Morador do Carmo
combate músicos de rua com salsa em altos berros
Residente
fartou-se da “passividade das autoridades” perante ruído excessivo e prolongado
e tomou acção por conta própria. Músicos e comerciantes lamentam a situação,
que se arrasta há alguns meses. Grupo de moradores quer levar caderno de
encargos à câmara e à junta.
João Pedro Pincha
João Pedro Pincha
24 de Outubro de 2019, 20:19
Cansado de ter
barulho a entrar-lhe pela casa de manhã à noite, um morador do Largo do Carmo,
em Lisboa, concebeu um plano invulgar: instalou uma coluna de som na varanda e
põe música no volume máximo quando acha que o ruído da rua já ultrapassou o
aceitável.
A indignação de
Fernando Tavares de Carvalho visa sobretudo os músicos de rua, que no Carmo são
presença quase permanente. “Se for preciso estão aí a tocar até às duas ou três
da manhã”, afirma, explicando que quase todos os artistas recorrem a
amplificadores.
A música provém
da rua num volume tão alto e a horas tão impróprias, relata Tavares de
Carvalho, que viver ali é um calvário. “Criar aqui duas crianças de sete anos é
absolutamente impossível. Os meus filhos chegam da escola, têm de jantar, fazer
os trabalhos e ir para a cama. Não podem ter música aos berros até altas
horas.”
Sentado no seu
gabinete no terceiro andar do prédio onde habita, o diplomata controla a coluna
de som que colocou numa varanda do primeiro andar, actualmente desocupado.
“Recorri a este esquema radical que funciona extremamente bem”, descreve,
mostrando o computador que ali montou especificamente para o efeito e que, no
momento da conversa, está pronto para passar Salsa Mix 2018, uma compilação
musical com mais de uma hora que encontrou na internet.
Como Tavares de
Carvalho põe a música no máximo, o barulho no largo torna-se ensurdecedor e os
artistas que ali estão vêem-se obrigados a parar as actuações. Por vezes há um
duelo entre músicos e coluna que se prolonga por algum tempo, para suplício dos
frequentadores deste histórico espaço público lisboeta.
Fernando Tavares
de Carvalho, que foi embaixador de Portugal em Havana e por isso é conhecido
dos comerciantes e músicos do largo como “o embaixador”, diz que apenas tomou
uma atitude tão drástica porque há “passividade das autoridades” perante o
ruído excessivo. “Eu chamava a polícia e eles ou não apareciam ou apareciam só
quatro horas depois”, critica.
Umas semanas
depois de ter começado a dar salsa ao Carmo para calar os músicos lá em baixo,
dois agentes da Polícia Municipal vieram visitá-lo e intimaram-no a desligar a
coluna. Disse que o faria se os artistas de rua fossem identificados por actuar
sem a necessária licença. Os polícias acabaram por se ir embora sem que nenhuma
das duas coisas acontecesse.
Conflito diário
“Em Lisboa, só um
ou outro músico é que tem licença”, confirma Fábio Camargo, guitarrista
brasileiro há um ano radicado na capital portuguesa que actua no Carmo e no
Chiado ao lado de Inês Lucas, cantora. No fim de mais uma apresentação, a meio
da tarde desta quarta-feira, ambos dizem que já testemunharam a coluna do embaixador
em acção. “Os bares têm de nos pedir para parar porque nem sequer conseguem
ouvir os clientes”, diz Inês.
Os artistas de
rua estão impedidos por lei de usar amplificadores de som e têm de pedir uma
licença à junta de freguesia. Até 2015 era obrigatório o pagamento de uma taxa
administrativa de 392,20 euros, mas a câmara aboliu-a. A junta de Santa Maria
Maior, que abrange o Chiado e o Carmo, cobra 12 euros por mês por metro
quadrado pela ocupação de espaço público.
Poucos são os
músicos que têm licença e muitos são os que usam amplificadores – e é isso que
revolta Fernando Tavares de Carvalho. Fábio Camargo explica que, de vez em
quando, a polícia faz uns raides e apreende amplificadores, mas a maioria das
vezes o que há são avisos. “A polícia vai ter connosco, pede-nos para sair e
mudamos de sítio”, diz Inês Lucas. A multa por actuar com este aparelho é de
150 euros e os músicos dizem-se dispostos a correr o risco, porque sem
amplificador praticamente não são ouvidos. Afirmam também que não compensa
pagar a licença.
Pelo Largo do
Carmo passam diariamente dezenas de músicos, cada qual com o seu estilo
próprio, umas vezes mais pacato – como é o caso de Inês e Fábio, um rock
acústico que mal se ouve do outro lado do largo –, outras vezes mais agitado,
como acontece com algumas bandas que trazem bateria, batuques, trompetes e
outros instrumentos. Fábio Camargo diz que até compreende as razões do
embaixador: “Ele leva todo o dia essa fita. Teria de haver qualquer tipo de
acordo com ele.”
O que tem acontecido,
porém, é uma crescente conflitualidade. “A música da coluna é mesmo muito alta.
Os clientes não gostam, começam a dizer asneiras, a mandar garrafas”, descreve
Yassin Nobre, gerente do Quiosque do Carmo, junto ao qual os músicos geralmente
se concentram. “É uma situação muito complicada. Já chamámos a polícia várias
vezes, dizem que não podem fazer nada. Estamos nisto há meses e ninguém
resolve.”
Na Leitaria
Académica, o dono Paulo reconhece razão a ambas as partes e prejuízos para os
comerciantes. “Nenhum dos músicos que aí tocam tem licença. No Verão tocam
desde as dez da manhã até à meia-noite. Mas a coluna é horrível. Isto é
péssimo, há que acabar com esta guerra.” Semelhante reacção tem João Lourinho,
da Sapataria do Carmo, no lado oposto ao quiosque. “Como é que é possível isto
arrastar-se há tanto tempo?”, questiona.
Problemas do
Carmo e da Trindade
A atitude de
Tavares de Carvalho é “radical”, como o próprio reconhece, porque “a poluição
sonora está-se a tornar um assunto muito sério”, diz outro comerciante da zona,
que opta por não se identificar. “Ele não é o único que se queixa de ruído, mas
foi o único que tomou uma acção concreta, fruto do desespero. O barulho aqui é
uma grande pressão”, afirma.
A câmara de
Lisboa lançou recentemente uma campanha publicitária para alertar lisboetas e
turistas para o ruído excessivo que se verifica em muitas zonas do centro
histórico. A campanha, especialmente dirigida aos clientes de bares, foi
recebida com indignação nas redes sociais, onde muitas pessoas acusaram a
autarquia de não reagir atempadamente às queixas de moradores e, em certos
casos, de ser conivente com as situações irregulares. Desde 2011, a câmara
instaurou cerca de 80 processos de fiscalização anuais, em média.
O barulho é
apenas um dos problemas que os moradores da zona querem ver tratados. “Nós aqui
éramos milhares de residentes”, comenta Jorge Silva, impulsionador de uma
associação do Carmo e da Trindade, que está a dar os primeiros passos. Agora
haverá talvez centena e meia. Acabar com os engarrafamentos de trânsito,
resolver problemas de estacionamento e melhorar a higiene urbana estão no
caderno de encargos que tencionam entregar à câmara e à junta. “Eu adoro isto
aqui. Quero permanecer”, diz Jorge Silva.
“A porcaria
acumulou-se, vai ali com uma agulheta e não sai absolutamente nada”, observa
Fernando Tavares de Carvalho. “E há uma bandalheira total, as cargas e
descargas chegam a bloquear completamente a via e nada acontece. Dá-me
impressão que isto está deitado aos bichos.”
tp.ocilbup@ahcnip.oaoj
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