O comboio para a Extremadura virou anedota nacional e motivo de meme nas redes sociais.

 

Neste mês de Junho, a alta velocidade — ou algo que ainda só se possa parecer com isso uma vez que, para já, os comboios não vão passar dos 180 km/h — chega à Extremadura na forma de um comboio a diesel em linha nova e apenas entre Badajoz e Plasencia. É o primeiro passo concreto que permite a redução em 50 minutos da viagem de Badajoz para Madrid (passa para um tempo de percurso de quatro horas), mas ainda um pequeno passo para se conseguir uma ligação rápida entre Lisboa e Madrid e que necessita de obras importantes como a Terceira Travessia do Tejo (sem data prevista), a conclusão do troço Évora-Caia (prevista para 2023), a electrificação de Badajoz –​ Plasencia (prevista para 2023) e a construção do troço Plasencia – Toledo (ainda sem mapa aprovado nem data prevista).

 

É também nesse último troço que estão os maiores problemas: em La Macha — já altamente bem servida pelas redes de alta velocidade — não há pressa na definição do novo traçado, mas há contestação da população de Talavera de la Reina contra aquilo a que chama de divisão da localidade motivado pelo atravessamento ferroviário no centro da cidade.

 

Em Portugal as promessas também foram muitas: a primeira data de 1990 (aquando da aprovação do traçado geral da rede europeia de alta velocidade). Foi-se adiando o investimento até que o Governo de José Sócrates deu, em 2010, os passos necessários para meter obra no terreno na ligação entre o Poceirão (Palmela) e o Caia (na fronteira com Espanha), mas o assunto ficara parado com a crise que Portugal atravessou no início da segunda década do século XXI e virou um “tabu” associado ao desperdício de dinheiro.

 

Agora, os projectos estão relançados: até 2030 haverá uma linha de alta velocidade entre o Carregado, nos arredores de Lisboa, e o Porto. Está ainda prevista a construção de um corredor de alta velocidade entre Braga e Valença (com ligação a Vigo), permitindo encurtar distâncias entre o Porto e a Galiza e ligar uma enorme faixa atlântica muito povoada entre a Corunha e Setúbal.

 

Mais a mais curto prazo, o aproveitamento do corredor em construção entre Évora e o Caia permitirá a um comboio de passageiros vindo de Lisboa alcançar a cidade de Badajoz em cerca de duas horas, seguindo depois para Madrid caso haja vontade dos operadores. 2023 é neste momento a data prevista para a conclusão da ligação que pode devolver a Portugal um comboio directo com a capital espanhola, algo que não existe desde que a pandemia fez desaparecer o comboio Lusitânia e a ligação congénere para Hendaia (França) Sud-Expresso.

 

Alta velocidade não agrada a todos

Nem todos, porém, aplaudem a alta velocidade em Espanha como uma estratégia acertada dos governos dos últimos 30 anos.

 

José Luiz Ordoñez, porta-voz da Coordinadora Estatal por el Ferrocarril Público, Social y Sostenible, diz que, com os 50 a 80 mil milhões de euros gastos nas linhas de alta velocidade, Espanha poderia ter, em vez dos 15.000 quilómetros de vias férreas actuais, “uma rede de 40.000 quilómetros de linhas bem dotadas com tecnologia moderna, em via dupla, electrificadas, mistas (para passageiros e mercadorias) e com o ERTMS instalado”. Uma verdadeira rede a servir praticamente todo o território e não um conjunto de linhas de alta velocidade desligadas de uma rede convencional que tem sido descurada e está decadente.

 

“Chamam rede a um X no mapa. Nenhum pescador deita um X à água pensado que assim vai apanhar peixes”, diz Ordoñez. O X representa as linhas de alta velocidade que parte de Madrid para algumas capitais das regiões autónomas. A rede representa aquilo que defendem: uma malha de linhas de caminho-de-ferro a cobrir todas as províncias e a grande maioria da população.

 

A Coordinadora Estatal por el Ferrocarril Público, Social y Sostenible não é uma associação de somenos importância. É um chapéu que abrange dezenas de plataformas cidadãs em toda a Espanha normalmente designadas por En Defensa del Ferrocarril ou Por El Tren. Junta também todos os sindicatos ferroviários (da UGT e das Comisiones Obreras), associações de utentes, várias organizações de esquerda, movimentos ecologistas (incluindo o Greenpace) e a coligação Unidas Podemos.

 

José Luiz Ordoñez explica que “o Governo está dividido sobre a política de transportes e o papel do caminho-de-ferro. O Unidas Podemos está no Governo e está na Coordinadora, enquanto o PSOE está com a política de direita. É por isso que nós não dizemos que há uma política errada do Governo, mas sim que há uma política errada do Ministério dos Transportes”.

 

Essa “política errada” advém de uma percepção também errada dos altos responsáveis do Governo sobre a realidade ferroviária. “Eles identificam-se com uma pequena minoria da sociedade espanhola, mas estão afastados da maioria da população. Um dado: diariamente viajam 23 mil pessoas no AVE, mas nos suburbanos e nos regionais são quase 2 milhões. E é um número por baixo porque fecharam muitos serviços durante a pandemia que ainda não reabriram e também porque há comboios regionais que circulam sem revisor, havendo passageiros que viajam sem pagar bilhete e sem entrar nas estatísticas [facto que o PÚBLICO pôde comprovar em viagem recente em Espanha]. Ora, isto prova que todo o investimento realizado nas últimas décadas na ferrovia não foi feito para a maioria da sociedade.”

 

Para os defensores de um comboio público, social, sustentável e que interliga o território, a alternativa é, então, a aposta numa rede convencional bem modernizada e com tecnologia de ponta. Numa perspectiva ecologista, não defendem comboios com velocidades superiores a 200 km/h devido ao excessivo consumo energético que aumenta exponencialmente para além dessa velocidade. Mas os 200 à hora permitem médias comerciais de 165 km/h, “que supera tudo o que se pode fazer na estrada”. Ordoñez diz que a prioridade não deve ser o comboio concorrer com o avião, mas sim retirar carros da estrada.

 

Esta abordagem divergente começa a dar os seus frutos. A Coordenadora considera uma vitória que o Governo tenha avançado com um anteprojecto para reabrir a linha Guadix – Baza – Almanzora – Lorca na Andaluzia. E considera que o Ministério dos Transportes, Adif e Renfe já só pretendem concluir os projectos de alta velocidade em curso e desistiram de avançar com novas linhas porque se deram conta da insensatez dessa estratégia. E os projectos do AVE que estão a ser ultimados já não o são com os critérios da alta velocidade pura e dura de há 30 anos, mas com algum downgrade. A linha entre Granada, Murcia e Almeria será feita só em via única porque a frequência de comboios AVE não justifica duas linhas e na própria linha Madrid – Badajoz o Governo já admite utilizá-la também para tráfego de mercadorias por forma a melhor rentabilizar a infra-estrutura.

 

E a liberalização? E a concorrência e consequente descida do preço dos bilhetes? José Luiz Ordoñez diz que tudo isso é artificial e que em causa está a necessidade de dar mais uso a uma infra-estrutura que tem sido subaproveitada.

 

E quanto à concorrência, Ordoñez chama a atenção que a Ouigo, que opera entre Madrid e Barcelona, e a Iryo, que anunciou a sua entrada em Novembro, não são mais do que a “Renfe francesa” e a “Renfe italiana”, ou seja, “são empresas públicas, quanto muito semiprivadas, que estão a fazer uma repartição do mercado compensando-se umas com as outras e recebendo dinheiro público, nem que seja por via indirecta através da descida do preço da taxa de utilização da infra-estrutura”.

 

O AVE aproximou Madrid e afastou tudo o resto

Com uma população que ronda os mil habitantes, Tardienta, na província de Huesca, vê o comboio de alta velocidade parar duas vezes por dia, uma em cada sentido. A localidade é conhecida por, até há pouco tempo, ter sido o aglomerado populacional mais pequeno de Espanha com uma estação com serviços de alta velocidade. Esse título foi dizimado com a inauguração da Estação Sanabria AV, no lugar zamorano de Otero de Sanabria (cujo censo conta 24 habitantes), na linha entre Madrid e a Galiza.

 

Importante nó ferroviário na linha convencional entre Madrid e Barcelona, Tardienta ganhou um AVE em 2003, mas perdeu as ligações directas que tinha com Barcelona, Galiza ou Andaluzia e viu partir 70 ferroviários afectos à estação que deixaram de ser necessários ao serviço. Ao mesmo tempo que Espanha tem a maior percentagem de quilómetros de alta velocidade por habitante, detém a infra-estrutura mais infra-utilizada — excepção feita ao corredor Madrid-Barcelona, o filet mignon da alta velocidade e onde se concentra o grosso dos passageiros transportados.

 

Os habitantes de Tardienta, citados pela Aragón TV, queixam-se de que perderam ligações e que “o único trajecto que saiu beneficiado foi para Madrid”. Hoje podem ir à capital espanhola em duas horas e voltar no mesmo dia. Média de utilização da estação: um passageiro por comboio de alta velocidade.

 

Na bilheteira é fácil perceber porque ali não tem sucesso o AVE. Entre Saragoça e Tardienta há nove comboios regionais com um tempo de percurso que ronda os 36 minutos. Para um único comboio de alta velocidade por dia (que sai de Saragoça às 20h33) o preço pedido anda à volta dos 13 euros, pelo regional no mesmo trajecto o valor não chega a seis euros. O AVE poupa em média sete minutos à viagem. Para fazer a linha de alta velocidade Saragoça-Huesca — 88 quilómetros — foram gastos 220 milhões de euros.

 

Apesar das conspirativas teorias que, segundo o El País, surgiram entre a população que acreditou que a paragem de um AVE se deveu a algum favor político, na realidade a explicação é meramente técnica: nos 25 quilómetros entre Tardienta e Huesca o comboio de alta velocidade está limitado a andar à ‘média-velocidade’ de 160 km/h pelo que não aumenta grande tempo de viagem a paragem naquela estação, que custou 50 mil euros para ser adaptada à alta velocidade.

 

Mas há outros exemplos: o AVE Toledo-Albacete transportava em média nove passageiros diários, tendo sido suprimido em 2011. Perdia-se por dia 18 mil euros com esta ligação, custando cada passageiro 1125 euros. Um director da Renfe chegou a afirmar publicamente que saía mais barato pagar uma limusine a cada passageiro do que continuar com esta ligação.

 

A batalha de Cuenca

A linha convencional Madrid – Cuenca – Valencia tornou-se num símbolo do muito que está em causa na política ferroviária espanhola. A construção da linha de alta velocidade entre Madrid e Valencia encurtou de forma estrondosa os tempos de viagem entre estas três cidades e as autoridades espanholas decidiram que não valia a pena manter a velha linha que lhe é paralela e que está já há décadas a morrer à míngua de qualquer investimento e com uma manutenção abaixo dos mínimos.

 

A realidade actual tem contrastes brutais: o AVE faz Madrid – Cuenca em 58 minutos, o comboio regional demora 3 horas e meia. Mas poderia ser muito mais rápido se a linha não estivesse degradada, com troços a 30 km/h, e se a viagem fosse directa desde Madrid em vez de obrigar a um inusitado transbordo em Aranjuez. Pior: entre Cuenca e Utiel a linha já está fechada desde que a tempestade Filomena (em Janeiro de 2021) degradou a infra-estrutura, pelo que a viagem para Valencia prossegue, naquele troço, em autocarro.

 

Mas o comboio convencional, por outro lado, serve os pueblos ao longo do percurso. Os tais que o movimento Espanha Esvaziada defende que não devem continuar a perder serviços.

 

Para a Renfe, a irrelevância desta linha é tal que nem se dá ao trabalho de meter um revisor a bordo, pelo que os poucos passageiros que entram e saem nas estações intermédias acabam por não pagar bilhete e deixam de contar para as estatísticas que justificam o encerramento da linha com a pouca utilização desta.

 

Mas o que está aqui em causa é um grande negócio imobiliário no centro de Cuenca. A estação de alta velocidade fica fora da cidade e as pessoas têm de ir de táxi ou autocarro apanhar o comboio. Em contrapartida, a estação convencional está em pleno centro e dispõe de enormes extensões de terrenos urbanos (antigamente a estação era um complexo ferroviário importante que incluía oficinas de comboios).

 

Os defensores do caminho-de-ferro como instrumento que ajuda a interligar o território têm-se batido pela manutenção da linha para Cuenca, exigindo a sua modernização ao serviço da Espanha interior. Tem havido manifestações, abaixo-assinados, intervenções no Parlamento espanhol, reportagens de televisão. “Cuenca é um calcanhar de Aquiles. Se deixamos cair esta linha, estamos a permitir que coisas semelhantes continuem a acontecer noutras regiões. A ferrovia de longo curso em Espanha não pode ser só a alta velocidade”, diz José Luiz Ordoñez.

 

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