ANÁLISE
A Espanha entre
dois nacionalismos
A radicalização
do nacionalismo catalão está a provocar um regresso do nacionalismo espanhol,
um tema com o qual a esquerda deixou de saber lidar.
Jorge Almeida
Fernandes
10 de Novembro de
2019, 6:35
Não é arriscado
profetizar que Catalunha vai continuar no centro da política espanhola. As
eleições de hoje ameaçam produzir uma nefasta conjugação entre o risco de
ingovernabilidade e o choque de dois nacionalismos. Teme-se um Congresso
bloqueado e incapaz de responder aos desafios políticos. A sentença do Supremo
Tribunal converteu a Catalunha no eixo da campanha eleitoral. Nos últimos dias,
as atenções foram desviadas para a ascensão do Vox, que as sondagens apontam
como terceiro partido espanhol. Todos estes efeitos estão encadeados. As
“chamas de Barcelona” ofereceram uma coluna de ar quente para que [o Vox]
começasse a subir nas sondagens”, escreveu o diário La Vanguardia.
Ao forçar a
repetição das eleições, Pedro Sánchez terá agido como se o incómodo “conflito
catalão” não existisse ou pudesse ser colocado entre parênteses. Foi uma forma
de repetir a passividade do seu antecessor, Mariano Rajoy. Tendo optado por
dispensar os votos independentistas na sua investidura, subestimou o risco de
fazer coincidir a campanha eleitoral com a publicação da sentença. A obsessão
com a manobra táctica continua a impedir os políticos espanhóis de pensar no
horizonte do longo prazo. Terá provocado um desastre. Saberemos hoje à noite a
sua dimensão.
A radicalização
do nacionalismo catalão está a provocar um regresso do nacionalismo espanhol,
um tema com o qual a esquerda deixou de saber lidar. Escreveu há dias o
politólogo Fernando Vallespín que as “chamas de Barcelona” eram um presente
para o Vox. “Um nacionalismo exacerbado estimula o seu contrário. (…) Uma
campanha travada em termos de choque de identidades só pode beneficiar a
direita.”
Reféns do Vox
Mais grave do que
isto: se, até agora, era politicamente inconveniente discutir os caminhos de
saída para o conflito catalão, muito mais difícil será daqui em diante. Entre a
radicalização independentista e a reacção nacionalista espanhola, a questão catalã
arrisca-se apodrecer indefinidamente. O PP, o Cidadãos e o próprio PSOE estão
reféns do discurso do Vox. O PP reflecte a pressão da extrema-direita sobre o
seu eleitorado e modela o seu discurso. Num clima de insegurança, Pedro Sánchez
sentiu-se forçado, nas últimas semanas, a apresentar-se como garante da
“ordem”.
Vallespín
insurge-se contra o vazio do debate sobre o tema da Catalunha na campanha.
“Talvez porque ninguém se atreve a exercer a liderança, a apontar um objectivo
e convencer-nos a alcançá-lo. Em vez disso opta-se pela via fácil, continuarmos
submetidos aos ditados das emoções primárias. O avesso da liderança.”
Mas a situação
está igualmente bloqueada na Catalunha. Os sectores radicais viram na sentença
do Supremo uma segunda oportunidade para relançar o “processo”. Os
“anticapitalistas” da CUP e dos CDR tomaram conta da rua. Os partidos perderam
o controlo dos acontecimentos. Houve inclusivamente a ameaça de boicote das
eleições, entretanto substituído por uma vaga de manifestações a partir de
amanhã. Permanece a palavra de ordem da CUP: assegurar a ingovernabilidade da
Catalunha e da Espanha.
A rivalidade
entre os “dois independentismos”, as correntes ligadas a Puigdemont ou ao
presidente Quim Torras e a Esquerda Republicana, de Oriol Junqueras, tornou-se
mais acesa. Têm fundas divergências estratégicas. Partilham o “objectivo final”
da independência mas divergem em quase tudo. A sentença do processo tornou as
suas posições mais rígidas, em nome da “unidade nacional”, ao mesmo tempo que
abriu caminho à afirmação da CUP e dos CDR, que tomaram conta da rua. Nada
mudará até às eleições autonómicas catalãs, que deverão clarificar a liderança
da Catalunha.
Depois de ter sido
marginalizado nas eleições europeias, com seis por cento dos votos, o partido
de Santiago Abascal cresce nas sondagens e ascende ao estatuto de terceiro
partido espanhol.
O politólogo José
Pablo Ferrándiz pensa que o bipartidarismo deu lugar a um bibloquismo:“O
sistema passou de dois partidos hegemónicos para dois blocos hegemónicos”, em
que custa muito mudar de bloco, esquerda e direita, mas é fácil mudar de
partido dentro do mesmo bloco. “Os líderes de hoje cresceram e socializaram-se
no bipartidarismo. E agora que ele não existe reproduzem-no através do
bibloquismo, que bloqueia precisamente os acordos transversais que proporcionam
estabilidade noutros países.”
O novo sistema
facilita “o transvase da direita tradicional para a extrema-direita de uma forma
até agora impensável. Na Espanha estamos a ver como o centro desaparece e está
a ser substituído pela extrema-direita.” O PP e o Cidadãos ajudaram, argumenta
Ferrándiz: “Ao verem que o Vox crescia nas sondagens, tentaram competir com ele
e o resultado é que o eleitor de direita pensa que se o Cidadães e o PP dizem o
mesmo que a ultra-direita, será o Vox quem tem razão. O Cidadãos começou por
ocupar o espaço do centro, funcionando como partido-charneira, indispensável ao
PSOE ou ao PP para formar maiorias. Mas Albert Rivera escolheu entrar num dos
blocos, o da direita, para assumir a sua liderança. A experiência deu mau
resultado.
O sistema em
risco
A conjugação
destes fenómenos constitui uma pesada ameaça, agora dobrada pela iminência de
um parlamento “ingovernável”, incapaz de produzir uma maioria de governo. Neste
quadro de dois blocos fechados, há duas soluções tradicionais. A primeira seria
uma “grande coligação” entre o PSOE e o PP. A segunda seria a chamada
“abstenção patriótica” do PP para investir Sánchez como primeiro-ministro. Esta
segunda solução significaria um governo débil, que não teria o controlo da
agenda legislativa e dificilmente conseguiria aprovar o orçamento. A ascensão
do Vox torna improvável qualquer destes cenários. Entregar a oposição a
Santiago Abascal é o último dos desejos de Pablo Casado.
Neste quadro, é
normal que surjam cenários catastróficos. Alertava ontem, no diário El
Confidencial, o analista José Antonio Zarzalejos que a hipótese de terceiras
eleições levaria a um “sinistro político espanhol”, pois significaria a
sentença de morte do “sistema constitucional de 1978”, tal como aconteceu em
França à IV República, em 1958.
O sistema
constitucional está sob pressões contraditórias. Por um lado, “o
independentismo e o nacionalismo propõem fórmulas de dissolução dos fundamentos
constitucionais (o regime baseia-se na ‘indissolúvel unidade da Nação
Espanhola’)”. Por outro, “a nova extrema-direita advoga a supressão do Estado
autonómico previsto na Carta Magna.”
Aguardemos a
contagem dos votos.
tp.ocilbup@sednanrefaj
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