António Barreto
OPINIÃO
Um aeroporto e
suas obras
10 de Novembro de
2019, 8:09
As grandes obras
são o “filet mignon” de certas políticas: a dos interesses e a que se julga
acima da ciência. As grandes obras e os grandes equipamentos são, em geral, as
jóias da coroa dos poderes autocráticos. Hitler, Estaline, Mao, Mussolini e até
Franco e Salazar viviam momentos de rara volúpia diante das suas barragens e
dos seus estádios. Eram deles os palácios da justiça, da cultura, dos
trabalhadores ou do povo! E até democratas como Roosevelt e Mitterrand não
deixaram de se sentir tentados pela epopeia da “obra pública”.
Na verdade,
barragens, portos, linhas de caminho-de-ferro, aeroportos e redes de
telecomunicações, de energia e de água, assim como aquisições especiais de
fragatas, submarinos, aviões e locomotivas, são investimentos e obras que valem
milhares de votos e milhões de euros. São obras que condicionam a economia e a
sociedade durante décadas. Que criam emprego em quantidades inacreditáveis. Que
dão lucros em volumes impensáveis. Que oferecem oportunidades para cunhas,
empenhos, luvas, comissões e corrupção em valor inimaginável. As grandes obras
condicionam a sociedade e a economia por largos anos: qualquer erro paga-se
muito caro e pode ter consequências negativas nas vidas das pessoas e no
endividamento de um país!
Um aeroporto novo
de raiz, como o de Alcochete, ou grande desenvolvimento de estrutura anterior,
como o de Montijo, têm profundos efeitos a longo prazo no futuro das
populações, das áreas afectadas e até do país: pontes, viadutos, auto-estradas,
linhas de comboio e de metropolitano, estruturas de cargas e descargas,
oficinas de reparação e manutenção, instalações de serviços de grande porte,
escritórios, hotelaria, segurança, estacionamentos, abastecimento, alimentação,
etc. Um nunca mais acabar, com milhares de expropriações, muitos milhões na
aquisição de terrenos, licenças de construção e urbanização e autorizações para
edificação. Um aeroporto é uma cidade que condiciona as outras cidades, que
determina uma parte do crescimento futuro, que tem efeitos negativos e
positivos para milhões de pessoas e dezenas de anos! Percebe-se que são
decisões difíceis e complexas, sem perfeição absoluta e que necessitam de muito
estudo e muita inteligência! Mas não são estes factos ou estas exigências que
justificam que uma decisão demore mais de 50 anos e que mude de local escolhido
quatro vezes, como é o caso do futuro aeroporto de Lisboa!
Acrescente-se
que, nos tempos contemporâneos, estas decisões são ainda mais difíceis. A
democracia dá voz a toda a gente e a todas as opiniões, legítimas e ilegítimas,
sérias e fantasiosas. Surgem todos os dias novos problemas, sobretudo os
relativos à qualidade de vida, à ecologia e às alterações climáticas. Há seguramente
contradições fundamentais entre criação de emprego, adequação do investimento
público, oportunidades para investimento privado, segurança dos cidadãos,
poluição sonora e do ar, destruição da flora e da fauna e desenvolvimento da
economia em geral e do turismo em particular. Mas sabemos que não há decisões
perfeitas e que um aeroporto terá sempre amigos, inimigos e adversários. Como
tudo na vida.
Em democracia,
não há aeroporto sem polémicas, interesses, lutas, protestos, devaneios
tecnológicos, ameaças ambientalistas e horrores ecológicos. Não é difícil
encontrar quem pense que os voos e os aviões têm os dias contados, que as
pessoas não deveriam viajar e que o turismo necessita de um numerus clausus.
Todos conhecemos quem entenda que deveríamos eliminar a poluição sonora,
sobretudo a que resulta do sobrevoo de cidades e de zonas de habitação. Ainda
recordamos batalhas e controvérsias em Heathrow, Frankfurt, Berlim ou Paris.
Nos Estados Unidos, no Japão e no Brasil.
Mas em quase
todas as controvérsias houve sempre ou quase sempre um momento em que os ânimos
acalmaram, que se introduziu alguma racionalidade e se fizeram correcções aos
projectos iniciais. E que se tomaram decisões e se fez obra. Foi nesses
momentos que se sentiu que havia centros de competência e racionalidade, grupos
de pessoas qualificadas e interessadas, empresas ou associações ou
universidades isentas e independentes. Foi nesses momentos que se sentiu que,
além dos trafulhas habituais, mau grado os pesos pesados dos interesses e do
produto, havia também gente honesta e preparada!
Lamento dizer,
mas, em Portugal e para o novo aeroporto de Lisboa, temos tudo, menos isso,
honestidade e competência, isenção e independência. Se existem essas
qualidades, não as vemos ou foram silenciadas. Ou a essas o Governo não
recorre.
O Estado continua
a revelar a sua falta de capacidades intelectuais, técnicas e científicas,
assim como a ausência de ethos isento e independente. Em tudo o que cheire a
grande obra, o Estado aparece sempre e cada vez mais capturado, impotente e
incompetente…
Foi este Estado
que, durante décadas e alternadamente, hesitou e decidiu, eliminou e escolheu
Ota, Rio Frio, Alcochete e Montijo. Mas também Alverca e Sintra. E, já agora,
Monte Real e Beja. Foi o Estado português, sucessivamente salazarista,
marcelista, gonçalvista e democrático que, desde os anos 60, isto é, há 50
anos, vem pensando em construir um aeroporto desde sempre considerado urgente!
E muda de opinião com a firmeza dos ignorantes e a certeza dos interesses. A
perda de capacidade científica independente do Estado é uma das mais graves
falhas das últimas décadas.
É frequente
encontrarmos as mesmas pessoas, as mesmas universidades, as mesmas empresas, os
mesmos bancos, os mesmos promotores e os mesmos especialistas em vários
projectos e várias soluções. Há ministros e secretários de Estado que estavam
em funções quando foram tomadas duas ou mesmo três decisões contraditórias.
Também se conhecem profissionais, engenheiros, economistas, consultores e
construtores que apoiaram decisões opostas, talvez até com os mesmos
argumentos!
As esquerdas,
auto-suficientes, exauriram o Estado competente, técnico e inteligente, para o
transformar em agente político e já agora em sua coutada. As direitas, cúpidas,
esvaziaram o Estado sabedor, capaz e independente, para entregar poderes e
competências aos negócios e aos privados. O Estado, hoje, é alfobre de
negócios, tapada dos partidos, autoritário como os ignorantes, convencido como
os déspotas! E ao serviço da política mais barata, a dos interesses. Bonito
serviço!
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