OPINIÃO
Lisboa, capital da chinfrineira
Entre as questões ambientais a poluição sonora é sempre
esquecida. Há zero sensibilidade política. Uma ineficaz pressão pública. Uma
condescendência geral. Em Lisboa, reina a cacofonia.
Vítor Belanciano
29 de Maio de
2022, 7:12
https://www.publico.pt/2022/05/29/opiniao/opiniao/lisboa-capital-chinfrineira-2007982
Antes da pandemia
Lisboa já podia ostentar o título de cidade do ruído. Depois surgiu o vírus e o
rumor de fundo, essa segunda pele de uma cidade, diminuiu, impondo-se uma amena
temperatura sonora. Agora que regressamos à chamada “normalidade”, o ruído, que
apesar de tudo remete para alguma estruturação, foi superado. O patamar agora é
outro.
O que temos hoje
já não é isso. É barulheira, algazarra, cacofonia, um gigante cagaçal, por
entre música, aviões, berbequins, carros, motores e, agora que o turismo
regressou a todo o vapor de forma sôfrega, excitações a toda a hora, em
qualquer lugar, consoante os diferentes interesses económicos aí radicados.
Para uma cidade que vive obcecada em ser “marca”, como se os seus habitantes
fossem meros consumidores, abre-se aqui uma janela de oportunidade em termos de
designações que ajudem à sua promoção. Lisboa, capital da chinfrineira, podia
ser um excelente chamariz turístico. Ironizo, claro.
Já se sabe que,
hoje, proliferam os discursos na ponta da língua sobre o ambiente. É o
aquecimento global. É o ar e a atmosfera, o lixo, os plásticos, os oceanos. No
meio, sempre esquecida, a poluição sonora. Há pouca sensibilidade cidadã. Uma
ineficaz pressão pública concertada. Uma condescendência geral. Até alguma
censura quando se fala do assunto, como se quem o fizesse fosse
desmancha-prazeres. Um total e inacreditável alheamento político. Um fechar de
olhos das autoridades. Até certo ponto, percebe-se. O ruído é imaterial. Parece
passageiro. Associamo-lo a festa e prazer. Mas o problema existe e agrava-se
cada vez mais, principalmente nos centros urbanos saturados, onde as fontes de
barulho são múltiplas e omnipresentes, com efeitos graves, profundos e nem
sempre perceptíveis na saúde física e mental (alterações de sono, problemas
cognitivos, hipertensão e por aí fora).
Apesar da
legislação existente, paira uma sensação de impotência. A fiscalização é
ineficaz. O mapeamento do ruído assenta em medições quantitativas,
esquecendo-se a experiência das pessoas. Não se contempla que são as baixas
frequências que mais danos causam. Ou se é rico, e vive-se numa fortaleza
acústica, ou vai-se resistindo como se pode (“põe tampões”, “toma um
comprimido”, “muda de casa”, e outras coisas que tais, são os conselhos inúteis
que se ouvem em contextos sociais). Quando se faz queixa às autoridades, o
paternalismo é o mesmo. A polícia tem sempre algo mais importante para fazer.
Os organismos municipais são inoperantes. Não há relação de confiança. A
sensação é de impotência e abandono.
Viver no centro
de uma cidade acarreta sempre algum desconforto. Não é de romantismo e de
silêncio que aqui se fala. Aqui sugere-se um mínimo de equilíbrio. Nem sequer é
de design sonoro eficiente de espaços públicos, como há em tantas cidades europeias.
Estamos muito longe desses cenários. É apenas de não sacrificar o direito ao
bem-estar dos cidadãos a qualquer preço, permitindo todos os abusos de
indústrias e negócios. O afluxo de receitas é relevante para alguns, mas também
é a sanidade de todos, num ecossistema frágil onde tudo está ligado.
Um dos muitos
exemplos possíveis da situação actual acontece junto ao rio, entre o Cais do
Sodré e Santos. Alguém durante o reinado de Medina teve uma grande ideia
reservar aquela zona para diversão nocturna, num exemplo datado e esgotado de
planeamento urbano, colocando ali três discotecas a funcionar ao ar livre.
Repito: ao ar livre. O som propaga-se pelas colinas, sendo frequentes as
queixas, inclusive, da outra margem, porque o som, pois é, também desliza pela
água. Até às 7 da manhã, de quarta a sábado, é assim. Não satisfeita, a
freguesia da Estrela resolveu, durante o Inverno, e agora nas semanas que
antecedem os Santos Populares, instalar ali uma feira de diversões, todos os
dias, até às 2 da matina. De maneira que até certa hora se ouve o Quero cheirar
o teu bacalhau, Maria do Quim Barreiros em competição desenfreada com o tecno
do lado, e depois leva-se com três discotecas a ver quem provoca mais alarido
até de manhã. Há quem chame “animação” a isto. Para os que não pregam olho é só
um inconcebível sofrimento.
De quem nos
governa desejava-se apenas uma gestão estratégica, saber identificar
tendências, antecipar soluções, ampliar modos de governação, com uma
participação cidadã efectiva. Mas népias. A voragem e a chinfrineira
mandam.
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