OPINIÃO
Proximidade
democrática
Os grandes
demagogos sabem que é a proximidade que lhes traz vantagens. São excelentes a
explorar a insatisfação das promessas não cumpridas pela democracia e pelos
partidos clássicos.
António Barreto
24 de Novembro de
2019, 8:24
A ideia de que a
democracia é um antídoto eficaz contra as aventuras antidemocráticas, sejam
elas populistas, fascistas ou comunistas, tem-se revelado infelizmente pouco
segura e até, por vezes, errada. Ou antes, a democracia é insuficiente para
assegurar a democracia e pode mesmo, em processo demagógico, transformar-se em
instrumento de ratificação de déspotas. Aliás, os verdadeiros ditadores deste
mundo quiseram sempre, um dia, levar a cabo processos eleitorais de fantasia e
nunca lhes faltou atrevimento para anunciar vitórias a 90% ou 95%. Todos os
ditadores comunistas mandaram fabricar eleições. E Franco e Salazar também não
resistiram às tentações eleitorais.
Mas o problema
não é só esse. As farsas eleitorais para confirmar os ditadores são de tal modo
grosseiras que já não enganam ninguém. A questão mais delicada é a das eleições
genuínas, por vezes até honestas, de que resultam ditadores, psicopatas
narcisistas e déspotas demagogos imprevisíveis. Na verdade, alguns dos mais ameaçadores
dirigentes populistas e não democráticos ou mesmo anti-democráticos
contemporâneos foram eleitos pelos cidadãos. Uns tantos foram confirmados e
reeleitos, até em processos eleitorais vagamente supervisionados. Noriega,
Chavez, Morales, Ortega e Maduro foram eleitos. Trump e Putin eleitos foram.
Orbán, Erdogan, Salvini e Kascinscki devem à democracia eleitoral os seus
cargos. Bolsonaro e Duterte cumpriram, para ascender à presidência dos seus
países, as regras dos processos eleitorais. E não é muito difícil pensar em
chefes políticos que, sem serem ditadores, se aproximaram muito de demagogos
oportunistas, a quem a democracia nada deve, mas que pela democracia foram
ungidos para o exercício do seu espalhafatoso poder político: Fujimori,
Berlusconi, Sócrates e Lula, tão diferentes, são bons exemplos.
É verdade que há
exemplos de derrotas de populismos e de ditaduras às mãos dos democratas e
através de eleições. O caso português, o do 25 de Abril e da Revolução que se
seguiu, é o melhor exemplo. Vencidos no Estado, nas empresas e nos sindicatos,
nas instituições e nas autarquias, nas forças militares e nas polícias, os
democratas confiaram nas eleições e acertaram: revolucionários, civis e
militares, comunistas e outros aventureiros foram derrotados nas eleições e de
tal modo destroçados que nunca mais voltaram, quarenta anos depois, a
constituir verdadeira ameaça às liberdades.
Mais do que
nunca, vivemos tempos difíceis para as liberdades e a democracia. Habituámo-nos
a recear os despotismos e as ditaduras vindos de fora da democracia, por vias
da conquista ou graças ao declínio democrático, como dizia Ignazio Silone (“As
democracias caem por dentro…”). Os grandes ditadores que tinham conquistado o
poder fizeram-no em geral por assalto. O que nos deixava tranquilos, se assim
se pode dizer. Bastava proteger a democracia dos seus inimigos externos. Agora
que percebemos que as democracias também produzem os seus ditadores, déspotas,
lideres irracionais, aldrabões e predadores, a democracia deixou de ser
suficiente.
Também se tem
pensado que a “proximidade” é uma verdadeira panaceia. Saúde, educação,
polícia, segurança, justiça e política: de tudo, de todas as áreas da
governação e da administração se diz que a “proximidade” é uma virtude, um
trunfo democrático, uma garantia das liberdades e uma certeza da humanização.
Nada mais errado. A “proximidade”, com todas as suas virtudes, é quase regra
para o populismo e para os déspotas que não acreditam nas instituições. O
populismo irascível, quase violento, geralmente impaciente, não acompanha a
distância, mas sim a proximidade. A proximidade cria familiaridade e esta
permite todas as formas de tratamento, todos os atrevimentos. Castro e Péron
sabiam bem ao que andavam.
Os grandes
demagogos sabem que é a proximidade que lhes traz vantagens. São excelentes a
explorar a insatisfação das promessas não cumpridas pela democracia e pelos
partidos clássicos. São também excelentes a fazer as suas próprias promessas,
sobretudo as impossíveis de cumprir. Procuram sempre a proximidade, o contacto
directo com as massas, as pessoas, o povo, porque é assim que se dá o salto por
cima das instituições. Os demagogos são excelentes nas manifestações sem
partido nem sindicato, nos movimentos sem estrutura nem organização. Até porque
sabem que esses movimentos e essas manifestações têm origens, têm causas: o
falhanço da democracia, os privilégios da democracia, o não cumprimento de
promessas e a mentira das democracias.
A proximidade é
uma ilusão perigosa. Em Portugal, os políticos mais próximos do povo foram
Vasco Gonçalves, Sá Carneiro, Mário Soares, José Sócrates e António Costa.
Pouco ou nada de comum entre eles. E não foi com certeza a proximidade que lhes
trouxe êxitos e garantiu justeza aos seus governos. Não é evidente que Costa e
os seus ministros são os políticos mais próximos do povo, que mais
frequentemente aparecem nos comícios de sexta-feira, nas inaugurações de sábado
e nas sessões de esclarecimento de domingo? Não é cristalinamente exacto que
Marcelo é de longe o Presidente mais próximo do povo e dos eleitores, da
televisão, dos telejornais e dos corações dos portugueses?
A proximidade é
efémera, falsa, fictícia e ilusória. A transparência é mítica, aparente e
falaciosa. A política que está em crise é a política demagógica e mentirosa. A
que promete e negoceia tudo. A que dá tudo até ao endividamento. A que
beneficia quem chega primeiro, quem tem amigos do sindicato, na confederação ou
no partido. A que privilegia quem dá mais votos, os funcionários públicos ou os
pensionistas, por exemplo. A que traça bissectrizes entre os lóbis. A que se
limita a ser o lugar geométrico dos interesses e das corporações. A que se
desdiz com naturalidade e talento. A que mente com atrevimento e encanto. A que
deixa arrastar uma justiça incapaz, mas inaugura auto-estradas. A que permite o
declínio do serviço nacional de saúde, mas subsidia a Web e os jogos digitais.
A que deixa aumentar a desigualdade no sistema universitário e recompensa os
ricos. A que procura subsidiar os mais pobres, mas não se importa com o
demérito nem a falta de esforço. A que exige frugalidade dos trabalhadores do
sector privado, mas privilegia os funcionários públicos.
Salvar a
democracia obriga a ser muito exigente com a democracia. Preservar a democracia
obriga-nos a ser impiedosos, não com os demagogos, o que é fácil, não com os
populistas, o que é simples, mas com os democratas.
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