quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Peço desculpa: Joacine e o Livre discordam em quê?



OPINIÃO
Peço desculpa: Joacine e o Livre discordam em quê?

A minha tese é esta: toda a política identitária contém dentro de si o germe da sua autodestruição, porque as microcausas são contrárias ao espírito da boa política, que é uma arte de procura de entendimentos.

João Miguel Tavares
28 de Novembro de 2019, 6:15

A pergunta do título é muito sincera. Que a deputada Joacine Katar Moreira e os dirigentes do Livre entraram em choque frontal, isso é evidente. Que ela disse que não conseguiu contactar o Grupo de Contacto, que o Grupo de Contacto disse que não tinha sido contactado; que uns disseram que não era para falar, que os outros disseram que já tinham falado; que se montou um tremendo escarcéu com acusações mútuas, tudo isso é público há uma semana, para grande alegria dos consumidores de redes sociais. Mas a resposta à minha pergunta continua a faltar: em termos substanciais, Joacine e o Livre discordam em quê, exactamente? Por que raio é que eles discutem tanto, todos os dias?

Notem que todo este caso começou (alegadamente) com a abstenção da deputada do Livre a um voto de condenação proposto pelo PCP devido à “nova agressão israelita a Gaza”. A abstenção de Joacine, ao que tudo indica, foi um acto duplamente falhado. O Livre achava que ela deveria ter votado favoravelmente (e não percebeu por que não votou), e Joacine também achava que deveria ter votado favoravelmente (mas não percebeu que o Livre queria). Ou seja, apesar de ter existido um equívoco embaraçoso, em substância não há desentendimento: Joacine queria votar a favor dessa condenação, o Livre queria votar a favor dessa condenação, e ambos estão de acordo. Repito: ambos estão de acordo quanto à essência da questão. Não há qualquer divergência substancial; houve apenas um erro de forma numa matéria sem nenhum impacto prático, porque não me parece que o povo da Palestina vá verter lágrimas para o deserto durante quarenta dias só porque um partido português com 1,09% dos votos nas últimas legislativas se absteve numa votação que lhe dizia respeito.

Então qual é o problema? Como é que começa um tufão deste tamanho dentro de um cálice de vinho do Porto? A minha tese é esta: toda a política identitária contém dentro de si o germe da sua autodestruição, porque as microcausas são contrárias ao espírito da boa política, que é uma arte de procura de entendimentos. Ora, nas chamadas “políticas de identidade”, o caminho para o bem comum é trocado por uma proliferação de azinhagas identitárias onde não cabem mais do que dois ou três ao mesmo tempo. A primeira vítima é a cultura de compromisso, porque num mundo microfragmentado cada cedência é uma traição. Isso origina a total ausência de bom senso e a criação de um exército de inimigos onde antes havia aliados (eu, por exemplo, que há dez anos era um liberal progressista, hoje já passo por racista homofóbico). Num piscar de olhos estamos em plena aldeia do Astérix, naquele preciso momento em que o peixeiro se zanga com o ferreiro e toda a gente começa à bulha, sem que se perceba porquê.

Nos últimos tempos, vi Katar Moreira não querer que a sua gaguez fosse tema, vi um assessor de saias transformado em estrela do Parlamento, e vi um GNR destacado para os proteger de perguntas dos jornalistas, com esta justificação do valet de chambre à Rádio Observador: “Parece-me ocioso explicar que não há propriamente uma normatividade daquilo que se faz. Há culturas de trabalho, e a cultura de trabalho da senhora deputada é uma cultura de descanso no sentido intelectual do termo, ou seja, sem interrupções.” É bem verdade que existe uma cultura de descanso no sentido intelectual do termo, mas num ponto há que discordar de Rafael Esteves Martins: convinha que essa cultura fosse interrompida, e depressa.

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