OPINIÃO
Sócrates
transformou-se em anedota – e isso é mau
Há dezenas de
pessoas em posições de destaque que estão mortinhas por que Sócrates seja
reduzido a uma gargalhada, de preferência bem alta, de forma a abafar a miséria
das suas vergonhosas cumplicidades.
João Miguel
Tavares
7 de Novembro de
2019, 5:55
Conhecem aquela
do Sócrates que entra numa churrascaria? Encomenda dois frangos, mas depois vê
quatro codornizes e pede para as levar em vez dos frangos. Quando já está de
saída, o empregado informa José Sócrates de que se esqueceu de pagar as
codornizes. Sócrates responde: “Eu não comprei as codornizes. Troquei-as pelos
frangos.” Diz o empregado: “Certo, mas também não pagou os frangos.” Responde
José Sócrates, indignadíssimo: “É verdade, mas também não os estou a levar,
pois não?”
Na semana passada
recebi esta anedota por vários meios: redes sociais, correio electrónico, SMS.
Percebe-se que José Sócrates perdeu a guerra contra aquilo a que chamou uma
“acusação monstruosa e injusta” no momento em que o seu carácter passou a ser
retratado através de anedotas mais ou menos criativas, a saltar de caixa de
mail em caixa de mail. Os relatos do seu mais recente interrogatório, onde
procurou explicar os monstruosos gastos ao longo de toda a vida, e a forma como
os conseguiu financiar, têm muito potencial para dar origem a mais quatro ou
cinco chistes.
Só nos últimos
dias, descobrimos a história de um cofre misterioso (que Sócrates diz ter agora
em sua casa), no qual a mãe aparentemente guardava uma herança de cinco milhões
de euros (de que não há prova nem rasto), entregando envelopes com dez mil
euros de cada vez que o filho ia de férias. É pena o juiz não lhe ter
perguntado acerca da dimensão do cofre, porque um milhão de notas de mil
escudos, ou até 200 mil notas de cinco contos, não cabem num cofre – precisam
pelo menos de uma arrecadação. Descobrimos também justificações extraordinárias
para o modo de vida de um homem que assume não ter dinheiro para pagar as suas
despesas, mas que classifica uma ida à Suíça para fazer ski durante a época de
Natal como “gastos normais da classe média”. Descobrimos ainda que quando
estava em Paris – num tempo em que, segundo o próprio, 12.500 euros mensais não
lhe permitiam fazer face aos seus gastos (Sócrates disse ao juiz Ivo Rosa que
despendia, em média, 22 mil euros por mês; a acusação diz que eram 30 mil) –
decidiu um dia comprar uma secretária (refiro-me ao móvel) por sete mil euros,
porque ela “estava a namorá-lo”.
Tudo isto é tão
absurdo, e nalguns casos tão contraditório com as várias explicações que foi
dando ao longo dos anos, que não admira que José Sócrates faça hoje parte do
anedotário nacional. O que podemos nós fazer perante tanta justificação
grosseira e tão grande lata se não gozar com a sua cara, enquanto ele continua
a gozar com a nossa? Percebo e comungo desse sentimento. Contudo, transformar
Sócrates em anedota, por mais que nos apeteça, tem vários perigos. Em
particular, este: empurrar para o domínio da comédia aquilo que é da ordem da
tragédia – uma tragédia que só foi possível porque muita gente ajudou Sócrates
a montá-la.
José Sócrates não
é, nem nunca foi, um one man show. Há dezenas de pessoas em posições de
destaque que continuam mudas e recatadas, apesar de terem sustentado Sócrates
durante anos a fio. Talvez não soubessem do cofre onde cresciam envelopes,
fotocópias e livros do Duda – mas tinham a obrigação de ver o dinheiro vivo, o
luxo, as mentiras e a manipulação. Essas pessoas estão mortinhas por que
Sócrates seja reduzido a uma gargalhada, de preferência bem alta, de forma a abafar
a miséria das suas vergonhosas cumplicidades. Se permitirmos que isso aconteça,
a anedota não é José Sócrates – a anedota somos nós.
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