TRANSPORTES
CHEIOS, ATRASADOS E VELHOS. PASSE NOVO VEIO MOSTRAR QUE É PRECISO MUDAR TUDO
09/11/2019
No Campo Grande,
ao fim da tarde, as filas encaracolam para os autocarros que seguem para Mafra,
Ericeira ou Venda do Pinheiro. Em Sete Rios, os passageiros da linha de Sintra
já esgotaram a compreensão para os incómodos causados e os que seguem para a
Margem Sul queixam-se da sensação sardinha em lata, às horas de ponta. Em seis
meses, o passe Navegante trouxe mais 150 mil utentes aos transportes públicos
da Área Metropolitana de Lisboa. E isso foi bom. Mas também foi mau.
Texto de Catarina
Pires | Fotografias de Filipa Bernardo/Global Imagens
Às seis e meia da
tarde, no terminal de autocarros do Campo Grande, não se percebe muito bem onde
começa uma fila e acaba outra. O retângulo com as paragens de onde saem os
autocarros para a Ericeira, Mafra ou a Venda do Pinheiro está cheio e tem sido
assim todos os dias desde o início de setembro.
Há rostos
fechados, que não querem conversa, mas o de Sandra Resende, que espera, com o
filho, Francisco, e a mãe, Maria Cardoso, a carreira que segue para a Venda do
Pinheiro, tem um sorriso que acolhe.
.
Há cerca de um
ano, adotou o transporte público e há seis meses rejubilou com o Navegante Metropolitano.
“Sou a verdadeira beneficiária do novo passe. Poupo mais de cem euros por mês.
O meu filho não paga, porque tem 12 anos, e a minha mãe paga menos porque tem
mais de 65. É uma maravilha.” Nota uma muito maior afluência, quer na Venda do
Pinheiro quer aqui, mas elogia o esforço da Mafrense em tentar dar resposta ao
caos instalado.
“Há muita gente
que vem das terras limítrofes e deixa o carro na Venda do Pinheiro, para
apanhar a camioneta. Nem sempre há lugar para todos. Mas está lá o senhor Ramiro,
que quando vê que fica gente apeada solicita desdobramentos. Só que nem sempre
é possível. No início do mês foi o caos. Até houve quem desistisse e saísse da
fila para vir de carro e desse boleia a outros na mesma situação. Agora o caos
está mais controlado“, conta Sandra, que trabalha no Hospital de São José e tem
o filho a estudar em Lisboa. Antes do Navegante, este cenário não era sequer
imaginável. O passe custava mais de cem euros e muitos preferiam o carro para
as suas deslocações para o trabalho.
Lília Gomes
aderiu este mês ao passe Navegante. Desde os tempos da escola que não andava de
transportes públicos.
Era o caso de
Lília Gomes, estreante neste mês nos transportes públicos, que não utilizava
desde os tempos da escola. Vive na Ericeira, trabalha em Lisboa e foi quando
começou a fazer contas à vida que decidiu experimentar o autocarro. “A poupança
de cerca de 200 euros mensais está a saber-me bem.”
Poder descansar
ou ler durante o trajeto, impossível quando se está a guiar, também. E por enquanto
compensam os tempos de espera e a confusão, sobretudo no regresso a casa. “À
saída da Ericeira, apanho o autocarro na última paragem antes da autoestrada e
vou sempre uns 15 minutos antes para ter lugar. Mas à ida para lá é mais
caótico. Por exemplo, este autocarro parte daqui a dez minutos e não sei se
consigo entrar, nem sei se virá um segundo para fazer o mesmo horário.”
No terminal do
Campo Grande acumulam-se as filas para os autocarros da Mafrense com destino à
Ericeira, Mafra e Venda do Pinheiro, entre outras paragens.
Nuno do Carmo,
diretor da Mafrense [Grupo Barraqueiro], confirma que a adesão foi
avassaladora. “Na linha da Ericeira, o aumento de passageiros foi na ordem dos
100%, nas de Mafra, Venda do Pinheiro e Malveira foi entre 50% e 60%.” Não tem
sido fácil dar resposta, porque a oferta não estava dimensionada para esta
procura, mas “com o esforço de todos os motoristas, que têm trabalhado mais
para fazer os desdobramentos, e a deslocação de autocarros da área comercial
para o serviço público, temos conseguido responder”, diz.
“Mas são soluções
de recurso. A verdadeira solução passará por mais horários adaptados às
necessidades das pessoas. Estamos a trabalhar com a Câmara Municipal de Mafra e
a Área Metropolitana de Lisboa (AML) para isso. O problema é que isso implica
mais autocarros e mais motoristas. Os autocarros compram-se e é uma questão de
tempo, mas motoristas é muito difícil encontrar, porque o acesso à profissão é
complicado.”
São várias as
empresas de transportes que se queixam da dificuldade em contratar motoristas.
As exigências – nomeadamente, a de só a partir dos 24 anos poder tirar-se a
carta – e as especificidades da formação afastam os candidatos, mas o trabalho
pesado e mal remunerado também não ajudará a atrair gente para a profissão.
Metro em Loures,
já!
O metro em Loures
poderia contribuir para escoar o fluxo cada vez maior de gente que escolheu o
oeste para viver e trabalha em Lisboa.
Bernardino Soares
tinha acabado de inaugurar, com Fernando Medina, a extensão do 708 da Carris
para Sacavém quando falou com o DN. O metro para Loures é uma reivindicação
antiga do presidente da autarquia eleito pelo PCP, que afirma que é este o
momento de tomar decisões e estabelecer como prioridade a criação de
infraestruturas que façam chegar o transporte pesado [metro e/ou comboio] a
Loures.
“O passe
intermodal foi uma medida essencial, na qual nos empenhámos muito. Além da
poupança significativa para as famílias, permitiu acabar com situações em que
as pessoas, por exemplo, tinham de ter vários passes. Estamos a trabalhar para
melhorar a rede rodoviária e esperamos um aumento da oferta de carreiras e
horários no próximo ano, mas para uma melhoria completa da mobilidade é
necessário trazer o metro para Loures.”
“É hoje claro
para todos que o metro em Loures é essencial para dar coerência à rede de
transportes da AML. Aliviará Lisboa dos carros, aliviará a pressão sobre o
metro de Odivelas e facilitará a mobilidade de quem vem do oeste”, diz
Bernardino Soares.
A apoiá-lo nesta
reivindicação tem os presidentes das câmaras municipais de Mafra e de Odivelas.
“É hoje claro para todos que este investimento é essencial para dar coerência à
rede de transportes de Área Metropolitana de Lisboa. Terá impacto não só em
Loures como nos concelhos à volta, nomeadamente os do oeste. Aliviará Lisboa
dos carros, aliviará a pressão sobre o metro de Odivelas e facilitará a
mobilidade de quem vem do oeste.”
Bernardino Soares
lembra que esta é uma decisão que cabe ao governo e não à AML e lembra também
que o metro para Loures foi anunciado em 2009, por um governo PS. “O que
pedimos é que se cumpra o que foi dado como certo há dez anos. Serão precisas
verbas do próximo Quadro Comunitário de Apoio e este investimento no
ferro-carril em Loures deve ser considerado prioritário, no âmbito da luta
contra as alterações climáticas e de uma verdadeira mobilidade para as
populações destes concelhos”, diz.
Sardinha em lata
No debate sobre o
programa do governo, António Costa anunciou o investimento no setor dos
transportes. Dez novos barcos para a Transtejo, 22 novos comboios para a CP, 14
novas composições para o Metro de Lisboa e 700 novos autocarros para o país. A
AML está em fase de conclusão do concurso internacional para concessão de
transporte rodoviária que envolve verbas de mais de mil milhões de euros e
prevê oferecer mais transporte rodoviário nos dias úteis, em horas de ponta e
fora das horas de ponta, ao fim de semana, à noite, significando um acréscimo de
oferta superior a 40% (leia também a entrevista a Carlos Humberto, primeiro
secretário da AML).
Idalina Batista
trabalha em Lisboa e vive no Cacém. Sai às sete da manhã e regressa às seis da
tarde. O fim do dia é sempre mais complicado.
Espera-se uma revolução,
mas enquanto ela não chega, na estação de Sete Rios, há uma voz que se repete –
“pedimos a vossa compreensão pelos incómodos causados” – de cada vez que se
anuncia um atraso ou um comboio que foi suprimido.
Idalina Batista
mora no Cacém e trabalha em Lisboa, no Centro Comercial Colombo. Todos os dias
apanha o comboio das 07.03 ou 07.19 para Sete Rios e o das 18.30 para o Cacém.
“Para cá, há dias em que vem muito cheio, mas não é dramático. Para lá é que é
pior, há muitos atrasos. Às vezes é difícil entrar, de tanta gente. Mas eu
forço, entro mesmo assim, tenho o meu filho em casa à espera.” E lá vai ela,
sem tempo para mais.
Um senhor de Vale
Abraão, que não teve tempo de dizer o nome, não tem passe, só nesta semana é
que teve de recorrer ao comboio para vir para Lisboa e queixa-se da
sobrelotação e dos atrasos constantes. “Não entro quando o comboio está lotado,
prefiro esperar pelo próximo, mas isto é um pesadelo, tão mau como o IC19”,
diz.
“A situação nas
horas de ponta é insuportável. As condições são insalubres. Os atrasos são
constantes. Criam-se situações de conflitualidade entre passageiros. Há uma
degradação cada vez maior no serviço. E a CP nem justifica nem toma medidas”,
diz Vasco Ramos, da Comissão de Utentes da Linha de Sintra.
Vasco Ramos, da
Comissão de Utentes da Linha de Sintra, confirma e não é ao passe Navegante que
aponta responsabilidades. “O passe foi uma medida excelente, mas o acréscimo
significativo de passageiros que trouxe tornou mais evidentes os problemas que
já existiam. Só em outubro foram suprimidos cerca de cem comboios da Linha de
Sintra. A situação nas horas de ponta é insuportável. As condições são
insalubres. Os atrasos são constantes. Criam-se situações de conflitualidade
entre passageiros. Há uma degradação cada vez maior no serviço. E a CP nem
justifica nem toma medidas. É o silêncio.” Sim, é o silêncio. Nenhuma das
questões enviadas para a empresa mereceu resposta.
A Fertagus foi
uma das operadoras com maior aumento de utilizadores desde a criação do novo
passe. Apesar de ter aumentado a lotação e criado novos horários, as horas de
ponta continuam a encher.
Do outro lado da
linha, a situação não é tão grave, apesar de a Fertagus – responsável pela
ligação ferroviária entre Setúbal e Lisboa – ser dos operadores que mais
sentiram o efeito Navegante. A procura subiu exponencialmente, pela rapidez,
pelo conforto, pela fiabilidade e pela considerável descida dos preços. No
entanto, às horas de ponta, sobretudo nas estações mais próximas da Ponte 25 de
Abril, quer de um lado quer de outro, os comboios enchem e há quem prefira não
entrar e esperar pelo próximo.
Sandra Bacalhau
faz todos os dias (úteis) o percurso entre p Pragal e Sete Rios. Em dez minutos
está em Lisboa. Um luxo de que desfruta há 15 anos. Moradora em Porto Brandão,
deixa o carro no Monte de Caparica, onde apanha o Metro Sul do Tejo para o
Pragal. Até há seis meses, o passe da Fertagus mais o do MTS somavam 53 euros e
meio. Poupa 13 euros e meio, mas passou a vir em modo, “no meu caso, bacalhau
em lata”.
Sandra Bacalhau é
utente da Fertagus há 15 anos e nos últimos seis meses passou a viajar em modo
sardinha em lata.
“Há muito mais
gente, isso é óbvio, de manhã venho às 08.29 ou 08.39 e à tarde vou no das
18.09. Quer para lá quer para cá, os comboios vão sempre cheios. E a ideia de
tirar bancos não adiantou de muito. Por exemplo, este das seis ainda é de
quatro carruagens. Já devia ser de oito.” A Fertagus tem, desde 16 de setembro,
mais comboios duplos (oito carruagens) e mais horários. Continua cheia à hora
de ponta.
Mobilidade a
sério é…
Para António
Freitas, da Comissão de Utentes dos Transportes do Seixal, a solução tem de ser
integrada. Se o comboio está saturado e não pode aumentar horários ou
carruagens, há que apostar nos barcos ou nos autocarros, assim como há que
incluir os estacionamentos no passe intermodal e encará-los também como
operador, porque são dissuasores de levar o carro para Lisboa.
“O passe
Navegante [Metropolitano, Municipal, +65 e 12 anos e, mais recentemente,
Família] foi uma medida de desenvolvimento da mobilidade muito positiva porque,
além de tudo o resto, mostrou que, com os incentivos certos, as pessoas estão
dispostas a mudar comportamentos e hábitos de vida”, diz.
Notando o facto
de que os utentes deixaram de estar presos a um operador, transporte ou
trajeto, António Freitas defende que se trata agora de criar verdadeiras
alternativas de mobilidade, que sirvam as necessidades dos utentes e não
dependam dos interesses dos operadores.
“Há que repensar
os horários noturnos e de fim de semana – ínfimos entre o Seixal e Lisboa, por
exemplo -, as ligações, os percursos, os intervalos de espera e o tipo de
oferta. Se a ferrovia está esgotada, invista-se nos barcos”
Os barcos da
Transtejo estão a precisar de ser renovados. Equipamentos degradados, avarias
frequentes, supressão de carreiras, insuficiência de horários, que nas horas de
ponta, quer ao fim de semana e à noite são algumas das queixas dos utentes do
Seixal, Montijo e Cacilhas.
“Não falo apenas
nas ligações para Lisboa, mas mesmo dentro dos concelhos. No Seixal, por
exemplo, há dificuldade de chegar de Corroios à sede do município e a serviços
essenciais como o centro de saúde. É preciso pensar tudo isto de uma forma
integrada e tendo em conta as necessidades das populações. Há que repensar os
horários noturnos e de fim de semana – que são ínfimos entre o Seixal ou o
Montijo e Lisboa, chega a ser desconcertante -, as ligações, os percursos, os
intervalos de espera e o tipo de oferta. Se a ferrovia está esgotada,
invista-se nos barcos, que são uma ligação privilegiada entre margens”, diz
António Freitas, advogando que esta medida devia ser alargada a todo o país.
“A rede de transportes
que temos não está adequada à mobilidade que queremos, ao nível dos países
europeus mais desenvolvidos, e para a qual o passe intermodal abriu as portas.”
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