OPINIÃO
Peço desculpa:
Joacine e o Livre discordam em quê?
A minha tese é
esta: toda a política identitária contém dentro de si o germe da sua
autodestruição, porque as microcausas são contrárias ao espírito da boa
política, que é uma arte de procura de entendimentos.
João Miguel Tavares
28 de Novembro de
2019, 6:15
A pergunta do
título é muito sincera. Que a deputada Joacine Katar Moreira e os dirigentes do
Livre entraram em choque frontal, isso é evidente. Que ela disse que não
conseguiu contactar o Grupo de Contacto, que o Grupo de Contacto disse que não
tinha sido contactado; que uns disseram que não era para falar, que os outros
disseram que já tinham falado; que se montou um tremendo escarcéu com acusações
mútuas, tudo isso é público há uma semana, para grande alegria dos consumidores
de redes sociais. Mas a resposta à minha pergunta continua a faltar: em termos
substanciais, Joacine e o Livre discordam em quê, exactamente? Por que raio é
que eles discutem tanto, todos os dias?
Notem que todo
este caso começou (alegadamente) com a abstenção da deputada do Livre a um voto
de condenação proposto pelo PCP devido à “nova agressão israelita a Gaza”. A
abstenção de Joacine, ao que tudo indica, foi um acto duplamente falhado. O
Livre achava que ela deveria ter votado favoravelmente (e não percebeu por que
não votou), e Joacine também achava que deveria ter votado favoravelmente (mas
não percebeu que o Livre queria). Ou seja, apesar de ter existido um equívoco
embaraçoso, em substância não há desentendimento: Joacine queria votar a favor
dessa condenação, o Livre queria votar a favor dessa condenação, e ambos estão
de acordo. Repito: ambos estão de acordo quanto à essência da questão. Não há
qualquer divergência substancial; houve apenas um erro de forma numa matéria
sem nenhum impacto prático, porque não me parece que o povo da Palestina vá
verter lágrimas para o deserto durante quarenta dias só porque um partido
português com 1,09% dos votos nas últimas legislativas se absteve numa votação
que lhe dizia respeito.
Então qual é o problema?
Como é que começa um tufão deste tamanho dentro de um cálice de vinho do Porto?
A minha tese é esta: toda a política identitária contém dentro de si o germe da
sua autodestruição, porque as microcausas são contrárias ao espírito da boa
política, que é uma arte de procura de entendimentos. Ora, nas chamadas
“políticas de identidade”, o caminho para o bem comum é trocado por uma
proliferação de azinhagas identitárias onde não cabem mais do que dois ou três
ao mesmo tempo. A primeira vítima é a cultura de compromisso, porque num mundo
microfragmentado cada cedência é uma traição. Isso origina a total ausência de
bom senso e a criação de um exército de inimigos onde antes havia aliados (eu,
por exemplo, que há dez anos era um liberal progressista, hoje já passo por
racista homofóbico). Num piscar de olhos estamos em plena aldeia do Astérix,
naquele preciso momento em que o peixeiro se zanga com o ferreiro e toda a
gente começa à bulha, sem que se perceba porquê.
Nos últimos
tempos, vi Katar Moreira não querer que a sua gaguez fosse tema, vi um assessor
de saias transformado em estrela do Parlamento, e vi um GNR destacado para os
proteger de perguntas dos jornalistas, com esta justificação do valet de
chambre à Rádio Observador: “Parece-me ocioso explicar que não há propriamente
uma normatividade daquilo que se faz. Há culturas de trabalho, e a cultura de
trabalho da senhora deputada é uma cultura de descanso no sentido intelectual
do termo, ou seja, sem interrupções.” É bem verdade que existe uma cultura de
descanso no sentido intelectual do termo, mas num ponto há que discordar de
Rafael Esteves Martins: convinha que essa cultura fosse interrompida, e
depressa.
Sem comentários:
Enviar um comentário