segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Morador do Carmo combate músicos de rua com salsa em altos berros



Morador do Carmo combate músicos de rua com salsa em altos berros

Residente fartou-se da “passividade das autoridades” perante ruído excessivo e prolongado e tomou acção por conta própria. Músicos e comerciantes lamentam a situação, que se arrasta há alguns meses. Grupo de moradores quer levar caderno de encargos à câmara e à junta.

João Pedro Pincha
João Pedro Pincha 24 de Outubro de 2019, 20:19

Cansado de ter barulho a entrar-lhe pela casa de manhã à noite, um morador do Largo do Carmo, em Lisboa, concebeu um plano invulgar: instalou uma coluna de som na varanda e põe música no volume máximo quando acha que o ruído da rua já ultrapassou o aceitável.

A indignação de Fernando Tavares de Carvalho visa sobretudo os músicos de rua, que no Carmo são presença quase permanente. “Se for preciso estão aí a tocar até às duas ou três da manhã”, afirma, explicando que quase todos os artistas recorrem a amplificadores.

A música provém da rua num volume tão alto e a horas tão impróprias, relata Tavares de Carvalho, que viver ali é um calvário. “Criar aqui duas crianças de sete anos é absolutamente impossível. Os meus filhos chegam da escola, têm de jantar, fazer os trabalhos e ir para a cama. Não podem ter música aos berros até altas horas.”

Sentado no seu gabinete no terceiro andar do prédio onde habita, o diplomata controla a coluna de som que colocou numa varanda do primeiro andar, actualmente desocupado. “Recorri a este esquema radical que funciona extremamente bem”, descreve, mostrando o computador que ali montou especificamente para o efeito e que, no momento da conversa, está pronto para passar Salsa Mix 2018, uma compilação musical com mais de uma hora que encontrou na internet.


Como Tavares de Carvalho põe a música no máximo, o barulho no largo torna-se ensurdecedor e os artistas que ali estão vêem-se obrigados a parar as actuações. Por vezes há um duelo entre músicos e coluna que se prolonga por algum tempo, para suplício dos frequentadores deste histórico espaço público lisboeta.

Fernando Tavares de Carvalho, que foi embaixador de Portugal em Havana e por isso é conhecido dos comerciantes e músicos do largo como “o embaixador”, diz que apenas tomou uma atitude tão drástica porque há “passividade das autoridades” perante o ruído excessivo. “Eu chamava a polícia e eles ou não apareciam ou apareciam só quatro horas depois”, critica.

Umas semanas depois de ter começado a dar salsa ao Carmo para calar os músicos lá em baixo, dois agentes da Polícia Municipal vieram visitá-lo e intimaram-no a desligar a coluna. Disse que o faria se os artistas de rua fossem identificados por actuar sem a necessária licença. Os polícias acabaram por se ir embora sem que nenhuma das duas coisas acontecesse.

Conflito diário
“Em Lisboa, só um ou outro músico é que tem licença”, confirma Fábio Camargo, guitarrista brasileiro há um ano radicado na capital portuguesa que actua no Carmo e no Chiado ao lado de Inês Lucas, cantora. No fim de mais uma apresentação, a meio da tarde desta quarta-feira, ambos dizem que já testemunharam a coluna do embaixador em acção. “Os bares têm de nos pedir para parar porque nem sequer conseguem ouvir os clientes”, diz Inês.

Os artistas de rua estão impedidos por lei de usar amplificadores de som e têm de pedir uma licença à junta de freguesia. Até 2015 era obrigatório o pagamento de uma taxa administrativa de 392,20 euros, mas a câmara aboliu-a. A junta de Santa Maria Maior, que abrange o Chiado e o Carmo, cobra 12 euros por mês por metro quadrado pela ocupação de espaço público.

Poucos são os músicos que têm licença e muitos são os que usam amplificadores – e é isso que revolta Fernando Tavares de Carvalho. Fábio Camargo explica que, de vez em quando, a polícia faz uns raides e apreende amplificadores, mas a maioria das vezes o que há são avisos. “A polícia vai ter connosco, pede-nos para sair e mudamos de sítio”, diz Inês Lucas. A multa por actuar com este aparelho é de 150 euros e os músicos dizem-se dispostos a correr o risco, porque sem amplificador praticamente não são ouvidos. Afirmam também que não compensa pagar a licença.

Pelo Largo do Carmo passam diariamente dezenas de músicos, cada qual com o seu estilo próprio, umas vezes mais pacato – como é o caso de Inês e Fábio, um rock acústico que mal se ouve do outro lado do largo –, outras vezes mais agitado, como acontece com algumas bandas que trazem bateria, batuques, trompetes e outros instrumentos. Fábio Camargo diz que até compreende as razões do embaixador: “Ele leva todo o dia essa fita. Teria de haver qualquer tipo de acordo com ele.”

O que tem acontecido, porém, é uma crescente conflitualidade. “A música da coluna é mesmo muito alta. Os clientes não gostam, começam a dizer asneiras, a mandar garrafas”, descreve Yassin Nobre, gerente do Quiosque do Carmo, junto ao qual os músicos geralmente se concentram. “É uma situação muito complicada. Já chamámos a polícia várias vezes, dizem que não podem fazer nada. Estamos nisto há meses e ninguém resolve.”

Na Leitaria Académica, o dono Paulo reconhece razão a ambas as partes e prejuízos para os comerciantes. “Nenhum dos músicos que aí tocam tem licença. No Verão tocam desde as dez da manhã até à meia-noite. Mas a coluna é horrível. Isto é péssimo, há que acabar com esta guerra.” Semelhante reacção tem João Lourinho, da Sapataria do Carmo, no lado oposto ao quiosque. “Como é que é possível isto arrastar-se há tanto tempo?”, questiona.


Problemas do Carmo e da Trindade
A atitude de Tavares de Carvalho é “radical”, como o próprio reconhece, porque “a poluição sonora está-se a tornar um assunto muito sério”, diz outro comerciante da zona, que opta por não se identificar. “Ele não é o único que se queixa de ruído, mas foi o único que tomou uma acção concreta, fruto do desespero. O barulho aqui é uma grande pressão”, afirma.

A câmara de Lisboa lançou recentemente uma campanha publicitária para alertar lisboetas e turistas para o ruído excessivo que se verifica em muitas zonas do centro histórico. A campanha, especialmente dirigida aos clientes de bares, foi recebida com indignação nas redes sociais, onde muitas pessoas acusaram a autarquia de não reagir atempadamente às queixas de moradores e, em certos casos, de ser conivente com as situações irregulares. Desde 2011, a câmara instaurou cerca de 80 processos de fiscalização anuais, em média.

O barulho é apenas um dos problemas que os moradores da zona querem ver tratados. “Nós aqui éramos milhares de residentes”, comenta Jorge Silva, impulsionador de uma associação do Carmo e da Trindade, que está a dar os primeiros passos. Agora haverá talvez centena e meia. Acabar com os engarrafamentos de trânsito, resolver problemas de estacionamento e melhorar a higiene urbana estão no caderno de encargos que tencionam entregar à câmara e à junta. “Eu adoro isto aqui. Quero permanecer”, diz Jorge Silva.

“A porcaria acumulou-se, vai ali com uma agulheta e não sai absolutamente nada”, observa Fernando Tavares de Carvalho. “E há uma bandalheira total, as cargas e descargas chegam a bloquear completamente a via e nada acontece. Dá-me impressão que isto está deitado aos bichos.”

tp.ocilbup@ahcnip.oaoj

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