Quão gago pode
ser um deputado?
Joacine não
merece que eu tenha pena dela, nem que adopte um registo paternalista para
silenciar aquilo que é um manifesto desastre.
João Miguel
Tavares
2 de Novembro de
2019, 6:18
A resposta é:
pode ser tão gago quanto Joacine Katar Moreira, desde que não seja o único
deputado do seu partido. A palavra “parlamento” vem do francês “parler”.
Significa falar ou discursar. Não há democracia sem debate, e não é possível
debater num Parlamento sem um mínimo de fluência discursiva. Se Joacine
pertencesse a um grupo parlamentar haveria sempre outros deputados disponíveis
para discursar em plenário, e ela poderia dedicar-se a escrever propostas de
lei, definir orientações estratégicas ou preparar os discursos dos outros. Não
existindo mais ninguém, as suas intervenções na Assembleia da República são
triplamente absurdas: para ela, que deve sofrer horrores com aquela exposição;
para os restantes deputados, que nem sabem para onde olhar quando ela fala; e
para jornalistas e eleitores, que não percebem nada do que ela diz.
Escrever isto é
duro e é cruel. Resolvi fazê-lo por duas razões. Em primeiro lugar, porque se
não o fizesse estaria a ser profundamente complacente com uma mulher que, pelo
seu percurso de vida, pelas suas capacidades e pelo seu esforço ganhou o
direito a ser tratada com a máxima exigência e honestidade intelectual. Joacine
não merece que eu tenha pena dela, nem que adopte um registo paternalista para
silenciar aquilo que é um manifesto desastre. A deputada do Livre demorou 60
segundos a fazer as saudações iniciais (“senhor presidente, senhor
primeiro-ministro, membros do executivo e senhores e senhoras deputadas”) e
gastou quatro minutos e meio com uma intervenção de meia-dúzia de frases. Dizer
isto é humanamente desagradável; não dizer isto é politicamente inaceitável. Se
queremos um país mais exigente e um Parlamento mais qualificado, temos de
começar por admitir que os princípios da inclusão e da tolerância não
significam que tudo passe a ser magicamente possível, só porque esse é o nosso
mais profundo desejo.
Joacine disse uma
excelente frase quando foi ao programa de Ricardo Araújo Pereira: “Eu gaguejo
quando falo, não quando penso. O perigo na Assembleia é os indivíduos que
gaguejam quando pensam.” Mas mesmo para esta formulação ter força retórica, ela
precisa de ter um mínimo de fluência quando é proferida – coisa de que Joacine
foi capaz na televisão, mas não no Parlamento. Claro que se pode argumentar que
ela estava nervosa na estreia, e que em futuras intervenções talvez a sua
gaguez diminua para níveis aceitáveis, como já aconteceu noutras ocasiões.
Espero sinceramente que isso aconteça, ou que o próprio regimento da Assembleia
da República passe a permitir que ela tenha um porta-voz – tudo, menos fingir
que o que se passou é razoável, porque isso seria compactuar com uma fraude
intelectual autoimposta, e com uma actividade política desprovida de qualquer
racionalidade, em nome dos bons sentimentos.
Essa é a segunda
razão para este artigo. Joacine Katar Moreira tem sido apresentada como mulher,
negra e gaga, como se o seu corpo fosse apenas uma urna de desvantagens sociais
e existenciais, no qual fomos convidados a depositar o voto em nome de um
Portugal mais justo. Esta redução do deputado a um símbolo crístico limita o
eleitorado ao papel de pietà: não há fala nem debate, porque basta o silêncio
contemplativo perante uma terrível injustiça. Aquilo que as pessoas defendem e
argumentam deixa de importar. As chagas do corpo são o programa político. Este
é um tipo de política que mata a boa política, desde sempre feita de debate,
confronto, compromisso e negociação.
Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário