COMBOIOS
Madrid está a 30 anos de Lisboa em alta velocidade
Há três décadas, Espanha inaugurou os primeiros 471
quilómetros daquela que é hoje a maior rede de alta velocidade ferroviária na
Europa. Mas a aposta no “comboio do futuro” levou ao fecho de partes da rede
convencional. E deixou lições para Portugal, quando estamos a dias da
inauguração do primeiro troço de alta velocidade na linha Madrid-Badajoz (que
um dia seguirá para Lisboa) e na década em que deveremos ver surgir os
primeiros quilómetros de alta velocidade em território português.
Carlos Cipriano e
Ruben Martins
29 de Maio de
2022, 7:47
Quando o comboio
chegou pela primeira vez aos 250 quilómetros por hora entre Madrid e Sevilha já
“as vacas pareciam porcos”, assim descreveu o jornalista Ignacio Carrión no
diário El País a sensação de deslizar sobre carris a velocidades nunca vistas
na Península Ibérica. Tudo parecia novo naquela primeira viagem comercial de um
comboio do AVE, sigla para Alta Velocidad Española operada pela Renfe. Era
Abril de 1992 e a Exposição Universal de Sevilha tinha acabado de ser
inaugurada.
Na cabina
telefónica do comboio, instalada na carruagem-bar, formavam-se filas de
passageiros ansiosos por partilhar com a família que estavam a viajar à
velocidade de 300 km/h. Havia televisões nas carruagens, uma sala de reuniões e
auriculares para os passageiros. Isto num país que nas décadas anteriores tinha
assistido à transição de passageiros do comboio para o automóvel, à boleia da
modernização da rede de estradas e do acesso facilitado ao crédito automóvel.
Nada de muito diferente do que se observava também em Portugal, em anos
marcados pelo fecho de quilómetros de vias férreas e um forte investimento na
rede de auto-estradas.
Para convencer os
espanhóis da fiabilidade da alta velocidade ferroviária, a Renfe implementou
uma política de devolução total do valor do bilhete caso o comboio se atrasasse
mais do que cinco minutos face ao horário previsto — política que se manteve
até 2016. Mas que tinha um truque: os comboios não andavam na sua velocidade
máxima, os horários estavam feitos de forma a recuperar eventuais atrasos e era
fácil manter a pontualidade. Por isso a operadora conseguiu uma taxa de
pontualidade de fazer inveja a qualquer operador ferroviário: 92,7% dos
serviços do AVE chegavam dentro do horário previsto.
“A Europa a norte
e o AVE para sul”
Nem tudo foram
rosas. Córdoba — a única cidade do mundo com quatro sítios Património da
Humanidade da UNESCO — ganhou em 1992 uma estação de um comboio de alta
velocidade, mas perdeu o maior palácio conhecido do Império Romano. A pressa em
cumprir prazos já de si apertados fez com que a obra ferroviária fosse
prioritária em relação à preservação do património arqueológico e as máquinas
avançaram quando nem tudo estava catalogado.
A urgência em
fazer a linha explica também por que esta foi feita em bitola europeia. Sem
comboios homologados para circular a 300 km/h em linhas de bitola ibérica, os
espanhóis tiveram de importar do país mais avançado nesta tecnologia — a França
— praticamente tudo. O TGV francês já estava certificado e foi mais rápido
pô-lo a circular numa linha de 471 quilómetros entre Madrid e Sevilha. Uma
linha que, devido à diferença de bitola, foi durante vários anos uma “ilha” na
geografia ferroviária espanhola.
A escolha da
Andaluzia como destino da primeira ligação também gerou polémica. A frase “a
Europa a norte e o AVE vai para sul” ficou na memória nacional de uma Espanha
que só seis anos antes tinha entrada na então Comunidade Económica Europeia.
Há poucos meses,
no popular programa de televisão Salvados, do canal La Sexta, o actual
presidente da Câmara de Vigo, Abel Caballero, explicou a opção por Sevilha em
detrimento de Barcelona. O mito é que a preferência pela capital andaluza em
detrimento da ligação à capital catalã — que nesse ano acolhia os Jogos
Olímpicos de Verão — se deveu à origem sevilhana do próprio presidente de
Governo, Felipe González, e do seu vice-primeiro ministro, Alfonso Guerra. “Em
parte sim, é verdade”, admitiu Caballero, “mas sobretudo pela Expo’92 e por um
modelo de desenvolvimento — foi a primeira vez que uma das grandes obras foi
para uma zona menos desenvolvida, pois se assim não fosse a alta velocidade
ficava fora de Sevilha por décadas”.
Entre 1985 e
1988, Caballero foi ministro dos Transportes, Turismo e Comunicações do Governo
socialista de Felipe González, executivo que deu o aval à mega obra que deveria
estar pronta a tempo da abertura da Exposição. “Também dizia que o AVE chegava
à Galiza em 1993 e só chegou no final do ano passado [Dezembro de 2021]” —
questionou o jornalista Fernando González. “Porque deixei de ser ministro,
senão chegava. Quem está nos cargos importa muito!”, respondeu.
Depois de
terminada a Expo’92 surgiu o medo de que não existissem passageiros que
justificassem a linha e o futuro crescimento da rede, mas hoje os números
mostram que o comboio conseguiu dizimar o avião nas ligações entre a capital
andaluza e Madrid. O AVE transporta em média 3,5 milhões de passageiros ao ano.
Os aviões que fazem o trajecto Madrid-Sevilha lidam agora praticamente só com
passageiros de voos de ligação.
Ainda assim, os
investimentos milionários na alta velocidade — que totalizaram 57 mil milhões
de euros desde 1992 — iniciaram um ciclo de desinvestimento nas linhas
convencionais que levaram à redução de serviço ou mesmo encerramento de
centenas de estações em locais que hoje pertencem à Espanha que se esvaziou.
Na alta
velocidade o futuro parece mais promissor. São já 3728 os quilómetros
operacionais, com 70% da população espanhola a ter uma estação de alta
velocidade na sua localidade.
Liberalização
reduziu preços entre Madrid e Barcelona
Com uma tal rede
de infra-estruturas, a Espanha é também um laboratório vivo para a experiência
da liberalização do transporte ferroviário de passageiros. É certo que a França
já recebe há anos o ICE alemão, tal como o TGV francês também vai à Alemanha (e
à Suíça), mas graças a uma parceria entre a SNCF e a DB. Para se falar de concorrência
a sério no mercado da alta velocidade é preciso ir a Itália e à Espanha.
A Ouigo, empresa
do grupo SNCF, entrou em Espanha em Maio de 2021, na linha Madrid – Barcelona e
com preços mais baixos do que a Renfe. Segundo Hélène Valenzuela, da Ouigo
España, num texto publicado na revista Via Libre de Abril passado, “os preços
reduziram-se desde então em 50%” e, no primeiro ano de funcionamento em
Espanha, a Ouigo transportou dois milhões de passageiros com uma taxa média de
ocupação de 97%, um sucesso que lhe permite adiantar que em breve os seus
comboios vão ligar Madrid a Valência, Albacete e Alicante.
O aumento da
procura não resultou só de uma transferência de passageiros vindos da Renfe
(que respondeu à concorrência francesa com o lançamento de um serviço low cost
designado Avlo), mas de um incremento do próprio mercado. Valenzuela diz que “a
alta velocidade ganhou quota de mercado em relação ao avião e regista níveis de
utilização superiores à pré-pandemia”.
Sem querer atacar
directamente o seu maior concorrente, a directora-geral da Ouigo prefere
acentuar as vantagens da alta velocidade: “Considerar o comboio como a primeira
opção de transporte, sempre que seja possível, beneficiará o meio ambiente, a
segurança e a economia.” E exemplifica: “Cada viagem num comboio de alta
velocidade contamina, em média, 80 vezes menos que um avião e 50 vezes menos que
um automóvel.”
Apesar de a
liberalização ter reduzido o preço das viagens entre Madrid e Barcelona, os
utilizadores da Renfe noutros percursos sem concorrência e que não fazem parte
das ligações com compensação do Estado por cumprimento de serviço público
queixam-se de que os preços das viagens aumentaram muito nos últimos meses.
A entrada da
Ouigo foi assinalada pela Renfe, ao nível do marketing, com alguma picardia. A
empresa espanhola, inspirou-se na série Guerra dos Tronos, da HBO, e publicou
um anúncio onde dizia: “Querida concorrência, depois de 80 anos a transportar
os nossos, não poderíamos estar mais bem preparados. Que comece o Jogo dos
Comboios!” No mesmo dia, a Ouigo responde com um vídeo onde se vê um
octogenário a jogar basquetebol sozinho: “Querida concorrência, entendemos que
jogar sozinho pode ser uma coisa muito aborrecida. Estamos encantados por ir a
jogo.”
Espanha, em vez dos 15.000 quilómetros de vias férreas
actuais, podia ter uma rede de 40.000 quilómetros de linhas bem dotadas com
tecnologia moderna, em via dupla, electrificadas, mistas (para passageiros e
mercadorias) e com o ERTMS instalado
José Luiz
Ordoñez, porta-voz da Coordinadora Estatal por el Ferrocarril Público, Social y
Sostenible
Aguarda-se como
vai ser recebido por quem já está no terreno, perdão, nos carris, o terceiro
operador que em Novembro começará a utilizar a linha Madrid – Barcelona: a
Iryo, uma empresa italiana que também vai a jogo em Espanha e que apoia a
execução da linha de alta velocidade para Lisboa, mostrando interesse em operar
a ligação no futuro.
O seu presidente,
Carlos Bertomeu, escreve na Via Libre que quer atrair 8 milhões de passageiros
por ano. E enquanto os franceses usaram uma parte da sua frota de TGV para a
operação espanhola, os italianos anunciam uma aposta forte: “Realizámos um
investimento de mil milhões de euros para fabricar do zero uma frota de 20
comboios ETR 1000 que são os mais rápidos, sustentáveis e silenciosos da
Europa, e desenvolvemos uma plataforma IT para oferecer uma experiência de
viagem 100% digital.”
Mas o CEO da Iryo
também tem alguns recados para o Governo espanhol. Quer uma descida da taxa de
uso (portagem ferroviária) para permitir “um aumento do tráfego e do uso da
infra-estrutura, actualmente subutilizada”, tendo em conta que “em Itália,
quando em 2015 e 2016 o regulador aproveitou a liberalização para reduzir a
taxa de uso para metade, conseguiu-se duplicar o tráfego”.
Num horizonte
mais largo, também há portugueses interessados em Espanha. A B-Rail, empresa do
grupo Barraqueiro que, por enquanto, ainda só existe no papel, não esconde que
depois de iniciar as suas operações em Portugal, pretende viajar também para o
mercado espanhol. A empresa adiou o início da sua entrada ao serviço para
quando, pelo menos, uma parte da linha de alta velocidade portuguesa estiver
construída, e pensa comprar material com eixos telescópicos (que permitem
circular nos dois tipos de bitola) para poder utilizar as linhas de alta
velocidade espanholas.
Certo é que, por
enquanto, ainda não há um quilómetro que seja de rede em Portugal, que,
juntamente com a Extremadura espanhola, está à parte da rede que vai somando
quilómetros na Europa. Do lado de lá da fronteira, na rural Extremadura, a luta
por um tren digno é uma constante agravada pelas sucessivas promessas
incumpridas de um rol de políticos: 2002 [Aznar], 2004 [Zapatero], 2005 [Rodríguez
Ibarra], 2007 [María de la Vega], 2008 [Rajoy], 2009 [José Blanco], 2013 [Ana
Pastor], 2015 [Manuel Soria], 2017 [Íñigo de la Serna], 2018 [Pedro Sánchez].
Todos eles disseram que o comboio era inevitável metendo datas incumpridas no
calendário. O comboio para a Extremadura virou anedota nacional e motivo de
meme nas redes sociais.
Neste mês de
Junho, a alta velocidade — ou algo que ainda só se possa parecer com isso uma
vez que, para já, os comboios não vão passar dos 180 km/h — chega à Extremadura
na forma de um comboio a diesel em linha nova e apenas entre Badajoz e
Plasencia. É o primeiro passo concreto que permite a redução em 50 minutos da
viagem de Badajoz para Madrid (passa para um tempo de percurso de quatro
horas), mas ainda um pequeno passo para se conseguir uma ligação rápida entre
Lisboa e Madrid e que necessita de obras importantes como a Terceira Travessia
do Tejo (sem data prevista), a conclusão do troço Évora-Caia (prevista para
2023), a electrificação de Badajoz – Plasencia (prevista para 2023) e a
construção do troço Plasencia – Toledo (ainda sem mapa aprovado nem data
prevista).
É também nesse
último troço que estão os maiores problemas: em La Macha — já altamente bem
servida pelas redes de alta velocidade — não há pressa na definição do novo
traçado, mas há contestação da população de Talavera de la Reina contra aquilo
a que chama de divisão da localidade motivado pelo atravessamento ferroviário
no centro da cidade.
Em Portugal as
promessas também foram muitas: a primeira data de 1990 (aquando da aprovação do
traçado geral da rede europeia de alta velocidade). Foi-se adiando o
investimento até que o Governo de José Sócrates deu, em 2010, os passos
necessários para meter obra no terreno na ligação entre o Poceirão (Palmela) e
o Caia (na fronteira com Espanha), mas o assunto ficara parado com a crise que
Portugal atravessou no início da segunda década do século XXI e virou um “tabu”
associado ao desperdício de dinheiro.
Agora, os
projectos estão relançados: até 2030 haverá uma linha de alta velocidade entre
o Carregado, nos arredores de Lisboa, e o Porto. Está ainda prevista a
construção de um corredor de alta velocidade entre Braga e Valença (com ligação
a Vigo), permitindo encurtar distâncias entre o Porto e a Galiza e ligar uma
enorme faixa atlântica muito povoada entre a Corunha e Setúbal.
Mais a mais curto
prazo, o aproveitamento do corredor em construção entre Évora e o Caia
permitirá a um comboio de passageiros vindo de Lisboa alcançar a cidade de
Badajoz em cerca de duas horas, seguindo depois para Madrid caso haja vontade
dos operadores. 2023 é neste momento a data prevista para a conclusão da
ligação que pode devolver a Portugal um comboio directo com a capital
espanhola, algo que não existe desde que a pandemia fez desaparecer o comboio
Lusitânia e a ligação congénere para Hendaia (França) Sud-Expresso.
Alta velocidade
não agrada a todos
Nem todos, porém,
aplaudem a alta velocidade em Espanha como uma estratégia acertada dos governos
dos últimos 30 anos.
José Luiz
Ordoñez, porta-voz da Coordinadora Estatal por el Ferrocarril Público, Social y
Sostenible, diz que, com os 50 a 80 mil milhões de euros gastos nas linhas de
alta velocidade, Espanha poderia ter, em vez dos 15.000 quilómetros de vias
férreas actuais, “uma rede de 40.000 quilómetros de linhas bem dotadas com
tecnologia moderna, em via dupla, electrificadas, mistas (para passageiros e
mercadorias) e com o ERTMS instalado”. Uma verdadeira rede a servir
praticamente todo o território e não um conjunto de linhas de alta velocidade
desligadas de uma rede convencional que tem sido descurada e está decadente.
“Chamam rede a um
X no mapa. Nenhum pescador deita um X à água pensado que assim vai apanhar
peixes”, diz Ordoñez. O X representa as linhas de alta velocidade que parte de
Madrid para algumas capitais das regiões autónomas. A rede representa aquilo
que defendem: uma malha de linhas de caminho-de-ferro a cobrir todas as
províncias e a grande maioria da população.
A Coordinadora
Estatal por el Ferrocarril Público, Social y Sostenible não é uma associação de
somenos importância. É um chapéu que abrange dezenas de plataformas cidadãs em
toda a Espanha normalmente designadas por En Defensa del Ferrocarril ou Por El
Tren. Junta também todos os sindicatos ferroviários (da UGT e das Comisiones
Obreras), associações de utentes, várias organizações de esquerda, movimentos
ecologistas (incluindo o Greenpace) e a coligação Unidas Podemos.
José Luiz Ordoñez
explica que “o Governo está dividido sobre a política de transportes e o papel
do caminho-de-ferro. O Unidas Podemos está no Governo e está na Coordinadora,
enquanto o PSOE está com a política de direita. É por isso que nós não dizemos
que há uma política errada do Governo, mas sim que há uma política errada do
Ministério dos Transportes”.
Essa “política
errada” advém de uma percepção também errada dos altos responsáveis do Governo
sobre a realidade ferroviária. “Eles identificam-se com uma pequena minoria da
sociedade espanhola, mas estão afastados da maioria da população. Um dado:
diariamente viajam 23 mil pessoas no AVE, mas nos suburbanos e nos regionais
são quase 2 milhões. E é um número por baixo porque fecharam muitos serviços
durante a pandemia que ainda não reabriram e também porque há comboios
regionais que circulam sem revisor, havendo passageiros que viajam sem pagar
bilhete e sem entrar nas estatísticas [facto que o PÚBLICO pôde comprovar em
viagem recente em Espanha]. Ora, isto prova que todo o investimento realizado
nas últimas décadas na ferrovia não foi feito para a maioria da sociedade.”
Para os
defensores de um comboio público, social, sustentável e que interliga o
território, a alternativa é, então, a aposta numa rede convencional bem
modernizada e com tecnologia de ponta. Numa perspectiva ecologista, não
defendem comboios com velocidades superiores a 200 km/h devido ao excessivo
consumo energético que aumenta exponencialmente para além dessa velocidade. Mas
os 200 à hora permitem médias comerciais de 165 km/h, “que supera tudo o que se
pode fazer na estrada”. Ordoñez diz que a prioridade não deve ser o comboio
concorrer com o avião, mas sim retirar carros da estrada.
Esta abordagem
divergente começa a dar os seus frutos. A Coordenadora considera uma vitória
que o Governo tenha avançado com um anteprojecto para reabrir a linha Guadix –
Baza – Almanzora – Lorca na Andaluzia. E considera que o Ministério dos
Transportes, Adif e Renfe já só pretendem concluir os projectos de alta
velocidade em curso e desistiram de avançar com novas linhas porque se deram
conta da insensatez dessa estratégia. E os projectos do AVE que estão a ser
ultimados já não o são com os critérios da alta velocidade pura e dura de há 30
anos, mas com algum downgrade. A linha entre Granada, Murcia e Almeria será
feita só em via única porque a frequência de comboios AVE não justifica duas
linhas e na própria linha Madrid – Badajoz o Governo já admite utilizá-la
também para tráfego de mercadorias por forma a melhor rentabilizar a
infra-estrutura.
E a
liberalização? E a concorrência e consequente descida do preço dos bilhetes?
José Luiz Ordoñez diz que tudo isso é artificial e que em causa está a
necessidade de dar mais uso a uma infra-estrutura que tem sido subaproveitada.
E quanto à
concorrência, Ordoñez chama a atenção que a Ouigo, que opera entre Madrid e
Barcelona, e a Iryo, que anunciou a sua entrada em Novembro, não são mais do
que a “Renfe francesa” e a “Renfe italiana”, ou seja, “são empresas públicas,
quanto muito semiprivadas, que estão a fazer uma repartição do mercado
compensando-se umas com as outras e recebendo dinheiro público, nem que seja
por via indirecta através da descida do preço da taxa de utilização da
infra-estrutura”.
O AVE aproximou
Madrid e afastou tudo o resto
Com uma população
que ronda os mil habitantes, Tardienta, na província de Huesca, vê o comboio de
alta velocidade parar duas vezes por dia, uma em cada sentido. A localidade é
conhecida por, até há pouco tempo, ter sido o aglomerado populacional mais
pequeno de Espanha com uma estação com serviços de alta velocidade. Esse título
foi dizimado com a inauguração da Estação Sanabria AV, no lugar zamorano de
Otero de Sanabria (cujo censo conta 24 habitantes), na linha entre Madrid e a
Galiza.
Importante nó
ferroviário na linha convencional entre Madrid e Barcelona, Tardienta ganhou um
AVE em 2003, mas perdeu as ligações directas que tinha com Barcelona, Galiza ou
Andaluzia e viu partir 70 ferroviários afectos à estação que deixaram de ser
necessários ao serviço. Ao mesmo tempo que Espanha tem a maior percentagem de
quilómetros de alta velocidade por habitante, detém a infra-estrutura mais
infra-utilizada — excepção feita ao corredor Madrid-Barcelona, o filet mignon
da alta velocidade e onde se concentra o grosso dos passageiros transportados.
Os habitantes de
Tardienta, citados pela Aragón TV, queixam-se de que perderam ligações e que “o
único trajecto que saiu beneficiado foi para Madrid”. Hoje podem ir à capital
espanhola em duas horas e voltar no mesmo dia. Média de utilização da estação:
um passageiro por comboio de alta velocidade.
Na bilheteira é
fácil perceber porque ali não tem sucesso o AVE. Entre Saragoça e Tardienta há
nove comboios regionais com um tempo de percurso que ronda os 36 minutos. Para
um único comboio de alta velocidade por dia (que sai de Saragoça às 20h33) o
preço pedido anda à volta dos 13 euros, pelo regional no mesmo trajecto o valor
não chega a seis euros. O AVE poupa em média sete minutos à viagem. Para fazer
a linha de alta velocidade Saragoça-Huesca — 88 quilómetros — foram gastos 220
milhões de euros.
Apesar das
conspirativas teorias que, segundo o El País, surgiram entre a população que
acreditou que a paragem de um AVE se deveu a algum favor político, na realidade
a explicação é meramente técnica: nos 25 quilómetros entre Tardienta e Huesca o
comboio de alta velocidade está limitado a andar à ‘média-velocidade’ de 160
km/h pelo que não aumenta grande tempo de viagem a paragem naquela estação, que
custou 50 mil euros para ser adaptada à alta velocidade.
Mas há outros
exemplos: o AVE Toledo-Albacete transportava em média nove passageiros diários,
tendo sido suprimido em 2011. Perdia-se por dia 18 mil euros com esta ligação,
custando cada passageiro 1125 euros. Um director da Renfe chegou a afirmar
publicamente que saía mais barato pagar uma limusine a cada passageiro do que
continuar com esta ligação.
A batalha de
Cuenca
A linha
convencional Madrid – Cuenca – Valencia tornou-se num símbolo do muito que está
em causa na política ferroviária espanhola. A construção da linha de alta
velocidade entre Madrid e Valencia encurtou de forma estrondosa os tempos de
viagem entre estas três cidades e as autoridades espanholas decidiram que não
valia a pena manter a velha linha que lhe é paralela e que está já há décadas a
morrer à míngua de qualquer investimento e com uma manutenção abaixo dos
mínimos.
A realidade
actual tem contrastes brutais: o AVE faz Madrid – Cuenca em 58 minutos, o
comboio regional demora 3 horas e meia. Mas poderia ser muito mais rápido se a
linha não estivesse degradada, com troços a 30 km/h, e se a viagem fosse
directa desde Madrid em vez de obrigar a um inusitado transbordo em Aranjuez.
Pior: entre Cuenca e Utiel a linha já está fechada desde que a tempestade
Filomena (em Janeiro de 2021) degradou a infra-estrutura, pelo que a viagem
para Valencia prossegue, naquele troço, em autocarro.
Mas o comboio convencional,
por outro lado, serve os pueblos ao longo do percurso. Os tais que o movimento
Espanha Esvaziada defende que não devem continuar a perder serviços.
Para a Renfe, a
irrelevância desta linha é tal que nem se dá ao trabalho de meter um revisor a
bordo, pelo que os poucos passageiros que entram e saem nas estações
intermédias acabam por não pagar bilhete e deixam de contar para as
estatísticas que justificam o encerramento da linha com a pouca utilização
desta.
Mas o que está
aqui em causa é um grande negócio imobiliário no centro de Cuenca. A estação de
alta velocidade fica fora da cidade e as pessoas têm de ir de táxi ou autocarro
apanhar o comboio. Em contrapartida, a estação convencional está em pleno
centro e dispõe de enormes extensões de terrenos urbanos (antigamente a estação
era um complexo ferroviário importante que incluía oficinas de comboios).
Os defensores do
caminho-de-ferro como instrumento que ajuda a interligar o território têm-se
batido pela manutenção da linha para Cuenca, exigindo a sua modernização ao
serviço da Espanha interior. Tem havido manifestações, abaixo-assinados,
intervenções no Parlamento espanhol, reportagens de televisão. “Cuenca é um
calcanhar de Aquiles. Se deixamos cair esta linha, estamos a permitir que
coisas semelhantes continuem a acontecer noutras regiões. A ferrovia de longo
curso em Espanha não pode ser só a alta velocidade”, diz José Luiz Ordoñez.
tp.ocilbup@onairpic.solrac
tp.ocilbup@snitram.nebur
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