domingo, 3 de novembro de 2019

Governo diz que a gestão que Espanha fez do caudal do Tejo “não é aceitável”



Espanha não tem assegurado os caudais acordados para o Douro, Tejo e Guadiana

Governo diz que a gestão que Espanha fez do caudal do Tejo “não é aceitável”

Uma média de 14 milhões de metros cúbicos de água diários foi libertada da barragem de Cedilho, durante o mês de Setembro, para que Espanha cumprisse a Convenção de Albufeira. As consequências económicas, ambientais e sociais reflectem-se num cenário “dramático”. O Governo português nunca recebeu explicações de Espanha

Carlos Dias 3 de Novembro de 2019, 6:01

O ano hidrológico 2018/2019 terminou no dia 30 de Setembro e, decorrido um mês, continuam a desconhecer-se os motivos que forçaram as autoridades espanholas a escoar para o oceano Atlântico, durante o mês de Agosto, cerca de “430 hectómetros cúbicos” de água referiu ao PÚBLICO o Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC). Este era no final de Agosto, o débito em falta para atingir o volume anual integral estabelecido na Convenção de Albufeira (CA), que é, para o rio Tejo, de 2.700 hectómetros cúbicos que devem ser enviados para Portugal durante um ano hidrológico, neste caso, entre o início de Outubro de 2018 e o final de Setembro de 2019.

 “Nunca se tinha atingido uma situação em que o diferencial do escoamento acumulado em Junho para o integral anual tivesse uma diferença tão significativa, mesmo nos anos em que se verificaram condições de excepção” acentua o MAAC. Em apenas um mês, uma média diária de 14 milhões de metros cúbicos, foi lançada para jusante da barragem de Cedillo, directamente para o oceano Atlântico sem qualquer proveito.


A gestão realizada por Espanha durante o ano hidrológico 2018/2019 para lançar o regime de caudais anuais “não é aceitável e sobre isso Portugal já o referiu de forma clara a Espanha, que vai reforçar a sua atitude na próxima reunião plenária da CADC (Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira) propondo o incremento de mecanismos de controlo que permitam evitar no futuro situações desta natureza” afirmou ao PÚBLICO o MAAC.

Com efeito, até ao dia 1 de Julho de 2019, tinham passado pelo sistema de descarga da barragem de Cedillo 2.256 hectómetros cúbicos, ou seja “84% do fluxo integral anual mínimo de 2.700 hectómetros cúbicos/ano”, pode ler-se na página do Ministério para a Transição Ecológica (MTE) de Espanha.

Dada a escassez de tempo para cumprir os acordos da CA, a Confederação Hidrográfica do Tejo (CHT) deu instruções à Iberdola para iniciar descargas de maior volume e, a partir do dia 9 de Setembro, acentuou-se o processo de esvaziamento da albufeira de Cedillo. Naquele dia, o MAAC recebeu um email do sub-director Geral do Planeamento e Uso Sustentável da Água com a seguinte informação: “Somos obrigados a cumprir o regime regulado e, consequentemente, solicitámos à Iberdrola que liberte os caudais necessários, forçando a descida do reservatório de Cedillo muito além de sua faixa usual de armazenamento. Esperamos que a acentuada descida (no nível da água), não cause problemas.”


Na resposta a esta comunicação, Portugal, através da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) solicitou que lhe fosse remetido uma calendarização das intervenções a efectuar e como “pensavam compensar com descargas da albufeira de Alcântara, para evitar uma descida tão acentuada de quase 20 metros do nível da albufeira face à cota que em regra esta albufeira se encontra, e que teria consequências ao nível da qualidade da água”. Mas, apesar das “várias as interpelações, quer com a Direcção-Geral das Águas, quer com a Confederação Hidrográfica do Tejo”, entre as quais uma nota onde a APA fazia uma “avaliação crítica da situação” do que se estava a verificar, “Portugal nunca recebeu uma resposta muito clara sobre esta opção”.

Era patente o risco de fazer cumprir o regime mínimo de caudais “apenas à custa dos volumes armazenados em Cedillo, sem compensar através de Alcântara para evitar uma descida tão abrupta”, observa o MAAC. Reagindo às acusações que têm sido formuladas sobre o modo de intervenção da Confederação Hidrográfica do Tejo (CHT) e a aparente apatia de Portugal perante a decisão o MAAC argumenta: “Não teria de partir de Portugal a opção de Espanha não cumprir o regime mínimo de caudais previsto na Convenção.”



Movimento proTejo diz que Espanha não cumpriu caudais acordados para o rio Tejo

A decisão das autoridades espanholas reduziu, entre os dias 3 e 9 de Setembro, a reserva de água de Cedillo dos cerca de 250 para os 196 hectómetros cúbicos. A 17 de Setembro descia para os 161 hectómetros cúbicos e a 24 de Setembro estava nos 113. Quando terminou o ano hidrológico, a 30 de Setembro, restavam apenas 79 hectómetros cúbicos. Na semana seguinte baixou ainda mais para os 72 e, no dia 28 de Outubro, os dados mais recentes publicados pelo MTE, referem que a água em Cedillo mantinha-se sensivelmente no mesmo nível do registado no início do mês passado, cerca de 78 hectómetros cúbicos.

O vazamento da albufeira de Cedillo deixou os sedimentos à vista e “secou” os rios Sever e Ponsul que nela confluem. O resultado das descargas com a finalidade de Espanha garantir o cumprimento da Convenção de Albufeira, “não pode ser aceite” contesta Armindo Silveira, membro do Movimento próTEJO, realçando as consequências ambientais e económicas provocadas por um volume de descarga sem paralelo. Na terra onde vive, em Abrantes, o ambientalista recorda: “Num dia o rio parecia um oceano e, no dia a seguir, tínhamos um ribeiro perante os nossos olhos.”

As consequências ambientais e económicas não têm paralelo na história das comunidades de Montalvão e Cedillo. José da Silva, presidente da Junta de Freguesia de Montalvão, não é parco nas palavras para definir a sua revolta perante a atitude das autoridades espanholas. “Ninguém passa cartão à gente. Apenas soubemos quando as comportas já estavam a descarregar água”, refere o autarca.

O barulho da água que saía com intensidade e volume nunca vistos chegou a alarmar as pessoas das duas comunidades vizinhas. “Pensámos que haveria muita água a montante e para evitar uma enxurrada abriram as comportas de Cedillo” presumiu José da Silva. O nível das águas da albufeira foi baixando, baixando e se via água a entrar de montante.

Espanha não divulga caudais que debita no Guadiana e Portugal publica dados errados

Pela primeira vez desde que a barragem fora construída, em meados dos anos 60, que os residentes mais idosos de Montalvão não viam os vestígios que ficaram dos antigos moinhos de água que a albufeira cobriu no rio Sever. No rio Ponsul, que tem a sua confluência com o Tejo na margem oposta, corre um fio de água.

O panorama é desolador. “Já vi as águas da albufeira de cor verde, amarela, e agora estão pretas. Quando não havia barragem, era espelhada”, protesta o presidente da junta de freguesia de Montalvão. Nas margens que antes ladeavam o rio Tejo de um verde intenso da vegetação ribeirinha, agora estão nuas, escalvadas a demonstrar como o nível da água desceu pelo menos 10 metros. “O leito do rio e da barragem tem quatro metros de sedimentos” observa o autarca com uma apreciação marcada pela tristeza. “A barragem destruiu o nosso modo de vida e até o peixe mudou de cor e já ninguém come barbos ou bogas.”

O “ Balcón del Tajo”, barco que transportava quem fazia turismo natureza ou se deslocava às compras nas superfícies comerciais de Castelo Branco, vindos de Cedillo, está agora retido no meio da albufeira em cima dos sedimentos acumulados ao longo de décadas. O cais metálico onde os passageiros embarcavam está dependurado na margem esquerda da albufeira, assim como barcos de recreio, ou utilizados pelos pescadores, que ficaram presos nas amarras balançando-se sobre um penhasco que há cerca de dois meses estava coberto de água.

O PÚBLICO deslocou-se à povoação de Cedillo, que fica a 12 quilómetros de Montalvão. Tem pouco mais de 450 habitantes, mas o ambiente contrasta com o de Montalvão. Abundam as esplanadas e o convívio entre as pessoas, mas também as queixas sobre os acontecimentos das últimas semanas merecem criticas.

Juan Rosado, 80 anos, compreende o mal-estar da população vizinha de Montalvão. “Nunca vimos a água tão baixa” e lamenta que as autoridades do seu país “não tomassem os cuidados devidos com Portugal” afirmando que a população não foi informada previamente que iam proceder descargas na barragem. O modo como foram feitas “chegou a alarmar as pessoas” observa o residente de Cedillho.

O alcaide local António González Riscado analisa o que aconteceu com desagrado por considerar que “houve uma má gestão da água no Tejo ao longo de todo o ano”. A Iberdola, instada pelo PÚBLICO a comentar a afirmação do autarca espanhol, referiu que actuou “conforme estabelecido pela Convenção de Albufeira”, e que “o volume de água estabelecido em cada período está a ser entregue”.


Espanha não tem assegurado os caudais acordados para o Douro, Tejo e Guadiana

Nos esclarecimentos que solicitou às autoridades do seu país, o autarca espanhol pode concluir que “a Iberdrola jogou com a possibilidade” de a União Europeia poder vir a declarar “uma situação de emergência por causa da seca” antes da data limite para o cumprimento da Convenção de Albufeira, o dia 30 de Setembro. Como isso não aconteceu, a empresa espanhola, que ao longo de 10 meses “apenas largou o caudal mínimo, teve de enviar o que estava em falta, todo de uma vez” explicou António Riscado, reprovando a decisão de “lançar tanta água ao mar sem proveito nenhum e que acabou por causar prejuízos a todos” acentua. A Iberdola diz que “não comenta as declarações” do alcaide de Cedillo. 

Os efeitos da decisão espanhola foram imediatos: os rios Sever e o Ponsul estão secos e a empresa que explora a navegação do barco “Balcon del Tajo” deixou de poder navegar, e assim satisfazer os seus compromissos com as pessoas que já tinha para transportar até ao Natal. António Riscado enumera as consequências ambientais que o preocupam. “Os pescadores deixaram de poder pescar, porque já há peixe a morrer e outra fauna ribeirinha também vai morrer.” Outro dado preocupante para o autarca: “Não vai haver água tão cedo para encher a albufeira.” E sublinha que as barragens a montante, como a de Alcântara, “já não têm mais água para alimentar o caudal do rio”. A que resta, cerca de 1.350 hectómetros, está destinada ao consumo humano da cidade de Cáceres.

O volume de água armazenado nas 51 barragens que Espanha ergueu na bacia hidrográfica do Tejo, em pleno Outono, à data de 28 de Outubro, situava-se nos 3.833 hectómetros cúbicos, quando a sua capacidade de armazenamento total é de 11.051 hectómetros de metros cúbicos. Em igual período de 2018 atingiu os 5.386 hectómetros cúbicos. É óbvia a escassez de água em território espanhol. E, se não chover, a situação será “dramática” para as comunidades que se localizam ao longo do rio Tejo em território português, antecipa Armindo Silveira, dirigente do Movimento pró Tejo.

O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao Ministério da Transição Ecológica espanhol, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.

Desde a abertura de fronteiras entre Portugal e Espanha, em Junho de 1992, quando os dois países passaram a fazer parte do espaço Schengen (convenção estabelecida entre países europeus sobre a livre circulação de pessoas no interior da Europa), que a ligação entre as localidades de Montalvão e de Cedillo através do coroamento da barragem só está aberta desde as 9 horas de sábado às 22 horas de domingo. Fora deste período, a circulação está interdita, por se tratar de uma propriedade da Iberdola, que tem poderes para decidir quando abre ou fecha as ligações naquele ponto da fronteira, alegando a necessidade de salvaguardar a segurança dos equipamentos.

Este constrangimento tem-se revelado um “obstáculo” ao desenvolvimento das comunidades de Montalvão e da localidade vizinha no outro lado da fronteira, situada a cerca de 12 quilómetros. O presidente da junta de freguesia de Montalvão, José da Silva, que se queixa da falta de acessibilidades mantém na sua agenda reivindicativa a construção de duas pontes reclamadas há décadas: uma que ligue a povoação de Montalvão a Cedillho e outra a Castelo Branco.

“Vivemos no interior do interior, abafados pela Espanha e a Beira” realça o autarca. Mas a experiência e a realidade dizem-lhe que será muito difícil fixar pessoas à terra. A alternativa passa por “conseguir atraí-las para disfrutar das nossas belezas naturais, da gastronomia e até como local de passagem para outos lugares”.

José da Silva que nasceu em Montalvão há 77 anos, diz que ouvia dizer mesmo antes da barragem de Cedillo ser construída no início dos anos 70 do século passado, que obra iria incluir uma passagem do distrito de Portalegre para o de Castelo Branco, garantido a travessia do Tejo. Esta possibilidade nunca se consumou, mesmo sabendo-se que a sua estrutura se localiza inteiramente em território português.

Os sucessivos avanços e recuos protagonizados pelas autoridades espanholas, que ora dizem avançar com a ponte e depois adiam ou suspendem a sua construção, avisaram o autarca de Montalvão para o facto de o projecto não depender de Portugal.

Este facto alimenta-lhe o cepticismo. “Duvido que a ligação para Cedillo venha alguma vez a ser construída”. Enquanto descrevia ao PÚBLICO os avanços e recuos do projecto, José da Silva apontou para outra contradição. A cerca de duas centenas de metros da barragem, dois pilares de betão estavam vincados no leito, agora quase seco do rio Sever. Foram erguidos durante a construção da estrutura destinada à produção de energia eléctrica, para suportar um passadiço por onde circulavam as viaturas pesadas que transportavam materiais para a obra. Concluídos os trabalhos, as autoridades espanholas desmontaram o tabuleiro da ponte que nos dias de hoje poderia assegurar a ligação entre Montalvão e Cedillo.

Como esta obra está na fase de avanços e recuos, o autarca de Montalvão defende a construção de uma outra ponte sobre o rio Tejo, que ligue Montalvão à Beira Baixa. “Sem comunicação, não podemos aspirar ao desenvolvimento da actividade económica nos territórios raianos” reforça José da Silva.


OPINIÃO
É a água, estúpido!

Com Portugal ameaçado na sua existência pela seca, é surpreendente que nenhum político em campanha tenha ainda referido esta questão de vida ou de morte.

António Sérgio Rosa de Carvalho
9 de Abril de 2019, 20:44

Em época de eleições, eleitoralismo. Este é um “clássico” a que a classe política nos habituou. O país tem andado dominado por uma avalanche de revelações a que a Comunicação Social, sempre saudosa do glorioso episódio do “Watergate”, já apelidou de “Familygate".

Com pingue-pongue eleitoralista ou sem, a dimensão e escala do nepotismo no PS ultrapassa o imaginável, e ultrapassa muito a simples acusação de “aristocracia/oligárquica”, para atingir o perfil omnipresente de “Dono Disto Tudo” da democracia portuguesa, ou seja, de grande “gestor” das conquistas de Abril.

Não que este fenómeno seja exclusivo do PS, pois é uma tendência verificada em toda a classe política, mas é o PS que agora é Governo e pretende ser, de novo, Governo.

Mas isto em relação ao tema deste artigo é secundário, e apenas muito importante pelo facto de que em plena campanha eleitoral para o Parlamento Europeu as mentes andam ocupadas por estas fragilidades da democracia representativa, precisamente num momento em que esta é ameaçada por uma inédita crise de credibilidade e de confiança, numa Europa onde o comum cidadão se sente ameaçado e manipulado por uma globalização galopante, que o deixa desprotegido, enfraquecendo progressivamente o seu direito ao trabalho e à habitação. Sentindo-se, ele, traído pela esquerda, esta também globalizada, que substituiu a sua tradicional moral e as suas preocupações sociais pela questões “fracturantes” e colocou todo o seu engagement nas questões migratórias e o multiculturalismo.

Estes sentimentos são também dirigidos à direita que se empenhou numa Europa Federalista, custe o que custar, guiada por uma outra globalização: a do trânsito livre do trabalho e do capital, inspirado pelos dogmas do neoliberalismo.

Pôs-se assim de parte o equilíbrio original do mercado comum que defendia o princípio da unidade europeia baseada na premissa e condição da diversidade cultural e nacional entre os Estados-membros.

As presentes tensões vindas de radicalismos populistas que apregoam a democracia directa e que pretendem penetrar em massa no Parlamento a fim de o erodir e minar por dentro, caos bem ilustrado no ensaio geral do “Brexit”, vai obrigar a UE a uma reforma de elites, linha de conduta e objectivos.

Ora, é neste contexto que Portugal é ameaçado na sua existência, não de forma temporária, mas definitiva, pelas alterações do clima, que estão a tornar os ciclos de seca cada vez mais frequentes, e segundo os avisos dos peritos, com tendência a tornarem-se permanentes, quando afirmam que a Península Ibérica está a evoluir para um padrão de clima do Norte de África.

Este mesmo diário tem dedicado grande atenção à questão do Tejo, e da nossa dependência total da boa ou má vontade de Espanha que controla grande parte da água e dos caudais em Portugal, através da “gestão” das suas barragens e necessidades de regadio através de transvases massivos da indispensável e preciosa água.

É, portanto, surpreendente que nenhum político em campanha tenha ainda referido esta questão de vida ou de morte.

Paulo Rangel teve o desplante surpreendente de afirmar categoricamente, numa conferência organizada pelo Jornal de Notícias na Casa da Música, no Porto: "Há-de chegar um dia em que não vai haver Portugal.” Preocupação, profecia ou ilustração de uma campanha para as eleições europeias? Perdoai-lhe, senhor...


Historiador de Arquitectura

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